Brasil

Múltiplas divagações sobre uma decisão da República das Bananas

O texto abaixo não tem nenhuma conotação jurídica, é bom que se diga na largada, pois esse que vos escreve é inapto para emitir qualquer tipo de parecer técnico sobre o assunto. Busco seguir uma linha ‘racional pragmática’ na leitura política dos fatos. E como já aprendemos de longa data, decisões do STF são preponderantemente políticas, a Corte já nos mostrou que pode dar ‘cavalos de pau’ de 180⁰ sobre o mesmo assunto sem o menor constrangimento, tirando o embasamento jurídico da cartola sempre que for necessário. Isso permite o pitaco de leigos, como eu ou você.

Sobre a decisão monocrática do ministro Fachin de anular todas as sentenças já proferidas contra Lula, a partir da tardia conclusão de que seu foro adequado era Brasília e não Curitiba, há quem sustente a tese de que por ser tão estapafúrdia, esconde a intenção de proteger a Lavajato contra danos maiores, uma vez que a Segunda Turma, também conhecida como ‘Jardim do Éden’, face à sua usual complacência, estaria inclinada acatar o argumento da defesa do ex-presidente condenado e considerar a suspeição de Moro, o que prejudicaria toda a operação, não somente a parte circunscrita ao réu mais famoso. Ao anular os processos de Lula, o pedido de suspeição perderia o efeito, a operação estaria a salvo e alguma vara da Justiça Federal de Brasília assumiria o caso, recomeçando praticamente do zero.

É uma possibilidade, uma vez que Fachin sempre foi um apoiador da Lavajato, comprovado pelo histórico de suas decisões. A menos que ele tenha enlouquecido, o que não parece ser o caso, vamos trabalhar com a razoabilidade da hipótese.

Comecemos pela decisão. Cá entre nós, se o foro correto do caso é Brasília, não era para ser decidido isso há 5 anos? Ao longo desse período, o STF ratificou Curitiba como o juízo desse processo em várias ocasiões. Na prática, a Justiça gasta milhões de reais, consome energia de toda a sociedade, percorre três diferentes instâncias, chama atenção do planeta, para que cinco anos depois, após estalo na cabeça de um juiz da Suprema Corte, resolver que nada valeu, vamos jogar quase tudo no lixo, o local da decisão está errado, não devia ser Curitiba, mas Brasília. Como é que se explica um negócio desses para alguém que vive em um país civilizado, conta para mim que eu não sei!!!!! É por esse tipo de decisão que não somos levados a sério. E nem seremos. Um lugar sem nenhuma segurança jurídica, onde até o passado firme em pedra é reescrito. Independentemente se as intenções do Fachin são nobres ou não, a decisão em si é ridícula.

Uma vez tomada, vamos avaliar suas consequências políticas. Começou a campanha eleitoral de 2022 amanhã, com Lula, o candidato de oposição dos sonhos de Bolsonaro, a cacarejar suas bravatas todos os dias. Como sabemos, parte da imprensa o idolatra, holofotes não lhe faltarão. Agora esqueçamos um pouco o causo de corrupção pelo qual ele foi condenado, para não contaminar a conversa. Lula é um político idoso, uma novidade há 30 anos. O tempo dele já passou. É péssimo que o Brasil siga martelando em personagens do milênio passado, é horroroso que a esquerda nesse período todo não tenha sido capaz de criar alternativas e dependa desse senhor para sobreviver. Veremos um acirramento da polarização já insuportável vigente no país, criadora dessa realidade binária que tanto nos emburrece. Cabe lembrar que a gênese desse processo se deu exatamente com os discursos raivosos do hoje ex-presidente, pai do ‘nós x eles’. Desde então, só piorou. E vai piorar mais.

É claro que politicamente Bolsonaro se beneficia da presença de Lula no páreo, pois ganha um opositor com alta rejeição, capaz de lhe angariar votos que em situação diferente migrariam para outros candidatos. E a julgar sobre o que os correligionários de ambos os lados já produziram em campanhas anteriores, teremos um embate de ‘altíssimo nível’, observaremos o estado da arte em ‘fake news’ e criação de narrativas falaciosas. Não tenho dúvidas de que o país perderá demais com isso.

Do ponto de vista da Lavajato em si, a operação estava sob ataque dos seus detratores a partir dos áudios e mensagens vazadas, de maneira ilegal, é importante dizer, no que tem sido chamado de ‘Vazajato’, que indicaria uma proximidade suspeita entre Moro e os procuradores, desacreditando a isenção do juiz no caso. Vamos lá, a Lavajato é odiada por boa parte dos parlamentares, com Sergio Moro como sorvedouro desse rancor, por ser o juiz que lhe deu ‘cara’. Não duvido que muitos deputados e senadores o tenham como alvo em um jogo de dardos dentro de seus gabinetes. Como o STF é eminentemente um tribunal político, o fato de as provas terem sido obtidas ilegalmente não teve nenhuma importância, e havia boas chances de que o ex-juiz fosse considerado suspeito, a partir da composição da segunda turma. Normalmente, o placar ali se dá em 3×2, com o ex-decano Celso de Melo pendendo para o lado de Gilmar Mendes e Ricardo Lewandosky. Na vida como ela é, tudo dependeria da posição do novo ministro, Kassio Nunes Marques, que tão logo assumiu, mostrou a que veio, alinhando-se ao lado ‘antilavajatista’ da turma. O 3×2 seria mantido. Aqui abro um parêntese que minha ignorância jurídica não permite avaliar, me pergunto se não seria possível Fachin pedir vista (como Gilmar Mendes fez tantas vezes) ou lançar o caso para o Plenário, situação que colocaria toda a Corte sob pressão popular. É possível que ele tenha avaliado essa possibilidade e percebido a iminente derrota por 6×5? Não sei. Procrastinar poderia ser uma alternativa melhor do que a decisão de hoje? Também não sei.

Quem nomeou o fiel da balança nesse caso? Jair Bolsonaro, em uma decisão que desagradou inclusive aos seus mais fiéis seguidores. Não é possível afirmar com isso que o presidente agiu de forma planejada para liquidar a Lavajato, essa é uma possibilidade, não uma certeza. Mas é possível afirmar que no momento em que ele poderia ajudar a operação, não o fez. Na melhor das hipóteses, lavou as mãos, como Pôncio Pilatos. Ora, se tivéssemos um novo ministro da mesma linha que um ‘Fachin’, uma ‘Carmen Lúcia’, um ‘Fux’, o placar na segunda turma mudaria para 3×2 pró Lavajato e não estaríamos aqui avaliando essa decisão esdrúxula. Então, por mais que não se possa atribuir ao presidente culpa pelo que está acontecendo, pode-se dizer que ele teve a oportunidade de evitar o pior cenário com uma nomeação diferente no STF, mas abdicou de fazê-lo.

Hora de analisar a fresta na porta pela qual entraram os ratos. Mesmo considerando a ilegalidade das provas obtidas na ‘Vazajato’, um fato inquestionável, não podemos simplesmente ignorar seu conteúdo. E a partir das mensagens e áudios, nota-se obviamente uma proximidade entre juiz e MPF, o que por si só não quer dizer nada. Troca de mensagens por ‘Whatsapp’ são como diálogos informais escritos, e a comunicação entre juiz, advogados e promotores existe. Feita essa observação, me incomodou o nível de ‘familiaridade’ entre as partes e uma postura aparentemente servil do MP em relação ao juiz. Não percebi nada de significativo no que diz respeito à fundamentação da sentença, mas tive essa sensação incômoda. Eu particularmente não acredito que essas mensagens, mesmo que fossem obtidas legalmente, valeriam uma condição de suspeição de Sergio Moro, por não haver uma contaminação das provas nos autos. Mas isso obviamente é uma opinião pessoal sem valor algum. Não nos esqueçamos que o causo todo é tão político quanto jurídico. Será que Moro deveria ter inibido essa liberdade de troca de informações com o MP? Será que ele também abria essa possibilidade aos advogados de defesa, mantendo também uma relação informal? Será que os procuradores não deveriam adotar uma postura menos dependente das ‘bençãos’ do juiz? A verdade é que essa é uma batalha onde os detratores da operação fazem parte de um ‘status quo’ encurralado, há de se esperar uma reação, e o menor erro pode ser fatal. E convenhamos, esses erros existiram. Podemos entender que foram excessos e não interferiram no curso natural das coisas, mas do outro lado há quem defenda que se tratou de perseguição. Como estamos em um assunto cujo desfecho é influenciado pelo momento político, abriu-se uma fresta, a consequência é o circo a que estamos assistindo.

Nunca me agradou o caráter messiânico com o qual os procuradores empunhavam a operação. Não sou dado a crer em salvadores da pátria, prefiro que as instituições avancem decorrente de um amadurecimento coletivo. Essa convicção de que estavam acima do bem e do mal certamente influenciou negativamente o comportamento tanto do MPF, em maior grau, quanto do juiz. E como consta nas escrituras, ‘a mulher de César não basta ser honesta, precisa também parecer honesta’.

Aos que esperam uma ação diligente da Justiça Federal em Brasília para retomar todos os processos anulados, eis um conselho: coloquem as barbas de molho. Se fosse para apostar em um desfecho, eu faria na prescrição dos casos. Isso aí vai andar mais devagar que bicho preguiça após um banquete de sábado à tarde.

Cabe um pitaco também em relação a Sergio Moro. No momento em que ele aceitou ser ministro de Bolsonaro, deixou de ser juiz e tornou-se um político. Podemos entender que foi uma decisão tomada com a boa vontade de ajudar o Brasil, mas que imediatamente abriu o leque para as teorias de suspeição. Passado um ano e meio à frente do Ministério, sentindo-se desprestigiado, não segurou o rojão, pediu para sair e o fez de maneira estabanada, prometendo uma ‘montanha’ e parindo ‘um rato’. Ganhou um contingente adicional de detratores. Do ponto de vista prático, ele poderia esperar um pouco mais e eventualmente ser nomeado para o STF. Paulo Guedes está lá até hoje e frequentemente é contrariado. Se pensarmos na utilidade para o país, o ministro da economia é melhor dentro ou fora do governo? Talvez seja algo que ele pondere a cada sapo que é obrigado a engolir. Será que não valeria a mesma análise para o caso de Sérgio Moro? Na minha avaliação, o conjunto de suas decisões desde o momento em que ele aceitou ser ministro também contribuiu para chegarmos até aqui.

Diferentemente de Paulo Guedes, que parece ter aprendido rapidamente a ter jogo de cintura para as articulações políticas, Moro manteve-se um absoluto estranho no ninho. Observando o filme em retrospectiva, seria melhor ter permanecido juiz, em se tornando ministro, seria melhor ter ficado por lá e ingressado no STF. Em se demitindo, seria melhor ter saído discretamente. Eu particularmente não o vejo com intenções eleitorais, não está em seu DNA. Também não o considero com chances de ganhar uma eleição presidencial, muita gente o detesta, tanto os fiéis apoiadores de Lula, quanto os de Bolsonaro, só isso deve dar metade do eleitorado, o que tornaria uma possível pretensão inviável.

Não é possível julgar a situação de hoje sem passar pelas decisões de um dos protagonistas dessa história e cabe a Sergio Moro também uma parcela de responsabilidade, mesmo que não tenha sido intencional.

Feitas todas essas divagações, lamenta-se profundamente o espetáculo de falta de civilidade, segurança jurídica e previsibilidade. Temos a certeza de que não podemos confiar em nossas instituições. Não dá para reclamar do ‘Risco Brasil’, ele está em seu devido lugar, sempre alto. A tristeza é que tampouco podemos terceirizar a culpa, não foi um povo estrangeiro que criou essa esbórnia, fomos nós, o conjunto da sociedade civil. Dá vontade de entrar com uma ação no STF solicitando a anulação da independência do Brasil em 1822. Vamos voltar para Portugal e fazer parte da União Européia! Precisamos de muita resiliência para suportar o que vem pela frente. Não bastasse a pandemia, agora essa….

Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

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