O jogo América MG X Santos, válido pela 7° rodada do Brasileirão Série B, no estádio Independência, em Belo Horizonte, produziu uma cena inusitada que vem rendendo debates sobre ética e “fair play” nas redes sociais e imprensa.
Aos 14 minutos do primeiro tempo, o atacante americano Renato Marques fez pressão no goleiro santista João Paulo após um recuo na fogueira. O goleiro o driblou e saiu com a bola, mas no segundo passo se contundiu e caiu no chão. Nesse momento, o atacante recuperou a bola e chutou para o gol vazio.
O gol foi validado, os jogadores do Santos partiram para cima do jovem atacante, contestando a decisão de não parar a jogada pelo fato do goleiro estar no chão, machucado. As comissões técnicas se xingaram, houve um principio de confusão, mas a partida seguiu seu curso, terminando 2×1 para o América. No intervalo do jogo, em entrevista para TV, o jogador Juninho, do time da casa, pediu desculpas pela atitude do companheiro de equipe, alegando que sua decisão não havia sido correta.
A situação suscitou inúmeros debates, mas antes, cabe um esclarecimento: o goleiro se contundiu sozinho e não foi por batida na cabeça, não havia, portanto, razão para o árbitro interromper a partida. O gol foi legal. O atacante do América, por conta própria, poderia ter jogado a bola para fora para que fosse realizado o atendimento médico ao goleiro, mas preferiu marcar o gol, atitude que gerou grande polêmica. Afinal, foi ou não falta de “fair play”? Você, leitor, faria o gol ou jogaria a bola para fora?
Os que defendem o ‘fair play’ sustentam que o goleiro estava com a bola dominada e sairia jogando quando se machucou. Renato Marques teria então se aproveitado injustamente da situação de contusão e agido de forma anti-ética, ferindo os princípios do jogo justo. Não foi um gol por mérito próprio, mas valendo-se de uma contusão atípica do adversário que detinha a posse de bola.
Os que defendem a atitude do atacante alegam que no calor do momento, ele não teria como saber se o goleiro forjava uma contusão e que estava ali, de maneira oportuna, por que não desistiu do lance e colocou pressão no adversário, que se machucou casualmente, não por sua culpa. Além disso, consideram a seguinte analogia: caso um atacante tivesse se machucado na hora decisiva de chutar a bola em um gol vazio, ninguém lhe daria a opção de voltar o lance, tampouco validar o gol perdido. Desses argumentos, o primeiro eu considero fraco, uma vez que o goleiro estava com a bola completamente dominada, não haveria razão alguma para fazer cera. O segundo, é de fato, para se refletir.
Para nós, torcedores, futebol é entretenimento. Para os atletas, sua profissão. E o lance pode derivar algumas analogias para outros segmentos. Até que ponto vale tudo para ganhar? Exemplos correlatos não faltarão.
Eu acho essencial o conceito do “fair play”, mas não julgo o atleta Renato, que agiu em uma fração de segundo. Entendo o argumento de quem coloca a situação reversa quando menciona um atacante que se machuca antes de chutar a gol, mas nesse caso, o objetivo máximo não se realizou ainda, teria sido um azar de quem se machucou. Ninguém do time adversário tirou vantagem disso diretamente. No evento discutido, o goleiro do Santos se contunde com a bola dominada antes de ocorrer o gol. Não haveria nenhuma possibilidade do América marcar, caso a lesão não acontecesse. Renato Marques valeu-se de uma fatalidade e obteve uma vantagem injusta ao mandar a bola para as redes. O correto seria jogá-la para fora. Só não me junto aos apedrejadores profissionais que trataram de colocar o jovem americano na cruz, julgando seu caráter por causa de um lance, foi tudo muito rápido.
No intervalo, o atleta Juninho, também do América, colocou seu ponto de vista: o gol havia sido um erro, que inclusive atrapalhou psicologicamente o time. Achei um ato digno do atleta emitir sua opinião diante das câmeras, mas aparentemente a equipe e a comissão técnica não concordaram, ele deve ter sido minoritário em seu posicionamento. Corrigir o erro seria fácil, bastaria entregar um gol ao Santos.
O ideal é que tivesse sido na sequência do lance, para que a partida não sofresse nenhuma interferência e a ordem poderia ter partido da comissão técnica. Não aconteceu, tampouco na volta do intervalo, onde após uma discussão honesta no vestiário, a equipe poderia consensar no que fazer. Também não rolou.
O discurso do Juninho no intervalo ficará para história apenas como mais uma boa retórica desacompanhada de ação, algo com o qual estamos bastante acostumados no Brasil.
Não faltam exemplos de situações parecidas pelos campos de futebol mundo afora onde a postura adotada foi a de “fair play”. O argumento da legalidade aliada à competição parece convencer muita gente, para quem a atitude de fazer o gol foi correta. Como sabemos, nem tudo que é legal também é justo (em conformidade com a justiça, com a razão, em que há equidade) ou ético (não prejudicar alguém quando se tem uma oportunidade é uma questão ética), então teria sido melhor exemplo se o América tivesse abdicado desse gol e vencido a partida exclusivamente por méritos próprios.
Agora já foi. Esse jogo ainda será lembrado por muito tempo e talvez, no íntimo, Renato Marques tenha se arrependido. Eventualmente, a comissão técnica do América também. Vejam o exemplo no vídeo em que o técnico argentino Marcelo Bielsa mandou seu time tomar um gol em situação parecida…
Não farei do assunto uma apologia ao famoso espírito de “macunaíma” do brasileiro, prefiro tratar como fato isolado. Há poucos anos, em uma semifinal do campeonato Paulista, o zagueiro Rodrigo Caio impediu que o atacante Jô, do Corinthians, recebesse o terceiro cartão amarelo por uma falta que ele não cometeu no goleiro adversário. O zagueiro, que estava próximo ao lance, alertou o árbitro, que retirou o cartão, permitindo que Jô, pendurado, jogasse a segunda partida, onde inclusive fez um gol (o Corinthians se classificou para a final). Caio foi elogiado pelo “fair play” por alguns e criticado por outros, inclusive pelo seu técnico naquele momento, Rogério Ceni.
Não muito tempo depois, o atacante Jô, que no lance descrito anteriormete foi beneficiado pelo senso de justiça do adversário, marcou um gol decisivo com a mão, contra o Vasco, no campeonato brasileiro, em Itaquera. O jogo terminou 1×0 para o Corinthians e na época, não havia VAR. A mão na bola foi mostrada explicitamente na TV e bastaria uma atitude de “fair play” do atacante, admitindo a irregularidade para corrigir a situação. Não aconteceu. Não faltarão outros exemplos.
Eu fico imaginando como seria a repercussão caso Renato Marques chutasse a bola para fora. Sua atitude estaria sendo louvada ou ele seria escorraçado? Ou quem sabe, ambos? Só faltou mesmo descobrir em quem ele votou, aí o país estaria pronto para tomar posição, ou lá…ou cá!
Interessante seu texto, porque traz a questão ética, hoje tão em falta, como uma forma digna de se viver em comunidade. O mundo está pasteurizado e com valores humanos deturpados. Queremos viver em comunidade , mas seguindo nossas próprias regras e não buscando e desrespeitando um acordo de convívio mútuo. Exemplos: enviar doações ao Sul, para minorar a dor das pessoas devido às enchentes, e as mesmas serem negociadas pelo caminho. Bancos e corretoras mobiliárias cobrando taxas de serviços não prestados. Médicos incluindo procedimentos para aumentarem seus ganhos nos hospitais mesmo que não sejam feitos etc. Seu artigo traz essas questões subalternas. Onde está o “Fair play “?