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O pecado capital do Jornalismo

Sou uma apaixonada por informação. Apaixonada e defensora de informação em geral, do tipo que acredita que os meios de comunicação têm um papel importante e por isso sou contra a extinção ou o fechamento de qualquer um que seja por achar que desinformação se combate com mais informação – e não com menos.

Mas não sou néscia (adoro essa palavra) de não reconhecer que a imprensa brasileira mereça duras críticas. Há sete pecados capitais, e o Jornalismo padece de vários deles, mas o pior sem dúvida é a preguiça e muitos dos erros que vemos na imprensa se devem mais à preguiça do que à ideologia, ao contrário do que muita gente pensa.

Quando dava aulas de Jornalismo na graduação e de Comunicação Corporativa na pós-graduação explicava isso para meus alunos. Eles chegavam cheios de teorias da conspiração, em especial na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). Com exemplos de notícias do dia fica mais fácil, mas garanto que muitas vezes a escolha de uma foto para ilustrar uma matéria é mais uma questão de espaço (no caso dos impressos) ou de preguiça (nos digitais ou nos impressos) do que por viés político. É comum de escolher entre as primeiras opções que aparecem, ou entre aquelas que não tem direitos autorais.

Vejam bem. Sou ardorosa devota de Nossa Senhora da Interpretação de Textos e me esforço para ser bem clara no que digo e escrevo, mas nunca é demais sublinhar: não digo que não haja viés político na imprensa. Apenas digo que isso acontece menos do que se pensa.

Quando comecei na profissão adquiri o saudável hábito de recorrer aos Centro de Pesquisa ou Centro de Informações (os famosos CIs) dos jornais em que trabalhava. Basicamente, um arquivo sobre o que a mídia havia publicado, tudo cuidadosamente catalogado.

Fazia isso por dois motivos: primeiro para pesquisar se o assunto era realmente importante pois, apesar da minha prodigiosa memória poderia ter deixado passar algo ou mesmo esquecido e, mais ainda, se era novidade – nada mais chato do que requentar notícia velha para atender aos interesses do entrevistado. Depois, para ter subsídios para não fazer pergunta idiota e, principalmente, para não aceitar resposta idiota. Sempre entendi que meu patrão era o leitor e é a ele a quem devo respeito e a quem tenho que entregar qualidade de informação.

Nos primórdios da minha carreira, os arquivos eram em papel. Se eu ia ao lançamento de um carro, por exemplo, dirigia-me (adoro uma ênclise, ainda que fraquinha como esta) até o CI e pedia a pasta do fabricante do veículo, da qual constavam todas as matérias publicadas por boa parte dos meios em que a empresa estivesse citada ou fosse a fonte. Também solicitava a pasta da indústria automobilística como um todo e, eventualmente, outras com informações que poderiam ser úteis como exportações, importações, autopeças, inflação, políticas de subsídios, etc.

Folheava cada uma, lia as matérias e fazia anotações. Ia para a entrevista (ou a fazia por telefone) e muitas vezes voltava ao CI para mais informações. Eventualmente, contatava novamente a fonte para complementar ou rebater algo que havia sido dito e só depois escrevia o artigo. Trabalhoso? Claro, mas necessário. Nunca consegui não fazer todo esse processo e sempre fui figurinha carimbada nos CIs, onde fiz grandes amigos. E não venham me dizer que hoje não dá tempo de fazer isso pois naquela época já escrevia para o jornal impresso, para a agência de notícias do grupo e eventualmente para outro meio da empresa, como uma revista ou outro jornal. E, claro, eram várias matérias no mesmo dia, sobre assuntos totalmente diferentes, redigia duas colunas diárias quando estava na Gazeta (de uns 18.000 caracteres cada uma) , participava de duas reuniões diárias, uma para decidir a pauta do dia e outra para decidir as matérias que iam para a primeira página e editava duas editorias. Isso sem deixar o saudável hábito de telefonar para as fontes, apenas para conversar e saber se tinham alguma novidade.

Obviamente, em algum momento da minha carreira isso se tornou digital e nem preciso dizer que hoje isto tudo é mais fácil. Não é necessário nem levantar da cadeira para acessar o Google e pesquisar tudo em segundos. Posso até fazer isso pelo celular, quando estou na rua, e durante a entrevista. Isso fez com que as matérias ficassem mais completas? Infelizmente, não.

Lembro do executivo de uma multinacional francesa do segmento químico que era piada entre os jornalistas mais cricas como eu por anunciar várias vezes, como novidade, o mesmo investimento para um mesmo ano. Cansei de ir em entrevistas coletivas dele, voltar para a redação e não ter uma única linha para escrever, pois não havia novidade alguma.

Certa vez o pauteiro do jornal (aquele que escreve a pauta, as sugestões de assuntos a serem cobertos ao longo do dia) me questionou por que os outros jornais tinham num determinado dia a notícia de um anúncio dessa empresa e eu, que era especializada nesse setor, havia “tomado um furo”. Prontamente, mostrei a matéria de um par de meses antes em que já havia divulgado isso e ouvi um pedido de desculpas, pois era norma da Gazeta Mercantil não repetir notícia, por mais entrevista coletiva que se fizesse. Mas enquanto isso, o tal executivo ampliava seu espaço na mídia, pois sempre aparecia. Na época não havia LinkedIn, mas hoje ele certamente estaria recheado com cópias das matérias e até mesmo alguma avaliação de cobertura na mídia que ele conseguia sem desembolsar um centavo.

Pode parecer implicância minha, mas é apenas coincidência, pois algo muito parecido aconteceu também faz algumas semanas numa postagem do Marcelo Guterman. A notícia envolvia uma fábrica chinesa de veículos elétricos. Uma publicação financeira havia divulgado que a fabricante GWM lançaria o primeiro carro importado pela marca no mercado brasileiro, em março. Uma emissora de televisão anunciou que a empresa chegaria ao Brasil também em março e ainda vinculou a notícia (sic, pois não é novidade) à visita do presidente da República à China este ano, como se uma coisa estivesse ligada à outra. Detalhe: há notícias divulgadas na mídia em geral em janeiro do ano passado sobre a compra da planta da Mercedes-Benz em Iracemápolis pela GWM e o site especializado Autoentusiastas havia publicado a notícia ainda antes, em 2021. Ou seja, a empresa não chega agora em março e o fato nem tem nada a ver com o atual governo, que naquela época nem havia tido sua candidatura formalizada e, muito menos havia ganhado as eleições. Aliás, a fábrica só começará a produzir no ano que vem…

Evidentemente que a chegada de novas fábricas de veículos é uma boa notícia. Mas repeti-la insistentemente, ou “vender” o fato como novidade várias vezes não multiplicará os benefícios. Assim como acontecia com aquela empresa química, não é porque se anunciava quatro vezes um investimento de sei lá, US$ 10 milhões, que ele virava US$ 40 milhões. Ou anunciar três vezes que se abrirão 300 novos empregos não fará com que sejam criadas 900 vagas.

Como sou viciada em noticiários, leio, vejo e escuto de tudo, sem preconceito de viés mas, claro, alguns meios me cansam mais por bater na mesma tecla ideológica, especialmente aqueles que o fazem sem argumentos. Mesmo assim, gosto de acompanhá-los para evitar ficar dentro de uma bolha onde só se diz aquilo que eu acredito seja o mais correto.

Nem tenho o que dizer das mensagens postadas nas mídias (anti) sociais. É frequente eu ler uma notícia com um link que deveria confirmar o que diz o texto, mas, na verdade, não o faz ou até mesmo o contraria. Nesse caso, é menos preguiça de quem escreve e mais porque sabe que quem lê não verifica. Quem não lê trocentos comentários sobre uma notícia que foram escritos apenas com base no título que muitas vezes é click bait ou apenas mal escrito? Eu, muitas e muitas vezes por dia. Mas somos poucos os que fazemos isso. Políticos adoram esse comportamento: postam denúncias ou sérias acusações e incluem links, geralmente da media mainstream, que sequer confirmam o que está dito. Mas com isso, passa-se uma certa credibilidade.

Essa é outra questão interessante: vejo com frequência comentários como “disso a imprensa não fala” e a criatura está comentando um post, com link e tudo, de um texto jornalístico. Recentemente aconteceu numa postagem do Victor Loyola. Eu respondi à pessoa com uns cinco links de sites jornalísticos conhecidos e relevantes, mas teria muitos mais para exemplificar. É claro que a comentarista nem disse nada, sequer um “ops, errei”. Isso quando não postam o link e ainda escrevem “disso a imprensa não fala”. Ah, essa falta de coerência!

Nora Gonzalez

Nora Gonzalez é jornalista com pós-graduações em Comunicação Corporativa. Foi repórter e editora em jornais como Gazeta Mercantil e O Estado de S.Paulo e trabalhou em diversas multinacionais cuidando da Comunicação Interna e Externa no Brasil e na América Latina. Atualmente tem uma coluna no site Autoentusiastas.

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2 Comentários

  1. Começando do fim: sempre quer você ler “isso a mídia não mostra”, saiba que, ou é fake, ou não fala da forma que a pessoa acha “certa”.
    Concordo plenamente que a imprensa é mais preguiçosa do que ideológica. Na verdade, diria que é mais limitada, no sentido de má formação desde a mais tenra idade.
    Enfim, parabéns pelo artigo, muito bem escrito, as usual.

  2. Nora, seu texto é fluído, bem-humorado e gostoso de ler. Você aprecia a ênclise e eu a mesóclise, embora, essa última, seja mais difícil de usar em minha opinião. Quanto à preguiça no Jornalismo, você tem parte de razão, porque acredito que alguns jornalistas recusam-se a trabalhar mais e aprofundar a pesquisa dos fatos. Outro ponto falho no jornalismo atual é o viés político, embora considere essa tese com peso menor. Assisto alguns programas jornalístico na TV, aqui o “J” minúsculo, e vejo muita tendência pró determinado governo. Parece que isso é cíclico e uma parte da imprensa dobra-se a isso.

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