Opinião

Sob a sombra de um Ipê

“Não há florestas de ipês. Há ipês nas florestas. Um aqui, outro lá. Como não há multidão de
amigos. Há amigos na multidão. Raros, consistentes., mas poucos…”
Autor desconhecido

Nasce uma criança atípica, nasce uma família atípica

No ipê, a flor é frágil e passageira. O tronco é sólido e resistente. O tronco é a alma. A flor é a
palavra…”

Hoje, 30 de setembro, há 33 anos , ganhei meu primeiro sobrinho Guilherme, filho de minha irmã mais velha. Eu tinha apenas 14 anos, e lembro que foi um dos dias mais felizes da minha vida. Saí mais cedo da escola, ansiosa para ver o rostinho dele. Guilherme era lindo,  cabelos e olhos escuros e grandes cílios, roliço como qualquer bebê bem nutrido. Não cheguei a notar nada de diferente, exceto o formato de sua cabecinha, um pouco mais estreita no topo. Recordo também,  de um clima diferente no ar. Um quê de não dito que pairava como uma nuvem de dúvidas e questões não respondidas. E aí, veio o primeiro baque : meu sobrinho fora diagnosticado, inclusive sem nenhum tato , pela médica, com Microcefalia, uma condição neurológica rara, na qual o cérebro da criança não se desenvolve de forma completa, o que pode levar à lesões cerebrais em diversas áreas. No caso dele, atingiu áreas da visão e coordenação motora. Para mim, ele era apenas meu sobrinho naquele momento. Nada mais importava. Apesar de ter iniciado a estimulação precoce aos 15 dias de nascido, meu sobrinho não conseguiu chegar a andar ou mesmo falar. Você, leitor, pode estar pensando “nossa, que barra! Quanta resiliência…”, e por aí vai. Realmente, os 10 anos em que Guilherme esteve conosco, somaram-se algumas internações, devido a sua saúde debilitada. Mas também, tivemos momentos de alegria e aprendizado. Àquela época, fim dos anos 80 e anos 90, não se costumava ver muitas pessoas com deficiências intelectuais ou físicas, nas ruas. Nas escolas então, nem se fala. Salvo raras exceções. 

Em dezembro de 1998, infelizmente, aos 10 anos, Guilherme deixou esse plano e muita saudade. Apesar de todas as suas limitações, ele conquistou seu espaço na família e nos ensinou, em épocas ainda de exclusão quase que total, que cada um merece ter seu lugar no mundo. Merece nascer e ser quem se é. Há alguns anos, li o texto de uma mãe de criança com síndrome rara, que falava exatamente do direito da pessoa atípica de viver e de ser quem é No texto, comenta de uma cobrança sem precedentes em nós, mães, para que façamos nossos filhos se adaptarem a um mundo normotipico. Existem Pessoas com deficiência, que não irão conseguir andar ou falar, como meu sobrinho. E, como ela diz, “ está tudo bem, mãe.” Filhos são filhos e, cada um nos ensina algo diverso. A inclusão começa quando se dá condições essenciais para que o outro possa viver. Sim, não é um caminho fácil. Nesse percurso, há renúncia, tropeços, vitórias, derrotas, como em qualquer maternidade. Apenas com algumas nuances e diferenças. 

14 anos depois, nasce outra criança atípica e outra mãe, que já foi tia atípica

No dia 17 de junho de 2012, nasceu minha segunda filha, Maria Beatriz, 14 anos após a partida de meu primeiro sobrinho. Ela nasceu de madrugada, após 2 dias de muitas contrações.  Era linda, pequena, magrinha, do tamanho do meu antebraço.  Mas, algo parecia diferente ou igual? a uma situação já vivida. Perguntei à minha médica se estava tudo bem diante daquele  silêncio sepulcral. Após alguns segundos que pareceram uma eternidade, ela respondeu que sim e colocou minha filha ao meu lado. Pensei “ops, conheço esse clima. Tem algo de estranho e conhecido, ao mesmo tempo”.  De olhos levemente amendoados, cabelinho espetado, narizinho,  orelhinha, boquinha minúsculos, Bibi( como é conhecida), mais parecia aquelas bonecas newborn.  Mas, “peraí, esse clima, esse rostinho redondo, as orelhinhas mais baixas, e ela não parece em nada com a irmã “ E foi ai que, sem ninguém precisar me confirmar, vi que ela tinha Síndrome de Down. Comentei com meus pais, meu marido(que já sabia), uma amiga do trabalho que veio me visitar. 

O martelo foi batido pela geneticista, que entrou no quarto com uma cara de meu Deus. Eu só disse “ não lhe conheço. Mas nem precisa me dizer. Minha filha tem Down,né?” E ela falou que sim, mas que ela era muito ativa no berçário, mesmo com o probleminha no coração . Oi? E é cardiopata também? Meu mundo desabou por dentro  e, estranhamente,  de uma forma muito calma e até com um sorriso nos lábios, disse  acreditar que um raio não caísse duas vezes num mesmo lugar. Tudo que se possa imaginar rondou minha cabeça. Passei 5 dias devorando todos os brownies de lembrancinha do nascimento. Chorei, sofri, senti algo como se fosse um luto pelo bebê que não veio. Parecia que um trator havia passado por cima da minha cabeça. E eu só pensava no meu sobrinho e em como seria a vida da minha filha. E quando eu morrer? Quem vai cuidar dela?  Num turbilhão de emoções, escutei coisas inimagináveis, desde que Deus quis assim, ou que era uma  missão,  ou foi um castigo de vidas passadas, ou deve ser um problema hereditário. A minha família,  que já era árvore que dá sombra, esteve sempre firme do meu lado. Mas eu só queria a minha filha de volta. Eu não sabia nada sobre aquela criança. Porém, quem sabe  tudo de seus filhos?

Do luto à luta

O momento do “chega” finalmente se apresentou. Recebi a ligação de um primo que falou a coisa mais sensata de todas as manifestações. Ele me disse que não ia me dar lições ou falar coisas sem sentido porque só eu sabia o que estava sentindo. E que apenas iria me passar o telefone de uma amiga, que tivera também uma “surpresa” cromossômica (acho menos pesado do que falar em anomalia cromossômica. Nossos filhos não são anomalias). E aquilo marcou o período de sacudida. Encontrei uma sombra num momento em que me sentia  perdida num deserto escaldante de desinformação. Eu, psicóloga, tia de um menino com Paralisia cerebral, achava que sabia tudo e estava preparada para emoções desconhecidas. No entanto, não sabia nada sobre minha filha. Era uma completa ignorante, cheia de pré- conceitos sobre a sua condição . Sim, já estava meio que escaldada pelo convívio com meu sobrinho e o medo de perder foi tão grande que me deixou completamente perdida. Nesse caminho, eu tive a sorte de ter a sombra de pessoas que passaram pelo mesmo ou por algo parecido. Eu tive minha irmã,  a amiga do meu primo, que eu nem conhecia (hoje somos amigas), a amiga de uma amiga, uma conhecida de uma amiga, o pai da primeira bailarina de sapatilha de ponta, que me enviou seu livro, e tantas outras pessoas e vídeos que assisti e que me fortaleceram. Corrente de amor entre mães atípicas é algo inquebrável. Sabe aquela história de ninguém solta a mão de ninguém? É meio que isso aí. A gente se olha e se entende. A adversidade nos aproxima. E as conquistas de cada uma de nossas crianças nos alegram. Elas nos dão força e nos fazem mais fortes na luta pelos direitos de nossos filhos.

Uma sombra de Ipê pra chamar de sua

O ipê marca a sua presença na paisagem, como o amigo marca a sua presença na memória…”

A idéia desse artigo surgiu como forma de homenagear meu sobrinho Guilherme, que faria 33 anos, se estivesse nesse plano. Todos os anos, o dia 30 de setembro não é apenas um dia de saudade, mas também um dia de agradecer ao Guigui por ele ter contribuído tanto para a minha formação pessoal e profissional. O impacto de sua vinda à minha vida foi realmente a de um raio que iluminou e me deu forças para seguir meu caminho. Não sei por quê, pensei nele como meu primeiro ipê. Ele nunca me pediu nada. Mas eu o amei incondicionalmente como uma mãe ama a um filho. E lá na frente, ele me retribuiu com o que deixou na minha memória. A partir de Guilherme, plantamos a primeira sementinha num terreno pouquíssimo fértil, aonde pessoas como ele e minha filha, são bem vindos ao mundo. Mostramos a todos que conviveram conosco, que não é porque alguém nasce diferente que não pode ser amado, respeitado e se sentir acreditado. Pessoas com deficiência podem ser felizes sendo quem são. Não necessitam de pena; precisam de respeito. E de mim, nasceu o desejo de oferecer um Ipê frondoso e cheio de sombra para outros pais e mães que se sentirem perdidos no meio desse deserto desconhecido e que parece assustador. Eu costumo dizer que não sou Pessoa Jurídica, nem possuo uma ONG. Eu sou apenas Pessoa Física e sempre pronta a oferecer minha sombra a quem precisar. A você, mãe, que acabou de ter seu filho e ele veio diferente do que imaginava, está tudo bem. Eu e outros ipês  cheios de sombra, estaremos aqui mesmo sem te conhecer. 

*Dedico este artigo ao meu sobrinho Guilherme. Obrigada por ter te conhecido!

Links que me ajudaram nesse trajeto:

http://youtube/flK5st2s3kA

http://youtube/sJLSj43nSil

Cena pós créditos: Quando dizem que minha filha é um anjinho. Eu sorrio e penso: só que não.

Georgia Lago

Piauiense, 47 anos, mora longe da terrinha há 20 anos. Vida quase cigana, morou em 4 estados e se mudou 7 vezes. Quis ser tanta coisa, de astronauta à desenhista, de cientista à escritora, que precisou cursar Psicologia para não dar um nó na cabeça. Foi meio Amèlie Poulain quando criança e acabou se encontrando na Psicanalise. Formada em Psicologia há 22 anos, trabalhou em todas as áreas afins. Mas sua paixão foi o atendimento à Dependentes Químicos. Recentemente graduada em Design de Moda, se afastou dos atendimentos para pesquisar novas formas de incluir Pessoas com deficiência através do vestuário. Sua maior paixão é ser mãe de duas e, atualmente se dedica as suas filhas e a defesa dos direitos de Pessoas com Deficiência.

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6 Comentários

  1. Geórgia,
    Meus parabéns por seu belo artigo.
    Voltei ao passado e realmente mexeu comigo.
    Reativar a memória de uma forma tão prazeirosa do meu sobrinho neto e afilhado foi simplesmente indescritível.
    Obrigado!
    Nilo Carvalho

  2. Geórgia! Que texto! Pra começar o sábado emocionada, embasbacada com sua sensibilidade, com seu amor que jorra por entre as letras e apaixonada pelo Gui e pela Bibi.

  3. Querida Georginha, conheci de perto o Guilherme e todo o amor que você e sua família sentia por ele. Muita vezes somos abençoados de formas diferentes, porém é necessário a sensibilidade para perceber. Lindo texto. Parabéns!! Minha amida, Georgia.

  4. Que texto lindo!! Impossível não se emocionar. Guigui e Bibi são muito abençoados por terem nascido nesta família tão acolhedora e sensível.
    Parabéns por expor e dividir, lindamente, seus sentimentos conosco.

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