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Olhos cegos que enxergam melhor

A distopia Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, permanece atual em tempos covidianos, vislumbrando uma falta de humanidade que teima em permanecer às nossas vistas

Eu queria dizer que Saramago escreveu uma distopia antes de ser modinha. Mas a verdade é que, quando o autor vencedor do Nobel, publicou, em 1995, Ensaio sobre a Cegueira, falando de um mundo onde todos os habitantes vão ficando cegos (e, com isso, desumanos), o propalado O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale), de Margaret Atwood, já havia saído dez anos antes. Além disso, tínhamos, desde 1948, o petardo totalitarista 1984, de George Orwell, e muitos outros, a partir de – esse sim pioneiro – O Último Homem, de Mary Shelley (de Frankenstein), publicado em 1826!

Mas considero irrelevante clamar ineditismo, porque ninguém tira o fato de Ensaio sobre a Cegueira ter a honra única de ser um romance distópico saramaguiano! O jeito típico de narrar do escritor português, como se fosse uma crônica afiada do cotidiano, cheia de digressões irônicas, enfrenta um contraste radical com uma situação onde os humanos se tornam monstros dessensibilizados. Por que isso me parece familiar? Na trama, o primeiro grupo de contaminados por esse mal da cegueira são presos em quarentena em um manicômio desativado; e o abandono das autoridades unido ao desespero desorientado dos cegos leva os homens, numa narração que segue uma alarmante lógica, à degradação e à barbárie. Em alguns momentos lembra até a série posterior de zumbis The Walking Dead!

Se for pra falar de influências ao romance, lembrei mais de Franz Kafka. O autor tcheco, em A Metamorfose e O Processo, por exemplo, já estabelecia uma progressão realista em que mal percebíamos quando o horror surreal estava sendo “normalizado”, não só nas reações humanas ao inusitado, mas também pela burocracia fria do poder. No caso do romance de Saramago, por exemplo, a primeira morte cruel de um cego pela guarda do manicômio é quase tratada como um mero efeito colateral, algo até esperado, afinal o “medo do desconhecido” perdoa qualquer medida extrema.

A descrição dessa animalização das pessoas também é mostrada no livro com recursos da escola naturalista, com vilões se transformando em selvagens. Em um certo momento, especialmente horrível, ele descreve: “Os cegos relincharam, deram patadas no chão”. Por outro lado, como sempre, Saramago confere humanidade a personagens bichos de fato, como o marcante e fofo cão que lambe lágrimas dos sofredores.

Mas estava falando de Kafka porque achei outros pontos em comum com A Metamorfose: Em ambos, é o sexo feminino que resiste em não perder a sensibilidade diante do horror. A única mulher que vê, assim como a irmã de Gregor Samsa, engole a repugnância que sente em relação ao pesadelo ao qual testemunha e não titubeia em ajudar quem precisa. Ela, entretanto, hesita em se tornar uma justiceira, em se rebaixar a um certo nível de desumanidade, o que causou críticas à adaptação cinematográfica de Fernando Meirelles, de 2008, do público acostumado a protagonistas heroicos e vingativos. Da mesma maneira, a cadência do livro, respaldada no filme, foge um pouco da dramaturgia formulaica: começa intenso, se torna excruciante e termina com uma espécie de anticlímax permeado de reflexão, aí sim, bem ao estilo do autor, como se ele avisasse: ainda sou eu a escrever!

Outra crítica que Meirelles teve de ouvir a seu filme foi das associações de cegos, que reclamaram, até compreensivelmente, que, na vida real, perder a visão não converte gente em animais. Pelo contrário, muitos deles se tornam pessoas melhores. Essa restrição me lembrou quando alguém detonou o clássico hitchcockiano Janela Indiscreta (Rear Window) para François Truffaut, dizendo que aquele cenário não tinha nada a ver com o Greenwich Village. O então crítico francês, fã de Hitchcock, retrucou: “Mas esse filme não é sobre o Village. É sobre o cinema!” Da mesma forma, Ensaio sobre a Cegueira não é, na verdade, sobre deficiência visual. É uma visão pessimista sobre a desumanidade latente dentro de cada ser humano. O próprio autor revela isso no livro, quando declara (em seu português lusitano): “Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.” Será?

Enfim, adorei o livro! Que bom que tive de ler justamente esse romance do Saramago para a faculdade. Pois se for para mergulhar em uma distopia, gênero que não está entre os meus favoritos – ainda mais tendo pontos de conexão com a nossa realidade covidiana, cujo assunto tenho até tomado aversão ultimamente – que seja por meio das palavras cativantes e inigualáveis desse gênio da nossa língua.

Ensaio sobre a Cegueira
(José Saramago, 1995)

Vladimir Batista

Vladimir Batista é escritor, professor e cinéfilo. Após 25 anos trabalhando como engenheiro em multinacionais de tecnologia, resolveu abraçar sua paixão de infância pelas palavras e por contar histórias e segue carreira na área de Letras e Literatura. Gosta de filmes e livros de gêneros variados, atendeu a vários cursos e oficinas de roteiros de cinema, de série e de técnicas de romance e tem um livro publicado pela Amazon: “O Amor na Nuvem De Magalhães”. Vladimir é casado, vegetariano e “pai” de cachorros resgatados.

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