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Não abra a porta para o primo Basílio, Luísa!

Como o clássico de Eça de Queirós se torna quase um daqueles thrillers em que tentamos avisar à personagem para não entrar nas roubadas certas e ela entra assim mesmo

Em um certo momento de O Primo Basílio, a desesperada mocinha Luísa, encurralada por chantagens, se prepara para confessar seus pecados ao amigo Sebastião. Ficamos aliviados, porque sabemos que Sebastião é um sujeito bonzinho, rico, sem julgamentos e certamente a ajudará (ei, Tião, quer ser meu migo também?). Ficamos na expectativa dela desabafar e resolver todos os seus problemas. “Desembucha, mulher!” – gritamos.

Esse é um dos princípios de roteiro de filmes de terror, né, a gente fica berrando para a vítima em potencial não descer ao porão sinistro do casarão, todo mundo sabe que não é pra descer, mas, que diabos, ela desce assim mesmo. Aquela coisa de pesadelo. Da mesma forma, na hora agá, falta coragem à burguesinha Luísa e ela nada diz ao bom Sebastião. E a gente: “P****, Luísa!”

Não me lembrava o quanto é maravilhoso esse clássico de 1878 de Eça de Queirós, que li pela primeira vez para o vestibular, há décadas. É sobre uma mulher certinha que, entediada com a longa viagem do marido, torna-se amante do primo bon-vivant (e safado) e depois enfrenta chantagens da criada amarga. Eu era adolescente quando li e devo ter passado batido por muito texto, porque, apesar de ter na cabeça a trama geral, não me lembrava dos detalhes deliciosos: o enredo intenso, as reviravoltas, as minúcias descritivas, as afiadas ironias com relação à sociedade lisboeta, os detalhes picantes (como a cena de sexo oral que mexeu com Roberto Marinho…).

E lendo agora para a faculdade, pude curtir o dom da palavra do Eça que comentei aqui com Os Maias. Como no belo trecho declamado por Arnaldo Antunes, na canção Amor, I love you da Marisa Monte, que começa com: “…tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente…”. Comparado com Os Maias, no entanto, que usa umas seiscentas páginas de exposição para umas cem só de história, O Primo Basílio não perde tempo: já sabemos no primeiro capítulo da viagem do marido, do sorrisinho de Luísa ao ler sobre a chegada do primo e da amargura da bruaca Juliana, a criada, talvez a melhor personagem da literatura portuguesa. Impossível também não imaginar a Giulia Gam como a “redondinha” Luísa e a incrível Marília Pera como a “tripa seca” da Juliana, daquela minissérie de 1988 a que assisti um pouco mas deu vontade de ver inteira agora!

Mas o que achei melhor no livro, como disse, é a bem construída progressão de como a situação vai se tornando um pesadelo de filme de terror. Aliás, uma boa discussão é por que a personagem de Luísa simplesmente não consegue sair de sua sinuca de bico. Será que é autossabotagem, como se ela quisesse se punir? Isso me remeteu ao Frankenstein, de Mary Shelley, em que o cientista Victor tem chances de evitar as ações homicidas do monstro que criara (e rejeitara), mas parece que prefere cair em suas armadilhas relativamente previsíveis. Nesse caso, me pareceu realmente uma autossabotagem, uma teoria que muitos estudiosos da obra-prima de Shelley aventam.

No caso da Luísa, as saídas de suas encruzilhadas não são tão óbvias. Mesmo assim, falta-lhe força para resolver as coisas de uma vez por todas. Seria ela uma personagem irreal, uma marionete, como escreveu Machado de Assis em sua dura (e injusta) crítica? Na edição que li do livro, o prefácio da Prof.ª Mônica Figueiredo prefere atribuir a fraqueza de Luísa a uma crítica de Eça à hipocrisia da burguesia portuguesa, que aceita imoralidade para alguns casos (convenientes) mas que carrega um moralismo destruidor de vidas para outros. E Luísa é a potencial vítima de cancelamento geral e de atrasados conceitos feminicidas do marido. Isso sem contar o lado da criada explorada no trabalho até ficar doente (e se tornar um poço de amargura). Como se vê, Eça está mais atual que nunca.

Enfim, adorei o livro, já coloco como um dos meus favoritos e espero reler mais vezes! Vamos ver se, na próxima vez, a Luísa ouve os meus apelos e age de verdade para se livrar do seu filme de terror de estimação, né? Força, miga!

O Primo Basílio
(Eça de Queirós, 1878)

Vladimir Batista

Vladimir Batista é escritor, professor e cinéfilo. Após 25 anos trabalhando como engenheiro em multinacionais de tecnologia, resolveu abraçar sua paixão de infância pelas palavras e por contar histórias e segue carreira na área de Letras e Literatura. Gosta de filmes e livros de gêneros variados, atendeu a vários cursos e oficinas de roteiros de cinema, de série e de técnicas de romance e tem um livro publicado pela Amazon: “O Amor na Nuvem De Magalhães”. Vladimir é casado, vegetariano e “pai” de cachorros resgatados.

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