Opinião

Sobre a polêmica do SUS

Entre a desconfiança das intenções do governo e posições ideológicas perdeu-se uma oportunidade de jogar luz sobre as deficiências de financiamento e gestão do SUS e como endereçá-las.

O malfadado decreto sobre o SUS trouxe à baila a questão de como financiar a saúde pública, mas caído de paraquedas, sem uma exposição de motivos, o debate perdeu-se na polarização vigente. A falta de disposição do PR em defender a iniciativa foi a pá de cal, interrompeu uma discussão que cedo ou tarde terá que ser feita. Mas antes de me estender sobre os porquês, esclarecerei de qual perspectiva comentarei o tema.

Há dois anos deixei de ter direito ao plano de saúde subsidiado pela empresa e tive que contratar um plano no mercado, e nos últimos dois meses, vi dois colegas de trabalho, ex-executivos de multinacionais, fazendo vaquinhas para conseguirem pagar seus tratamentos médicos, mesmo tendo planos de saúde particulares. Situação impensável para alguém de classe média/alta. É para esses que escreverei.

Qual a realidade com que me deparei: tive que aceitar uma queda do padrão de atendimento porque os preços eram muito altos e tornavam-se impagáveis acima dos 60 anos. Para que fique tudo bem concreto, resgatando a tabela da época, um plano incluindo o Einstein, o Sírio, São José e o Fleury, saia ao redor dos R$ 10 mil/mês para um casal. Contratei um bom, porém mais simples, pelo sindicato, pois os individuais não eram mais oferecidos no mercado (maravilhas da livre iniciativa, depender de um sindicato). Não deu tempo para comemorar, pois os reajustes em 2019 e 2020 foram aproximadamente 15%. É aí que a dinâmica privada não se sustenta.

Já trabalhei em seguradora e, na ocasião já tinha visto, e dando um google agora, o cálculo não é muito diferente, o gasto total que uma pessoa tem com saúde concentra-se no último ano de vida, algo como 50% a 75%. Não há incentivo que faça uma empresa privada não querer expulsar um idoso da clientela nesse momento. Isso pode ser feito aumentando os preços à patamares inviáveis ou dificultando o acesso aos tratamentos. Mas quando fazer isso? Nada simples, mas imaginem o que não farão os aplicativos de Inteligência Artificial a medir seu estilo de vida e cada exame que faz. Saberão antes que a própria pessoa o “timing” adequado. Portanto, cuidado quando ouvir o discurso sobre os benefícios do serviço privado nos moldes norte-americanos, é preciso renda alta e constante para pagá-lo e, se lá é difícil para milhões, aqui não me parece viável.

O SUS É A SOLUÇÃO, PORÉM todos sabemos que o serviço é insuficiente desde que foi criado. A demora em agendar um exame, um tratamento especializado ou uma cirurgia é uma negativa de acesso escamoteada e que mata. Vemos isso todos os dias à nossa volta, mas nos anestesiamos sem reação, talvez porque estejamos protegidos, ainda, pelos planos privados e quem sofre são os outros, os usuários, com quem não temos empatia.

Seria bom se fosse somente um problema de gestão, mas como mostra o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (“IEPS”), liderado pelo Armínio Fraga, gastamos cerca de metade em % do PIB que a média do G7 (4% vs. 8% do PIB), isso sem contar com a diferença de renda per-capita, o que aumenta o fosso. Mesmo corrigindo pela idade da população, há uma lacuna a se endereçar. As estatísticas que mais circulam comparando os gastos brasileiros com a média da OCDE não esclarecem que 58% do gasto brasileiro é realizado pelos 22% da população cobertos pelos planos privados, com a ajuda de isenções fiscais (fonte IEPS). Some, agora, o envelhecimento da população brasileira, já em andamento, e a projeção é de que os gastos com saúde crescerão 42% nos próximos 40 anos. Exagero? Considere qualquer aumento, já que o envelhecimento é um fato, e a conta continua a não fechar. Portanto, uma política que limite o gasto com saúde ao patamar real atual pressupõe o sucateamento do serviço além do já observado. Simples constatação.

Contudo, as ineficiências são flagrantes. Não achei uma medida de desperdício, mas não deve ser inferior à 25%-30% e algo tem que ser feito a respeito. Quem defende o sistema tem que colaborar no combate à ineficiência e abusos, mas simplesmente terceirizar não é, também, uma boa resposta, porque uma parte relevante do serviço já é terceirizado e está igualmente precarizado pela desatualização das tabelas de reembolso dos convênios. A penúria das Santas Casas, por exemplo, é notícia constante. Qual é o diagnóstico que justifica isso? Só a falta de dinheiro não é, pois não faltaram R$ 10bi no final de ano passado para um programa de submarinos nucleares e, puxando pela memória, poderia citar exemplos como esses de todos os governos das últimas décadas, portanto, não se animem a culpar somente o Bolsonaro.

Eu mesmo já citei os bons exemplos das unidades de saúde e hospitais públicos gerenciados pelos grandes hospitais paulistas, entretanto, eles se beneficiam de incentivos fiscais e não são pagos pela tabela do SUS, não sei o quanto o modelo é escalável, pois em última instância é financiado pelo gasto de uma pequena parcela de alta renda e com isenções fiscais maiores do que a parcela que é convertida na prestação do serviço gratuito. Algo a se estudar, mas será uma surpresa se puder ser multiplicado muito além do que já existe.

Bem, até aqui há uma lista de desafios e problemas, mas qual seria a solução afinal? Nada espetacular, não há uma “bala de prata” salvadora, mas uma combinação de ações que começa com o compromisso com a extensão dos investimentos no sistema, que terá que ser financiada com uma melhora de gestão, o que incluiria alavancar as parcerias com o setor privado, e com as tais reformas administrativa e tributária, que eram para ser as prioridades do país e parecem meio esquecidas. As reformas abririam espaço no orçamento público para a saúde, reduzindo isenções fiscais e gastos não prioritários, pois não há como aumentar o endividamento.

Há um conflito distributivo a ser encarado de frente e não jogado para baixo do tapete, como de costume. Coisa para vários governos, mas algum terá que dar o primeiro passo, que poderia ser a designação de uma força-tarefa para fazer um estudo decente, com prazo definido, que englobe um diagnóstico e uma proposta, para ser debatido em audiência pública ou no Congresso. Jogar um decreto de poucas palavras por cima do muro para ver no que dá não resolverá. Tomara que a repercussão acabe por reforçar a percepção de que é preciso fazer algo e logo.

Alberto Ferreira

Paulistano adotivo desde 1984, nasceu no Rio de Janeiro em 1961, de onde trouxe a torcida pelo Fluminense. Leitor inveterado de jornais, economia e negócios descansa lendo romances, assistindo futebol e ouvindo MPB. Casado desde 1985 com duas filhas adultas já independentes, foi cfo e controller no mercado financeiro e agora divide o tempo entre um mestrado em administração, acolhimento familiar, administração de bens e consultoria.

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