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Sete letrinhas: um grande spoiler

Li Os Maias sabendo demais, and I liked it!

Sempre fui contra spoilers, em qualquer narrativa, e tenho reparado que esses estraga-prazeres ocorrem com frequência em clássicos da literatura. Algumas capas de edições de Assassinatos da Rua Morgue, de Poe, por exemplo, simplesmente revelam o assassino! E eu queria ter lido Grande Sertão: Veredas sem saber a grande surpresa da trama: isso foi-me impossível devido à minissérie dos anos 1980, a qual nem vi, mas a mera escalação do elenco já entregava.

Entretanto, alguns clássicos lidos recentemente me fizeram repensar essa questão. Por exemplo, ao revisitar Dom Casmurro, pareceu-me interessante saber desde o início o seu célebre dilema, até para buscar nas entrelinhas indícios e poder tomar partido (não traiu!). O mesmo para Édipo Rei: a progressão cheia de vaticínios e negações até a chocante descoberta é mais intrigante do que a própria revelação (que, depois de Freud, ficou impossível não se saber previamente).

Agora li Os Maias, de Eça de Queirós, sobre as vidas e amores de varões de uma família de aristocratas, numa Lisboa que começa a enxergar sua decadência. Há, na trama, uma grande virada, perto do fim. O negócio é que, décadas atrás, tentei ler esse catatau de 700 páginas, mas abandonei no meio porque nada parecia acontecer. Anos depois, passando o olho por uma crítica, vislumbrei sem querer uma palavrita solta, de sete letras, que era um baita spoiler da tal reviravolta. De modo que, agora, tendo de ler para a faculdade, acabou sendo mais fácil passar pelas trocentas páginas de exposições minuciosas de arquiteturas, roupas, passeios e conversas intelectuais, porque fiquei só tentando desvendar como se manifestaria a palavra mágica.

De qualquer forma, aprendi a valorizar mais essas descrições queirosianas, a habilidade de nos colocar dentro dos ambientes. Eça tem o dom da palavra, não tem como não amar seu vocabulário, suas construções envolventes. Também foi exagero eu ter achado que nada acontecia, pois há, sim, boas tramas de amores, com aquela amoralidade da escola realista, e com personagens contraditórios, bons vivants, hipócritas, e nem por isso menos interessantes. E a acidez do autor, ao criar todo um universo detalhado de personagens representativos dessa Lisboa que não reconhece mais sua glória no espelho do Tejo, é admirável.

Enfim, ainda acho que o volume poderia ser mais curto, mas o estilo de Eça, que eu já apreciava quando jovem, continuo achando uma obra de arte. E, apesar do pequeno grande spoiler ter-me sido útil, ainda sou, na grande maioria dos casos, #teamantispoiler! Portanto, se quiser encarar o tijolão, só saiba isso: garanto que será recompensador ir até o fim!

Vladimir Batista

Vladimir Batista é escritor, professor e cinéfilo. Após 25 anos trabalhando como engenheiro em multinacionais de tecnologia, resolveu abraçar sua paixão de infância pelas palavras e por contar histórias e segue carreira na área de Letras e Literatura. Gosta de filmes e livros de gêneros variados, atendeu a vários cursos e oficinas de roteiros de cinema, de série e de técnicas de romance e tem um livro publicado pela Amazon: “O Amor na Nuvem De Magalhães”. Vladimir é casado, vegetariano e “pai” de cachorros resgatados.

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