Opinião

Desabafo aos democratas 13.7.24

Como se dizer democrata e comemorar a tentativa de assassinato de um candidato ou, pior, lamentar por ela não ter se concretizado?

Li postagens assim, ontem, para o meu desprazer. Não é um fenômeno, adianto, restrito a esses trópicos. Acompanhei, com tristeza, a repercussão inicial do atentado contra o candidato republicano nos EUA, na rede vizinha, o X, a cobertura inicial na imprensa americana de analistas/personalidades que sigo, e fui percebendo o que ia sendo replicado, aos poucos, por aqui, no Brasil.

Se eu tivesse que escolher uma foto, entre tantas impressionantes, escolheria o registro que captou a trajetória da bala muito próxima da cabeça do candidato – crédito para o fotógrafo, Doug Mills, do The New York Times, cuja fama passa longe de ser pró-Trump. Foi um freio no clima especulativo em ascensão por aqui entre os negacionistas da “fakeada”. Um tiro raspando a orelha do alvo combinado previamente? Ficou difícil para a militância e para mais teorias da conspiração.

https://x.com/nytimes/status/1812497108940853485?s=12&t=_avN8F2bOjR6AsAt50B5nA

A crítica na cobertura tem, contudo, mais camadas. O próprio serviço secreto por lá chegou a divulgar como “incidente” e, não, atentado, FBI idem. O Financial Times chegou a mencionar “sounded like gunfire” nas primeiras atualizações, quando já haviam elementos suficientes para concluir que houve um tiroteio, incluindo, infelizmente, vítimas fatais na multidão. Acabaram mudando para “The gunfire” no final – ou, melhor, na última vez que reli. O mesmo link do FT com a chamada “Donald Trump ‘safe’ after apparent shooting at Pennsylvania Rally”, agora mostra “Donald Trump injured in attempted assassination at Pennsylvania rally”. Por que a mudança/relutância? Será que o famoso discurso há dois anos da “batalha pela alma da nação” dos Democratas tem algo a ver com esse sentimento? Por esse discurso, milhões de americanos comuns, eleitores de Trump, “ameaçavam os próprios alicerces da nação”. O tom dramático impunha que, em nenhuma circunstância, uma vitória eleitoral de Trump seria aceitável. Não desconheço o quanto o próprio Donald colaborou para que se chegasse a esse ponto. Mas tal postura é compatível com uma democracia saudável?

Enquanto isso, no continente europeu, a histeria na eleição francesa colaborou para uma eleição sem possibilidade de “final feliz” e a tornou sem ganhadores (ou perdedores, familiar?), como afirmou o Presidente Emmanuel Macron em uma carta aos franceses, semana passada, nas redes sociais.

https://x.com/emmanuelmacron/status/1811116624621056222?s=46&t=_avN8F2bOjR6AsAt50B5nA

Após a cirúrgica capa da The Economist, foram poucas as análises racionais que li, capazes de apontar o estrangulamento do centro, dos moderados, uma dificuldade crescente em muitos países que enfrentam crises em suas democracias, aqui, nos EUA, na Europa. Mais conveniente era ficar com o bicho papão da “extrema direita” de um lado e a esquerda (sem extremos, claro, limpinha, do outro). O ponto é que a “polarização de um polo só” idiotiza o debate, inflama o sistema político democrático.

Entre as análises que li, destaco um artigo no lefigaro.fr (“Législatives 2024: Le triomphe du chaos absolu”) e outro do imperdível João Pereira Coutinho, no Sabado.PT (“La décadanse”), com destaque para o ponto central nesse debate: um certo cansaço com o funcionamento da democracia liberal. Estou relendo, inclusive, “O Crepúsculo da Democracia: Como o autoritarismo seduz e as amizades são desfeitas em nome da Política”, da Anne Applebaum, publicado em 2020, o qual em muito boa parte explica por que as elites democráticas de todo o mundo estão se voltando para o nacionalismo e o autoritarismo, sem o jogo preguiçoso de reduzir tudo a fascismo e comunismo. Até porque a dinâmica atual é outra; está em curso. Foi eleito o Livro do Ano pelo The Washigton Post e pelo The Financial Times, no ano de lançamento. Não poupa a dita esquerda e a dita direita, embora percebe-se a influência da vivência da autora americana na Polônia no foco que dá ao impacto das dissidências na direita no início desse século (que fizeram surgir os “clercs” de “direita”, como ela diz, “mais bolcheviques que burkeanos”, bem diferentes do tories, dos anticomunistas do leste europeu, dos gaullistas e dos republicanos que defendiam uma série de valores não compartilhados por esses “clercs”).

Adianto que não preciso concordar 100% com um(a) autor (a) para me interessar pelos seus argumentos, com os quais posso concordar totalmente, em parte, ou em nada. Infelizmente, o que se tem visto são “cancelamentos” estúpidos, como o que recentemente soube que estava ocorrendo com uma das maiores pensadoras no campo da ciência política, a Hannah Arendt. Nada original, diga-se de passagem. O mesmo aconteceu com Albert Camus,  Isaiah Berlin, David Hume, entre outro/as. Todos foram e ainda são fortemente criticados por não se definirem em um campo ideológico. Como ouvi de uma livre pensadora esses dias, estariam na terceira margem e, em sendo assim, um lugar onde eu me sinto muito à vontade para estar.

Muito se tem falado sobre os riscos que a democracia corre. A bem da verdade, convém não perder de vista que se trata de um regime relativamente recente na história, levando em conta o conceito de democracia liberal/constitucional que surgiu por volta do século XVII, e que nunca foi uma unanimidade. Em recente artigo publicado em O Jota (Como vai a democracia pelo mundo?), valendo-se do Índice de Democracia da The Economist Intelligence Unit, aponta-se que apenas 7,8% da população mundial vive em uma democracia plena. O artigo também informa que “os principais problemas apontados são a ameaça à liberdade de expressão e imprensa e a falta de eleições limpas e justas, pilares fundamentais de uma democracia liberal”.

Os riscos da incitação à violência por lideranças políticas me parecem evidentes. Na falsa polarização não há uma divergência real no campo das ideias e, sim, radicais e/ou populistas divisionistas estimulando o ódio político. Esse é o Zeitgeist.

A evolução, sabe-se, não é linear e estamos em uma dessas fases de intensas transformações no mundo em que o tabuleiro da geopolítica está se organizando com muita velocidade e intensidade o que se traduz, entre outras, em violência política que se soma à violência que faz parte de todos nós, ora, ora, seres humanos, e, assim, de todos os países em maior ou menor grau. Há muitas boas ações sendo realizadas, é verdade, mas, nesse quadro, em que a perda de confiança em mecanismos institucionais desenhados para conter extremismos e modos disfuncionais de exercício de poder (nos Estados, na imprensa, na academia) se intensifica, o que há de positivo tem menor visibilidade.

Muito embora considere que o curso da história tem seus próprios mecanismos – e, ontem (13.7.24), pode ser que um deles tenha entrado em ação, quando um movimento do pescoço, de pouquíssimos centímetros, definiu a vida ou a morte de um candidato à presidência dos EUA – e que tais mecanismos históricos se desenvolvem independente de desejos coletivos ou individuais, não há como ignorar o peso das redes sociais nos processos eleitorais.

Metade dos apoiadores dos partidos Democrata e Republicano definem um ao outro como “inimigo” e nāo “adversário político” (“Most Americans concerned about escalating political violence: poll”, matéria do nypost). Não é muito diferente com os partidários de Le Pen e Melenchón. E o que dizer sobre nossas relações pessoais desde o “Nós contra Eles”?

Não é questão de querer parecer ser ou não virtuoso – o que se é, se nota, mais cedo ou mais tarde – mas de procurar no discurso moderado uma contribuição para o coletivo e até mesmo uma vitória pessoal, em um compromisso solitário, sem satisfações a dar a ninguém, exceto a sua consciência. Tudo isso implica no respeito às escolhas políticas alheias por mais que, pessoalmente, as rejeitemos. Quem usa blogs sujos, bots, apoiadores na imprensa, na academia e nas redes, desqualificando pessoalmente eleitores, trabalha a favor do ódio político, do divisionismo, do enfraquecimento das instituições, ainda que use o falso estandarte da democracia.

Reincidir nos mesmos erros e/ou servir de marionete para autocratas e/ou populistas me traz sempre aquele velho lembrete freudiano: qual a sua responsabilidade na desordem da qual você se queixa? Na reta final não há mesmo muito o que fazer: um ou outro ou nenhum deles. O ponto nevrálgico é o que vem antes, a normalização do que não deveria ser normalizado, a chancela ao indefensável.

Nesse belo planeta azul de provas e expiações, quem não alcançou a condição espiritual de missionário/a tem o ódio, no mínimo, como um sentimento que está potencialmente pronto para se manifestar em momentos limítrofes – e só sabemos dos nossos limites ao chegarmos a eles. Não me permito ignorar essa condição demasiadamente humana.

Quem (mais) ganha com isso? Partido A ou B? Sicrano ou beltrano? Esquerda/Direita? Ou seria o delinquente do Kremlin, com mandado de prisão expedido pelo TPI, e seus parceiros internacionais? Cartas para a redação. Por essas e outras, digo e repito: a defesa militante, apaixonada, de esquerda/direita, não é a mais adequada para os desafios atuais do século XXI. Fica ainda pior quando se personaliza a questão: “qualquer um menos esse”, “menos pior”. A essa altura, já estamos no campo das consequências, os resultados da normalização desse tipo de escolha são nossa colheita.

Independente da nossa vontade, desde a queda do muro de Berlim, do 11deset, pandemia, entre outros eventos, estamos compartilhando tempos históricos. Podemos tentar ser indiferentes a isso, vivendo no rico mundo do micro, do cotidiano, sendo certo que as consequências, sempre elas, podem nos alcançar.

O ambiente das redes está desenhado para o embate, para conclusões instantâneas, reativas. Respirar, acalmar a mente, organizar os sentimentos, os pensamentos, deixar ir, aprender a fazer tudo isso, reconhecendo que o impulso é uma reação atávica que pode ser trabalhada para o bem e para o mal é uma escolha. Outra escolha é repensar prioridades, conceitos, visões, ideologias, e, por que não, paixões juvenis. Se o tempo é de travessia, convém escolher a bagagem – não para salvar o mundo; para o nosso próprio peso ou leveza.

Não sei quais serão as consequências do atentado, faltam alguns meses até o desfecho da eleição. O mais provável é que nesse contexto o sobrevivente amplie a vantagem. O que sinto é que ele faz parte de um grande mosaico, de uma escalada de violência no debate, ampla, de demonização do outro, de acirramento politico em seu pior viés, o do inimigo, da qual não pretendo participar.

Daniela Meneses

Sou carioca, “naturalizada” no nordeste e lotada no Paraíso das Águas, com a família que formei, e é o meu maior patrimônio. O Rio segue em mim. Acredito no uso terapêutico do contato com a Natureza (especialmente o Mar), a Yoga, a Dança, a Corrida, e a Escrita, sendo esta última a razão pela qual mantenho o hábito de “pensar em voz alta” no Facebook. Graduada em Direito há 26 anos e especialista em Direito Constitucional, atuo na área. Humanista e reformista, acredito na efetividade de reformas cíclicas que conduzam ao aperfeiçoamento institucional, assegurando o exercício do conjunto de liberdades e das garantias fundamentais e individuais. A bem da verdade, na minha 1ª postagem no PDB há o suficiente para sintetizar meu “enquadramento”: me alinho aos valores do Iluminismo, da Revolução Gloriosa, das liberdades de crença, expressão, de pensamento, do direito de ir e vir e de propriedade. Por consequência, defendo o Regime Democrático, a Separação dos Poderes, o Estado laico, a Imprensa Livre, os valores humanistas, e o Due Process of Law. No mais, a pretensão adolescente de ser agente secreta (rs) talvez explique um dos meus temas prediletos: geopolítica. O gosto por história, literatura, e filosofia vem da época da escola. Provavelmente, minhas publicações, que representam minha posição pessoal, sem qualquer vinculação institucional, estarão associadas a esse mix. Até agora, estavam restritas para amigos, entre os quais estão muitos dos que fazem parte desse espaço descontraído de troca de ideias, o Papodeboteco.

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