Opinião

Liberdade de Expressão é algo inviolável?

Muitos vão querer me calar (brincadeirinha), mas não acho que a liberdade de expressão seja o bem mais sagrado do mundo.

Acho que a vida e a integridade de um ser humano são as coisas mais sagradas do mundo.

Dentro desse ponto de vista, um discurso que defenda que um grupo de pessoas é inferior a outro grupo e que, portanto, este grupo é detestável por diversas razões especificadas; seria, de fato, algo defensável pela égide da liberdade de expressão.

No entanto, se pensarmos que a vida ou integridade de outros seres humanos são bens mais importantes do que a liberdade de expressão, é possível enxergar esse discurso sob outra ótica.

Vou aqui fazer uma digressão:

Quando alguém faz um discurso de ódio na praça ou em uma live contra um grupo (quer sejam ricos, pobres, asiáticos, brancos, pretos, judeus, heterossexuais, homossexuais, flamenguistas, umbandistas, ateus, ciganos etc.), o que pode acontecer?

Há milhares de pessoas ouvindo, com todo o tipo de temperamento. A maioria vai ouvir e continuar pensando da mesma forma. Afinal, já são simpatizantes daquelas ideias.

Contudo, é inevitável que uma parcela dessas pessoas vai pegar essas palavras como mote para ampliar seu ódio anterior e tornará essas pessoas mais prováveis de cometer atos de violência e até assassinatos.

Alguém pode alegar: Ah, mas ele não falou para bater ou matar ninguém!

Verdade, mas é sabido como as pessoas esticam a interpretação de um discurso.

Digamos , que alguém diga que um conjunto A de pessoas é detestável por X motivos terríveis: pessoas que pertencem à A são asquerosas, diabólicas, pérfidas etc.

O cara X ouve isso e, pouco depois, encontra Y do grupo de A. Então Y reclama que X furou a fila. Ainda inflamado pelo discurso de ódio, não é difícil imaginar que X perca as estribeiras e esmurre Y .

Aí alguém poderia dizer:

Espere alguém fazer um ato desses influenciado pelo discurso, e depois vá atrás de quem fez o discurso. A liberdade é algo inviolável.

No entanto, aí é tarde demais. A vítima já sofreu as consequências.

Alguém, com razão, pode alegar: discurso de ódio é subjetivo. Não vou negar. Tudo na justiça é subjetivo.

Se A liga para B ameaçando B de morte de maneira subjetiva, tipo “Você pode não acordar amanhã”. A pode alegar: ele pode não ouvir o despertador e perder a hora, mas eu e você sabemos o real significado dessa frase. Apesar da subjetividade, é sim uma ameaça e portanto um crime.

E não estou sendo hipócrita. Isso vale para qualquer grupo.

Por exemplo, é claro que o racismo tem profundas raízes históricas no Brasil. Acredito que se deva ter uma lente especial nessa questão.

Entretanto, se em uma reunião de um coletivo negro, alguém hipoteticamente faz um discurso inflamando as pessoas contra brancos e transformando-os em um grupo asqueroso, isso também deveria ser um crime.

Não é o fato do negro ser uma minoria em geral prejudicada é que ela deve ter passaporte para disseminar ódio, com todas as nefastas consequências que podem advir desse tipo de discurso.

Os EUA não deveriam ser um exemplo

´Nos EUA não há definição legal de “discurso de ódio”. De maneira geral, o discurso de ódio é qualquer forma de expressão através da qual os oradores pretendem difamar, humilhar ou incitar o ódio contra um grupo ou classe de pessoas.

Ou seja, lá tudo é permitido em nome da Primeira Emenda.

Wisconsin Saw Its First Ku Klux Klan Activity In 1920s | Wisconsin Public Radio
KKK em tese era legal, em nome da Primeira Emenda

No entanto, em praticamente todos outros países desenvolvidos do mundo não é assim. Há limites. Às vezes até exagerados, no meu ponto de vista.

A taxa de homicídios dos EUA é uma das mais altas do mundo desenvolvidos: são 5 assassinatos por 100.000 pessoas por ano. E não é por causa das armas, visto que há outros países com alto número de armas por pessoa. Acredito que há questões culturais complexas de mapear e a questão da liberdade do discurso de ódio pode ser um dos componentes.

Em 2020 houve 11.126 vítimas de crime classificados como ódio nos EUA , sendo 62% motivado por raça, 20% por orientação sexual e 13,3% por causa de religião.

Faz sentido que um discurso de ódio consistente influencie pessoas mais suscetíveis, que já tem dentro de si essas ideias em estado bruto, e que, desse modo, aumente a chance desse tipo de pessoa vir a cometer atos de violência contra pessoas do grupo alvo e experiências em psicologia social corroboram isso.

É difícil fazer comparações com outros países porque os critérios de contagem mudam muito de país para país.

Alguém utopicamente pode dizer: Ah, mas isso é a livre circulação de ideias. Aí, eu digo: mas o que palavras de ódio dirigidas a um grupo de pessoas agrega a qualquer debate? O único efeito é uma indução probabilística a um crime…

Aqui não se trata de debater sobre formas de educar, comportamentos sexuais, organização do parlamento, sistemas políticos etc., mas, sim, refere-se à estigmatização de um certo grupo de pessoas.

Nazismo é algo sem palavras

A concentration camp during the Holocaust
É preciso escolher a foto para não chocar demais

O assassinato dos judeus na Alemanha nazista foi precedido por uma intensa campanha para fazer, de fato, legiões de alemães odiarem verdadeiramente os judeus. Essas coisas não vêm do nada.

O mal que Hitler perpetrou no mundo foi épico. Os herdeiros desse mal (incluindo-me nessa), tiveram muitos de seus ascendentes dizimados e estão espalhados por todo o mundo ocidental.

Talvez essa seja um dos motivos porque Hitler se tornou o vilão mais famoso da era moderna, superando Stalin da antiga URSS e o Mao da China, pois, nestes casos, as vítimas e seus herdeiros não estão tão espalhados pelo mundo.

Incontáveis livros, relatos, filmes e séries foram feitos sobre Hitler e o nazismo.

Se incluirmos as vítimas da guerra, judeus, comunistas, padres, homossexuais, ciganos, inimigos, adversários etc.; a contagem aproximada é de 48 milhões de pessoas mortas.

Como eu li em um post, defender a legalidade de um partido nazista, equivale a defender a legalidade de um partido dos estupradores, partido dos pedófilos ou partido dos assassinos. Nazismo é Hitler. Hitler é nazismo.

As ideias, levemente veladas, estão todas no livro “Mein Kamp“, que saiu já em 1925, sendo que ele assumiu o poder apenas em 1934.

Alguns trechos de Mein Kampf: “a nacionalização de nossas massas só terá sucesso quando, além de toda a luta positiva pela alma de nosso povo, seus envenenadores internacionais forem exterminados” e “se no início da guerra e durante a guerra, doze ou quinze mil desses corruptores hebreus da nação foram submetidos a gás venenoso, tal como teve que ser suportado no campo por centenas de milhares de nossos melhores trabalhadores alemães de todas as classes e profissões, então o sacrifício de milhões na frente não teriam sido em vão“.

Metáforas são dolorosas e que apontariam, para os mais atentos, uma sinistra premonição.

Aqui um pedaço livremente traduzido do site “Facing History”, resume isso em poucas linhas:“Em 1925, Hitler estava fora da prisão e mais uma vez no controle do Partido Nazista. A tentativa de golpe lhe ensinara uma importante lição. Nunca mais ele tentaria uma insurreição armada. Em vez disso, os nazistas usariam os direitos garantidos pela Constituição de Weimar – liberdade de imprensa, direito de reunião e liberdade de expressão – para ganhar o controle da Alemanha”.

Comunismo na prática não é brinquedo de criança

A única diferença prática em temos de violência é que o Nazismo e Hitler na prática se amalgamam em um único conceito: o regime que vigorou na Alemanha entre 1934 e 1945.

Dito isso, a grande maioria dos regimes ditos comunistas ou sob sua inspiração resultam, como o nazismo, em desastres épicos.

A forma de implementar o comunismo se afastou na prática do comunismo teórico, usando sua retórica como pano de fundo para implantar regimes autoritários, pouco transparentes e com grande concentração de poder.

Há também terríveis exemplos de regimes sanguinários de direita, como Pinochet no Chile, Baby Doc no Haiti e Idi Amin na Uganda, mas não vou detalhar aqui.

Vamos nos limitar a 5 casos:

Pol Pot, líder do Khmer Vermelho, que governou Camboja entre 1975 e 1979 matou cerca de 2 milhões de pessoas (Entre 1,5 e 2,5 milhões) perante uma população total de 7,5 milhões, o que perfaz 27% da população: fome, perseguições a minorias, inimigos etc.

Os horrores do genocídio de Camboja relatados por dois sobreviventes
Histórias de um genocídio

Quando se olha para Mao Tsé-Tung, ele matou ainda mais que Hitler. Só o tal grande salto para a frente matou cerca de 45 milhões de pessoas.

Grande Salto para a Frente

Entre 1966 e 1969 teve algo na China com um nome também pomposo: Revolução Cultural. Ela caçou minorias, seguidores de qualquer religião e cidadãos delatados por questionar o regime. O país ficou cheio de campos de concentração, e as famílias eram obrigadas a pagar pela bala usada para matar os condenados.

Mesmo a China moderna traz episódios inacreditáveis, como os tanques que avançou sobre manifestantes em 1989, no episódio conhecido como Massacre da Praça da Paz Celestial. No total dos protestos, houve milhares de mortos.

Depois de tudo, o desespero no epicentro do episódio na China de 1989

Já Joseph Stalin, da antiga União Soviética perseguiu barbaramente diversas minorias e causou propositadamente fome na Ucrânia, além de perseguir minorias. Não há boas estimativas sobre quantos milhões Stalin matou, talvez algo em torno de 20 milhões.

A Grande Fome, que atingiu a Ucrânia entre 1932 e 1933, ficou conhecida como Holodomor.[1]
Holodomor, o símbolo da grande fome.

Em dias modernos, o destaque é a Coreia do Norte que parece uma pantomina de país, de tão tirânico e absoluto que é a ditadura por lá, com seus campos de concentração em plenos dias modernos.

‘Laugh, cry and be angry’: New film depicts life in North Korea’s prison camps
Condições dos campos na Coreia do Norte

Para finalizar, vale citar Fidel Castro, mais brando que os casos acima, mas mesmo assim com milhares e milhares de vítimas, incluindo um período de perseguição aos homossexuais. Lá, excetuando uma minúscula e rica casta, praticamente todos são pobres, mas comem e tem saúde e educação básicas.

Fora regimes inspirados no comunismo como a Venezuela de Hugo Chávez e Nicolás Maduro que transformaram um país próspero em um país mais miserável que o Haiti.

Life In Poverty In Venezuela - Lessons - Blendspace
Crianças catando comida em lixões na Venezuela

No entanto, nada disso está nos estatutos oficiais do comunismo e a forma de implantar o comunismo varia muito país a pais.

Como o comunismo na prática é necessariamente autoritário e ditatorial, mesmo regimes mais brandos sofrem com isso, como o Vietnam.

Eu quase me pergunto como um partido que tem comunista na sua denominação pode ser legal, se não há regime tido como comunista no mundo que escape de ser antidemocrático e ditatorial.

Rigidez excessiva e subjetividade são pontos de atenção

Óbvio que qualquer lei precisa ser muito bem redigida para evitar que a interpretação abarque qualquer coisa. Ela precisa ser entendida como algo que efetivamente tenha o potencial de incitar violência ou discriminação.

Discurso de ódio precisa remeter a algo o mais objetivo possível..

Não deveria abranger conversas pessoais, humor, frases casuais e depreciativas, como dizer que o baiano é preguiçoso ou coisas assim.

Senão entraríamos em um estado policial onde a pessoa teria até medo de respirar, para não magoar os microrganismos que lá estão.

No meu entender, é preciso que se identifiquem elementos de incitação que, de fato, possam influenciar negativamente pessoas a fazerem atos ilegais.

Infelizmente, não há como deixar de ter elementos de subjetividade. Por isso, é preciso muita clareza.

A legislação atual é muito vaga

A lei atual (lei 9.459/07) é muito vaga. Não há identificação do que é discurso de ódio e limita-se aos grupos de pessoas que podem ser tidas como vítimas. Coloca o nazismo e a divulgação pública como agravantes.

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (1 a 3 anos e multa).

Outra lei que pode ser aplicada é muita vaga e a pena simbólica. Está no artigo 286 do Código Penal.

Art. 286 – Incitar, publicamente, a prática de crime:Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa.

Monark e Adrilles

Os casos do Monark, sócio do podcast Flow e do Adrilles (ex-BBB que trabalhava na Jovem Pan News) claramente não configuram discurso de ódio.

Monark alegou estar bêbado e falou tudo de maneira indireta (não sobre o nazismo, mas sobre legalizar a disseminação de ideias nazistas) e está muito longe de ser um simpatizante de ideias nazistas.

De fato, somente a ideia de um dia ouvir na TV Senado a propagação de ideias nazistas me enojaria, mas, no máximo, caberia uma multa.

Monark saiu do Flow por comum acordo com o Igor. É a maneira de viabilizar o futuro do Flow, com patrocinadores e entrevistados. Seria um desastre a permanência dele para o grupo e Monark será devidamente ressarcido.

No caso de Adrilles, ele fez apenas um gesto nazista com a expressão séria (e depois deu um sorriso sacada diante do “surreal” do apresentador), mas não podemos criminalizar um gesto. Isso seria o final da linha.

Adrilles, foi demitido da Jovem Pan por motivos 100% empresariais. Os controladores pesaram tudo e eles preferiram correr o risco do boicote localizado de parte da audiência do que perder pencas de anunciantes.

É triste uma sociedade que cancela pessoas por quase nada (Monark e Adrilles erraram e foram burros, mas obviamente não são nazistas), mas não tem como negar a realidade que vivemos e as empresas tomaram a decisão correta, do ponto de vista empresarial.

Repare que Ciro Gomes, virtual candidato a presidente em 2022 chamou o deputado negro Fernando Holiday de capitão do mato (não é um discurso de ódio, mas é um termo pra lá de racista, tanto que Ciro Gomes perdeu na justiça) passou muito mais despercebido na grande mídia, do que estes episódios, dos quais o primeiro foi citado no Jornal Nacional, com toda a pompa.

Da mesma forma, Marcos Bagno, um iminente professor de linguística da UNB, falou coisas horríveis em 2016, que combinam com o discurso de ódio e isso passou batido, como “Mas como salvar a gente de monstros como ACM Neto, Dória et caterva? Só degolando, decapitando e defenestrando.”

Nesses casos, nem um pio de muitos dos que se apressam a condenar ato similares quando lhes convêm.

Quem quer, como eu, combater o discurso de ódio deveria ser coerente e combatê-los qualquer que seja a origem e o alvo.

The End

Vou ser metralhado, achincalhado, insultado e odiado porque sei que estou emitindo opiniões que muitos hão de discordar frontalmente, mas estou exercendo o meu direito de liberdade de expressão sem discurso de ódio…

Paulo Buchsbaum

Fui geofísico da Petrobras, depois fiz mestrado em Tecnologia na PUC-RJ, fui professor universitário da PUC e UFF, hoje sou consultor de negócios e já escrevi 3 livros: "Frases Geniais", "Do Bestial ao Genial" e um livro de administração: "Negócios S/A". Tenho o lance de exatas, mas me interesso e leio sobre quase tudo e tenho paixão por escrever, atirando em muitas direções.

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