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Excedente de óbitos na pandemia: cenários de guerra e paz

Já estamos há sete meses percorrendo a pandemia sem que haja um esclarecimento detalhado de seu real impacto no número total de mortes em relação ao período de normalidade, o que se costuma chamar de ‘excedente de óbitos’. Pouquíssimas publicações tem procurado destacar o assunto, dentre elas cito o renomado periódico britânico ‘The Economist’, talvez porque trata-se de um indicador a ser analisado após o término dessa confusão. Já é possível fazer uma análise parcial dessa realidade a partir de números conhecidos e algumas estimativas. Há um mês eu fiz um exercício sobre o tema em cinco estados brasileiros: Ceará, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Paraná. Dois deles sofreram demais (CE e RJ), dois estão no grupo dos menos impactados (PR e MG) e um ficou em posição intermediária no Brasil (SP). Resolvi aplicar a mesma metodologia para as 27 unidades da federação com os números oficiais dos cartórios na data de 30/09. Antes de avaliarmos os resultados, convém explicar algumas premissas.

Primeiramente, é importante destacar que esse estudo se baseia nas informações de óbitos reportadas pelos cartórios. Se você não acredita nelas ou acha que existe alguma conspiração para aumentar ou reduzir a sua quantidade, melhor nem perder seu tempo com a leitura.

As informações do Ministério da Saúde e dos Cartórios deveriam convergir no longo prazo e nota-se que isso tende a acontecer. No ‘consolidado Brasil’, a diferença de óbitos registrados como covid está em 3.7% até o final de Setembro (138.698 nos cartórios x 143.952 no MS). É normal que os números reportados pelas secretarias de Saúde sejam maiores, por serem obtidos mais rapidamente. É possível também que existam divergências mais significativas no ‘varejo’, em cidades ou estados, mas a lógica é que em algum momento estarão alinhados.

Dito isso, destaco que a primeira premissa para a análise do excedente de óbitos é estabelecer qual seria a quantidade normal esperada caso não houvesse pandemia. Como não existe um universo paralelo em que possamos averiguar esse número com exatidão, teremos sempre que estimá-lo com base no bom senso. Nesse caso, comparei o total de óbitos em cada estado entre 01/01 a 15/03 de 2020 e 2019, período no qual não há efeito do corona vírus. Normalmente temos um incremento de um ano para outro e variações nos resultados obtidos por estado (vide tabelas ao final desse texto). O esperado é que haja um aumento leve, que ocorreu de forma consolidada no Brasil (+3.7%). Esse índice é importante para projetar qual seria o total esperado de 2020 sem a pandemia. Aqui há uma possível fragilidade, pois eventuais efeitos de sazonalidade do inverno não estariam capturados, uma vez que tomamos o incremento durante o período de verão. Como o ótimo é inimigo do bom, seguimos com o que temos.

Com os números de 16/03 a 30/09 de 2019 em mãos, aplicamos esse multiplicador encontrado por estado para obter a estimativa de quanto seria o total esperado de óbitos se não houvesse pandemia, entre 16/03 e 30/09 de 2020. A seguir, ajustamos o mês de Setembro/20, pois a medição dos cartórios em 19/10 ainda será atualizada por algum tempo. Aqui novamente teremos uma aproximação. O ideal seria entender qual o índice de atualização dessas informações por estado, pois alguns deles podem ser mais rápidos que outros na velocidade com a qual registram os óbitos. Em uma avaliação que fiz sobre o mês de Junho no dia 19 de Julho e 30 dias depois, em 19 de Agosto, percebi que o total de óbitos no Brasil para o mesmo mês de Junho havia aumentado 16%. Tomei esse índice como padrão para todos os estados (e aqui novamente podemos incorrer em algum grau de imprecisão) e atualizei a informação de Setembro com +16% em cada estado, para encontrar então o número total de óbitos com a pandemia. Tomando a diferença entre o número real e o número esperado sem pandemia, temos o ‘excedente de óbitos’ estimado. Antes de descrevermos os resultados, importante dizer que de forma geral os óbitos decorrentes de pneumonia, infarto e septicemia caíram bastante após o início da pandemia, havendo aumento por covid, SRAG e outras doenças cardiovasculares. Quando medimos os demais óbitos, consolidados em uma única linha, normalmente não há variações relevantes. Em outras palavras, a pandemia alterou a dinâmica das fatalidades que normalmente ocorrem em uma localidade, principalmente aquelas originadas por causas respiratórias e cardiovasculares.

Sobre a redução em pneumonias e infartos, podemos atribuir à natural vulnerabilidade daqueles mais propensos a padecer dessas doenças e que foram atacados pelo covid (comorbidade). A queda na septicemia pode ser explicada pelo cuidado extremo que tem sido tomado em hospitais e unidades de atendimento médico para evitar a propagação do vírus. Por outro lado, o aumento de causas cardiovasculares deve ser devido ao fato de que as pessoas confinadas permitiram a deterioração de suas condições de saúde já ruins ou mesmo evitaram procurar um hospital para tratar de sintomas iniciais por causa do medo de se contaminar. De qualquer maneira, estamos aqui nos referindo ao todo. Um paciente de qualquer outra enfermidade é tão importante quanto o de covid e consome os mesmos recursos do sistema de saúde. Uma perda de vida também causa a mesma dor aos parentes e amigos, independentemente do fato gerador, por isso o excedente de óbitos é o indicador mais adequado para mensurar o real impacto da pandemia no cotidiano de um lugar.

O número consolidado de excedente de óbitos no país desde o dia 16/03 a 30/09 é de 105.368, 76% dos 138.698 reportados com covid, o que representa um excedente de 15.5% no período. Conforme já foi dito algumas vezes, o impacto da pandemia no país é bastante heterogêneo, com estados que sofreram muito e outros, nem tanto. No Amazonas houve 54% de excedente de óbitos, um cenário de guerra. No outro extremo, o Rio Grande Sul experimentou 1.1% a menos de óbitos do que seria o normal do período, um cenário de paz. Entre ambos, uma diversidade grande de situações, desde estados com excedentes inferiores a 10%, o que não seria algo alarmante, passando por aqueles com resultado parecido à média do Brasil e chegando nos que tiveram impacto superior a 20%, algo bastante crítico.

Cabe uma nota sobre Roraima, que aparece como um dos mais impactados pelo covid, e ao mesmo tempo com baixo excedente de óbitos. Com uma população pequena, as estatísticas podem nos iludir, pois qualquer variação mínima pode causar grande impacto nos números relativos.

Fica muito claro que em um país continental como o nosso, não vivemos a pandemia de maneira homogênea. A tese inicial de que todos os locais convergiriam para indicadores parecidos parece ter sido desmontada pela realidade, a essa altura inquestionável. Há lugares que sofreram muito menos, não somente a partir de uma comparação interna no país, como também quando avaliamos a Europa, América Latina ou Estados Unidos. As razões para isso não são objeto desse artigo, mesmo porque não tenho credenciais para decifrá-las, mas deveriam ser estudadas por especialistas para melhorarmos a efetividade das nossas ações em situações futuras semelhantes.

O quadro desmente tanto os negacionistas, que trataram a pandemia como algo um pouco pior que uma gripe, haja visto que excedentes de óbitos de 20, 30 ou até mesmo 40% são indicadores catastróficos, como também confronta as teses apocalípticas, uma vez que há regiões onde o impacto foi menor que 10% ou até mesmo negativo. Enfim, um meio termo entre as duas visões parecer ser a leitura mais razoável. Agora que está passando, ao menos a dita primeira onda, que para nós foi mais uma longeva ‘pororoca’, é importante que fujamos da superficialidade usual das análises cotidianas. Falhamos imensamente na gestão da informação ao longo da pandemia, deveríamos ao final dela superar essa deficiência e esmiuçar todos os seus números. Reconheço que esse desejo é quase uma utopia. Sigamos em frente, um dia a menos para o final da crise.

PS* Todas as informações desse artigo foram extraídas do Portal Transparência no dia 19/10/20.

Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

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Um Comentário

  1. Parabéns pelo trabalho….

    Concordo, fiz estudo semelhante e cerca de 50% dos óbitos indicados como de COVID, ou NÃO foram de COVID ou implicaram em igual número de redução em outras causas.

    Posso enviar os meus estudos se vc quiser..

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