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Encontros marcados com Hemingway e com a nostalgia

O livro Paris é uma Festa e o filme Meia-Noite em Paris compõem uma dobradinha irresistível sobre épocas saudosas que, certamente, foram muito melhores do que hoje. Ou será que não foram?

“Ah, bom mesmo foi aquele ano de 2020! Isolado, quietinho, em casa, de boas, com a Netflix, com meus filhotes, com meu amor, sem precisar ver gente (“they’re the worst!” – como diria Seinfeld); aaaah!, aquilo sim é que era vida: eu era feliz e não sabia!”

Acho difícil essa fala ser um dia dita por mim, por pior que se torne o futuro (toc-toc-toc). Se eu a proferir, alguém por favor me dê um tapão na pioienta. No entanto, de fato, temos a tendência de enxergar momentos no passado como melhores que o corrente. Durante os (agora percebemos!) superdivertidos anos 1980, lembro que muitos jovens sonhavam ter podido viver os “anos dourados” da década de 1950. No início dos 90, talvez a última época em que o rock viveu um grande auge, eu via aquele filme Febre da Juventude (I wanna hold your hand) e não me conformava de não ter vivido nos 60, na época dos Beatles. Hoje eu lembro, com saudades, de um longínquo ano de 1988, com minha primeira turma de amigos da escola; ou de 1993, competindo na maratoma (corrida maluca pelas cantinas da faculdade virando chopps); ou de 2007, na viagem a Paris e Roma (paga pela empresa!) com a Viviane, em início de namoro! É, tá difícil afirmar que 2020 “é que foi ano bom!”

Viviane e Vladimir, em 2007, no Les Deux Magots, um dos cafés frequentados por Hemingway.

Essa valorização da nostalgia é o tema principal de Meia-noite em Paris (2011), filme que coloquei, nesse post, no ranking de melhores filmes sobre a Cidade-Luz, e que revi segunda-feira última a convite da Viviane. O negócio é que, há umas semanas, minha esposa havia devorado o livro, também sobre tempos saudosos, Paris é uma festa (1964), de Ernest Hemingway; daí, insistiu para que eu o lesse também e emendássemos reassistindo ao filme de Woody Allen. A experiência se completou nessa semana, recomendo!

Pra quem não conhece nem um, nem outro: no filme, um dos melhores do cineasta nova-iorquino, um escritor viaja no tempo para a Paris dos anos 20, em cujos cafés você podia esbarrar com Picasso, James Joyce, T.S. Elliot, Salvador Dali… Pois pode-se dizer que uma inspiração de Allen deve ter sido o livro (mencionado no longa), que se passa na mesma época e local, com Hemingway relatando seu início de carreira, e seus encontros fortuitos com a nata da literatura e da arte (conhecidos como a Geração Perdida), radicada na então capital cultural do mundo, em especial com Gertrude Stein e o casal F. Scott e Zelda Fitzgerald – esses também em destaque no filme.

O casal Zelda e F. Scott Fitzgerald: na vida real e no filme de Woody Allen

Foi o primeiro livro de Hemingway que li, mas ainda considero que não conheço a sua obra de verdade. Isso porque o volume é considerado atípico do americano, cujos textos, dizem, são normalmente densos e sombrios (não à toa, o autor suicidou-se em depressão), e o tom aqui é bem-humorado e afetivo. Não é um romance, mas sim um livro de causos entre os anos 1921 e 1926, quando ele, na pindaíba em Paris, ralava, tentando vender contos para periódicos.

Essa foi, pra mim, a principal surpresa. Tanto o filme, como o título original do livro (A moveable feast, algo como Um banquete ambulante) passaram-me a impressão que a rotina do autor era virar todas as noites em tremendas festas, chiques, báquicas, como as do Grande Gatsby (esta obra, inclusive, foi escrita por Fitzgerald na época). Porém, mesmo na base de muito vinho, na maior parte do relato, o jovem Hemingway contava os centavos, morando em muquifos e só procurando os cafés mais baratos. Chegou a passar fome, dizendo que isso até era bom para escrever, pois aguçava os sentidos (o que não concordo, ora essa, ou pelo menos isso nunca acontece comigo, acometido que sou de um improdutivo – e insuportável – mau-humor pré-refeições).

Hemingway, no livro, revela lados anedóticos de celebridades intelectuais como Gertrude (poeta à frente do seu tempo e sua mentora, que lhe ensinava o que era verdadeiramente artístico, mas que também não titubeava em fazer vista grossa para obras medíocres de protegidos) e Fitzgerald (retratado hilariamente como paranoico e um Joselito sem-noção: capaz de te convidar para viajar juntos, insistir, e aí sequer aparecer na estação). Apesar da ironia para com seus colegas, no perfil que faz de si mesmo, o autor pega bem mais leve, admite falhas (como o vício em apostas de corrida) mas sempre se coloca como um observador equilibrado, um aprendiz, em meio a divertidos e geniais excêntricos. Acho que para compensar essa autoindulgência de Hemingway, Woody Allen não o perdoa no filme, retratando-o como impetuoso, porra-louca e mulherengo (mas também é ele quem dá a melhor dica, de vida e de escrita, para o protagonista). No final do livro, Hemingway até admite que cometeu infidelidade, mas culpa “o meio em que vivia” (ahã…) e aproveita o pecadilho para encerrar o relato, sem mais detalhes. Na maior parte da obra, no entanto, ele se derrama de amores para a primeira esposa, Hadley… Homens…

Ernest Hemingway: na vida real e em Meia-noite em Paris

O que se pode dizer daquele meio em que vivia é que foi essencial para a formação do escritor Hemingway. Não só por meio do contato com aqueles gênios da literatura e da arte, mas também pelos livros a que teve acesso. Eu já sonhava conhecer a lendária livraria Shakespeare and Company, em Paris, porque é o ponto de partida da apaixonante caminhada de Jesse e Céline no longa Antes do pôr-do-sol (também presente nesse meu ranking). Agora descobri que Sylvia Beach, a dona do estabelecimento na década de 1920, teve o mérito, ao perceber o quão talentoso (e durango) era Hemingway, de lhe emprestar dezenas (centenas?) de livros, fazendo-o conhecer melhor os russos Dostoievski, Tolstói, entre outros, que forjariam o autor genial, laureado com o Nobel, que ele se tornou. Não à toa, Hemingway deixa claro que, apesar da pobreza, foi a época mais feliz de sua vida.

A livraria Shakespeare and Company: com Sylvia Beach e Ernest Hemingway; e com Jesse (Ethan Hawke) e Céline (Julie Delpy) em Antes do pôr-do-sol.

É nesse “era feliz e não sabia”, como eu disse, que Meia-noite em Paris se apoia. No filme, os personagens de todos os tempos (da atualidade nos anos 2000; da Geração Perdida nos anos 1920; da Belle Époque dos impressionistas no fim do século XIX) estão sempre reclamando da era em que vivem e achando que os melhores tempos ficaram no passado. Mas talvez, até a oportunidade de ter essas conversas sobre nostalgia com gente inteligente colabore para que o tempo “atual” seja mais interessante que possamos enxergar sem o devido distanciamento!

Viviane aguarda na mesma escadaria do filme Midnight in Paris a condução que levou o personagem de Owen Wilson para a viagem a épocas áureas

No livro, justamente essas conversas daquela turma são o que há de mais irresistível. Lembrou-me um pouco os debates sobre arte e Portugal, regados a muita bebida, de Carlos da Maia com seus amigos em Os Maias (que resenhei aqui), de Eça de Queirós.

Carlos da Maia (Fábio Assunção) e João da Ega (Selton Mello) na minissérie Os Maias (2001)

Também me lembrou a turma boêmia de O encontro marcado, de Fernando Sabino, que li no ensino médio, em Goiânia. Foi quando tive aquela primeira turma de amigos na escola que mencionei acima e, como no romance de Sabino, combinamos, no último dia de aula de 1988, um encontro naquele mesmo lugar e hora, dali a exatos cinco anos. Luís Cláudio, o Caudão, até hoje se lembra do mantra que sempre repetíamos um para o outro a partir daquele dia: “Não perca 09/12/93, ao meio-dia, em frente ao Objetivo do Setor Universitário!”. Pior que, como no romance, quase todos os amigos perderam o contato um do outro e o encontro não deu certo: na data marcada, eu estava longe, e só o Caudão apareceu (acho que meus irmãos também acabaram indo).

Talvez haja tempos que realmente não voltam mais. Hemingway pôs fim à sua vida pouco depois de escrever Paris é uma festa, que é um livro leve e nostálgico, penso se a obra não foi sua última grande ironia. Mas eu não vou nessa! Tentarei recombinar o encontro com meus amigos do colegial! Digamos, para cem anos depois, 09/12/2088, pode ser?, em meio aos escombros do planeta Terra, em frente ao lugar onde um dia se encontrava o Objetivo do Setor Universitário, na extinta cidade de Goiânia. Já o horário do meio-dia não vai ser tão fácil de saber, ante a eterna noite macabra formada após o apocalipse fora de controle devido ao aquecimento global + zumbis + COVID79 (a exterminadora). Bem, acho que nesse cenário, sim, vai dar pra achar que, aaaah!, 2020 é que foi um ano bão!

Leitura: Paris é uma festa (A moveable feast)
(Ernest Hemingway, 1964 (póstumo))
(Tradução: Ênio Silveira)

Filme: Meia-noite em Paris (Midnight in Paris)
(2011) (Disponível no Amazon Prime Video)

Vladimir Batista

Vladimir Batista é escritor, professor e cinéfilo. Após 25 anos trabalhando como engenheiro em multinacionais de tecnologia, resolveu abraçar sua paixão de infância pelas palavras e por contar histórias e segue carreira na área de Letras e Literatura. Gosta de filmes e livros de gêneros variados, atendeu a vários cursos e oficinas de roteiros de cinema, de série e de técnicas de romance e tem um livro publicado pela Amazon: “O Amor na Nuvem De Magalhães”. Vladimir é casado, vegetariano e “pai” de cachorros resgatados.

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