Opinião

Filme – A Zona de Interesse

Assisti, ontem. De início, adianto, pelos recursos usados, especialmente os sonoros, é o tipo de filme/experiência ideal para ser assistido em uma sala de cinema, onde está em cartaz.

O título de “A Zona de Interesse” reporta-se ao perímetro com 40 quilômetros quadrados ao redor do campo de concentração de Auschwitz, o maior campo de concentração nazista da Segunda Guerra Mundial, situado na Polônia, onde cerca de 1,5 milhão de pessoas foram executadas. 

A Zona de Interesse, portanto, no filme, é o perímetro no qual os seus administradores viviam, e onde se situa o cotidiano de Rudolph Höss (interpretado por  Christian Friedel), nomeado comandante de Auschwitz, em maio de 1940, e sua família, a esposa Hedwig Höss (interpretada por Sandra Hüller), e seus filhos, durante a Segunda Guerra Mundial. A casa situava-se a cerca de 50 metros de distância de um dos crematórios, o muro estava sempre à vista de todos.

Tudo corrobora para um envolvimento emocional baseado em imaginação do horror e desconforto proposital; faz parte da proposta do filme.

Os recursos sonoros alternam-se. Gritos, tiros, sirenes, latidos de cachorro abafados ao fundo. O choro persistente de um bebê da família. As risadas das crianças em momentos de diversão doméstica, como os dias de churrasco, os banhos de piscina no jardim durante o verão. Uma trilha sonora perturbadora pontualmente utilizada em telas monocromáticas.

A IA também deu sua contribuição, o uso de fotografia térmica compôs um momento de contraponto (que pensei ser imaginário, depois pesquisei e descobri a inspiradora estória real daquela personagem …!). É luz e calor, literalmente.🤍

O filme traz mais uma visão sobre o Holocausto, algo incomparável, com conexões com o presente – pois, repito, faz parte da proposta do diretor britânico Jonathan Glazer, pelo que li, incluindo sua preocupação com o esquecimento/deturpação da história -, de uma maneira peculiar ao mostrar o cotidiano daquelas pessoas, pessoas comuns, em uma vida comum, como a de qualquer um de nós, formando um contexto absolutamente distópico, que inclui um jardim ordenado, como tudo naquele “lar”, com lindas flores, cultivadas com esmero, dividindo nossa visão com a fumaça negra, vinda dos fornos crematórios de Auschwitz.

Pelos seus “bons serviços” na administração do campo, em que testou e aperfeiçoou as abomináveis técnicas de extermínio em massa, Rudolph Höss foi promovido e substituído como comandante do campo em 1943. É o mesmo indivíduo que executa metodicamente rotinas domésticas – o que inclui contar estórias aos filhos antes de dormir, como a de “João e Maria”, dos Irmãos Grimm, pelo que li, um costume familiar alemão com propósitos moralistas e disciplinadores.

Nas palavras do diretor Jonathan Glazer, que dedicou uma década de pesquisa para fazer o filme, “Não é uma lição de história, é um aviso’”.

“”Era o lar da família Höss”, diz Glazer. Rudolph Höss era o comandante de Auschwitz; a casa onde ele, sua esposa Hedwig e seus filhos viveram durante a Segunda Guerra Mundial, a cerca de 50 metros de distância de um dos crematórios. “Eu visitei a casa e o jardim, que não é exatamente como era então. Mas ainda existe. E estar lá, naquele espaço — o que me impressionou foi a proximidade dele com o acampamento. A casa dividiu um muro com Auschwitz. Tudo estava acontecendo bem ali, do outro lado daquela parede. E o fato de que um homem viveu lá e criou sua família lá…” Glazer faz uma pausa, ainda abalado pela memória. “Como você faz isso? Quão negra uma alma deve ser.””

Quando o filme terminou, e enquanto eu descia as escadas do cinema, muda, uma frase não saía do meu pensamento.

Como ousa (m)?

Como ousa (m)!

Como, em pleno século XXI, autoridades e indivíduos que passam horas em redes sociais, com acesso a ampla informação disponível, ousam fazer comparações com o Holocausto, fazer distorções absurdas, vulgarizar termos como genocídio? Destilar ódio e ignorância em páginas dedicadas à memória do Holocausto?

Como ousa (m)!?

Corrijo, inclusive, o que tinha comentado antes de assistir o filme: não é (apenas) sobre a Banalidade do Mal descrita por Hannah Arendt, filósofa alemã judia – a qual, agora sei, não foi compreendida por muitos de seus ardorosos leitores – que cobriu o julgamento em Jerusalém de Adolf Eichmann, outro comandante nazista com um perfil muito parecido com o Rudolph Höss (ambos agiam em obediência às ordens do Führer, Adolf Hitler).

“A triste verdade é que muita maldade é feita por pessoas que nunca decidem ser boas ou más.”

✍🏻 Hannah Arendt, em “Eichmann em Jerusalém. Um Relato Sobre a Banalidade do Mal.”

O fime A Zona de Interesse é (muito mais) sobre banalização da banalidade do mal. A minha pergunta está no tempo presente, me pergunto como ainda ousam, hoje, em 2024. Quem os autoriza? Em meu nome, NÃO.

Recomendo fortemente que assistam. É uma obra prima e um antídoto para a banalização/normalização/aceitação do Mal. Vi muitos jovens na sessão. Gostei disso.

Adiante, compartilho trechos da entrevista dada pelo diretor Jonathan Glazer a David Fear, editor sênior da revista Rolling Stone, em tradução livre:

“É a imaginação mais arrepiante do inimaginável na memória recente, ainda mais horrível pelo fato de que, como o romance de Martin Amis de 2014 do qual o filme de Glazer empresta seu título (a frase se refere ao perímetro ao redor de Auschwitz, onde os administradores do acampamento viviam), força os espectadores a experimentar os campos do ponto de vista implacável de um de seus administradores. Esse aspecto foi uma das poucas coisas que ele sabia que queria fazer quando começou a pensar em fazer um filme sobre o Holocausto, um assunto de fascínio que ele atribui a ver fotos da Kristallnacht e dos acampamentos em uma das revistas da National Geographic de seu pai quando ele era menino.

“Lembro-me de pensar que eles eram pessoas reais nessas imagens,” lembra Glazer. “As pessoas que estavam sendo espancadas nas ruas, que estavam sendo colocadas nos trens, que os soldados encontraram nos campos quando os libertaram — pareciam meus parentes. Eles se pareciam comigo.”

No entanto, quando ele começou a considerar seriamente como ele poderia tentar tornar o genocídio na tela, Glazer olhou para “o mundo escuro ao nosso redor, e eu tive a sensação de que tinha que fazer algo sobre nossas semelhanças com os perpetradores e não com as vítimas. Quando você diz: ‘Eles eram monstros’, você também está dizendo: ‘Isso nunca poderia ser nós.’ O que é uma mentalidade muito perigosa.”

(…)

Juntando “três linhas, duas palavras, um parágrafo, o que quer que seja” Glazer encontrou em referência à família Höss, ele começou a ver que eles eram “horrores não pensantes, burgueses, aspiracionais-carreistas” que simplesmente normalizaram o mal.

(…)

O resultado acabaria sendo algo que não apenas detalha a banalidade por trás da banalidade do mal, mas olha para o Holocausto de uma maneira que rejeita as imagens geralmente associadas a esses filmes. “Nós nos tornamos insensíveis a eles”, observa Glazer. “É impossível mostrar o que aconteceu dentro dessas paredes. E, na minha opinião, não se deve tentar.” (Há apenas uma cena que realmente acontece dentro de Auschwitz, e a câmera fica em um close-up do rosto de Höss.)

(…)

“Mas aquele sentimento que eu estava perseguindo — eu sei o que é agora,” ele continua. “É um filme feito de um profundo senso de raiva. Eu não estava interessado em fazer uma peça de museu. Eu não queria que as pessoas tivessem a distância segura do passado e saíssem sem problemas com o que veem. Eu queria dizer não, não, não — devemos ficar nos sentindo profundamente inseguros sobre esse tipo de horror primordial que está por baixo de tudo.”

“Eu estava determinado a fazer isso não naquela época, mas agora”, acrescenta ele, calmamente. “Porque este filme não é um documento. Não é uma aula de história. É um aviso.””.

O filme chegou aos cinemas poucos dias após o 79º aniversário da libertação do campo de Auschwitz.

Por fim, deixo a indicação de um filme de 2008, disponível na Netflix, que me parece um complemento oportuno para outra visão sobre o Holocausto, em outro viés, mas, também, a partir do cotidiano de uma família nazista que vivia ao lado de um campo de concentração, sendo que é uma obra de ficção. O filme é o emocionante O Menino do Pijama Listrado.

A Zona de Interesse foi premiado no Festival de Cannes e recebeu três BAFTA nas categorias de Melhor Filme Britânico, Melhor Filme de Língua não Inglesa e Melhor Som. Também concorre em 5 categorias no Oscar de 2024 – Melhor direção, Melhor filme, Melhor filme internacional e Melhor Roteiro e Melhor Som.

  • Gênero: Ficção
  • Duração: 106 min
  • Ano: 2023
  • Direção: Jonathan Glazer

Daniela Meneses

Sou carioca, “naturalizada” no nordeste e lotada no Paraíso das Águas, com a família que formei, e é o meu maior patrimônio. O Rio segue em mim. Acredito no uso terapêutico do contato com a Natureza (especialmente o Mar), a Yoga, a Dança, a Corrida, e a Escrita, sendo esta última a razão pela qual mantenho o hábito de “pensar em voz alta” no Facebook. Graduada em Direito há 26 anos e especialista em Direito Constitucional, atuo na área. Humanista e reformista, acredito na efetividade de reformas cíclicas que conduzam ao aperfeiçoamento institucional, assegurando o exercício do conjunto de liberdades e das garantias fundamentais e individuais. A bem da verdade, na minha 1ª postagem no PDB há o suficiente para sintetizar meu “enquadramento”: me alinho aos valores do Iluminismo, da Revolução Gloriosa, das liberdades de crença, expressão, de pensamento, do direito de ir e vir e de propriedade. Por consequência, defendo o Regime Democrático, a Separação dos Poderes, o Estado laico, a Imprensa Livre, os valores humanistas, e o Due Process of Law. No mais, a pretensão adolescente de ser agente secreta (rs) talvez explique um dos meus temas prediletos: geopolítica. O gosto por história, literatura, e filosofia vem da época da escola. Provavelmente, minhas publicações, que representam minha posição pessoal, sem qualquer vinculação institucional, estarão associadas a esse mix. Até agora, estavam restritas para amigos, entre os quais estão muitos dos que fazem parte desse espaço descontraído de troca de ideias, o Papodeboteco.

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2 Comentários

    1. Grata, Marcelo! Fiz uma pequena edição hoje de manhã e acrescentei um parágrafo que havia faltado com a indicação de um outro filme. Obrigada pela leitura!

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