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Censura: você vê por aqui?

Sabe todo aquele papo de liberdade de expressão quase ilimitada, nos moldes dos EUA, que muitos dos bolsonaristas erguem como bandeira aqui nas redes sociais?

Para vários deles, é tudo bola murcha quando o pêndulo pende para o seu lado.

De uma feita, eles aparecem, com toda a indignação do universo, para defender escroques do quilate de um Roberto Jefferson (e, veja: não concordei com sua prisão na época).

Pois é. Anderson Torres, o ministro da Justiça e Segurança Pública do governo do mito, chegou a suspender a exibição do filme “Como se Tornar o Pior Aluno da Escola”, com direção de Danilo Gentili, em que Fabio Porchat faz uma ponta.

O ministro alegou que a suspensão foi aplicada “tendo em vista a necessária proteção à criança e ao adolescente consumerista”. Foram citados, para embasar a decisão, o Código de Defesa do Consumidor e a Constituição Federal.

Vários políticos e jornalistas bolsonaristas, incluindo Augusto Nunes, concordaram com a decisão, se colocando como horrorizados.

Após alguns protestos e também sabendo que no final a justiça não iria corroborar sua decisão, o ministro corretamente voltou atrás e pediu a reclassificação do filme para 18 anos, embora acho que nem isso não se justifica (ver depois), mas censurá-lo seria algo além da conta.

O engraçado é que muitos bolsonaristas elogiaram o filme em 2017 quando o Danilo Gentili apoiava Bolsonaro.

O pastor Marcos Feliciano, por exemplo, publicou na época o seguinte: “Há tempos não ria tanto”. Feliciano apagou o post, disse que não se lembrava da cena e que devia ter ido atender a um telefonema.

Outra curiosidade é que a notícia foi destaque até no Jornal Nacional em matéria de 4’33” (uma tremenda propaganda para o filme do Danilo) no dia 15 de março, mas sem citar Danilo Gentili (cuja citação do nome deve ser proibida na emissora).

Outra coisa inédita é que o grupo Globo rompeu o gelo e o jornal “O Globo” entrevistou em 15 de março o Danilo Gentili sobre o caso, que também está na capa do jornal do “O Globo” de 16 de março.

Outros apareceram para louvar a censura, citando um precedente no tempo da Dilma: em 2011, o filme sérvio “Um filme sérvio – um terror sem limites” foi proibido em todo território nacional. Não adiantou muito, pois o filme foi liberado em 2012 pela justiça. O filme, de fato, tem cenas de sexo muito cruas entre adultos e crianças, ainda que tenham sido usado robôs, bonecas e outros truques.

Film notes – A Serbian Film | The Kim Newman Web Site
Um dos algozes do Terror sem Limites, o tal filme sérvio.

Se tal decisão valesse, eu aguardaria o mesmo ministro proibir diversos episódios da Law & Order SVU – Special Victim Unit por mostrar, de forma não explícita, antagonistas abusando de crianças e falando coisas lascivas, aqui com classificação para 18 anos.

Law and Order terá episódio inspirado em escândalo de Harvey Weinstein
Série bastante realista com foco em crimes sexuais, inclusive contra crianças

E seria até possível o dileto ministro censurar também  American Pie 1 (1999), classificado para 14 anos, já que lá uma mulher de pouco mais de 40 anos seduz um garoto virgem menor de idade, cometendo um ato ilegal, visto que nos EUA, em quase todos os estados, a idade de consentimento sexual é 18 anos, enquanto aqui no Brasil é de 14 anos. E ainda tem a famosa narrativa que uma adolescente conta o que ela fazia com a flauta.

American Pie: Stifler's Mom star reveals REAL bond with Finch actor | Films | Entertainment | Express.co.uk
O virgem em roupa da festa de formatura com a madona (American Pie 1)

Temos ainda a famoso clip de Stacy’s Mom de 2003 do conjunto Fountains of Wayne, onde um garoto fica maluco pela mãe de sua namoradinha.

Can We Talk About The Danger Wank In The 'Stacy's Mom' Video? - LADbible
Stacy’s Mom, vídeo da envolvente música do Foutains of Wayne

A censura ao filme do Danilo tem alguma lógica?

Eu vi o filme hoje na NetFlix. Gosto é algo muito relativo, mas não deu para rir em nenhuma cena. Para mim, o filme é fraquinho.

 O longa no dia 16 de março chegou a ser a 3ª produção mais vista do dia no NetFlix.

Culpa da divulgação do governo, cujo tiro saiu pela culatra.

Senti-me perdendo 1:45h do meu tempo por causa desta maldita censura, que terminou me deixando curioso para ver o filme. Em suma, má decisão da minha parte.

No entanto, obviamente é uma presepada e uma tremenda fake news considerar o filme “Como se Tornar o Pior Aluno da Escola” e a tal cena citada de 1 minuto como se fosse qualquer tipo de apologia à pedofilia.

A cena referida apresenta Cristiano, o personagem de Fabio Porchat, logo no início do filme, tentando, de forma frustrada, chantagear, para que um dos 2 adolescentes, protagonistas do filme, o masturbe, para que ele não conte algo sobre eles para a escola. A cena é totalmente não explícita, não mostrando absolutamente nada.

Dentro do filme, Fabio Porchat é claramente um mau-caráter dissimulado que faz uma pequena ponta no filme.

Ministro da Justiça chama filme com Porchat e Gentili de 'asqueroso' e diz que tomará providências | Jovem Pan
Aqui, aparece Fabio Porchat na tal cena.

Só mesmo a vontade de alguns pilares bolsonaristas de criar uma lacração, talvez para distrair os brasileiros sobre temas mais relevantes.

É preciso uma tremenda dose de histeria, hipocrisia, exagero ou miopia para enxergar qualquer relação minimamente tênue do filme com apologia à pedofilia, sendo que tecnicamente, sequer se aplica este termo, porque o filme usa adolescentes e não crianças.

ECA veda este tipo de conteúdo?

Alguns internautas têm levantado que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no seu artigo 241, vedaria filmes assim, citando a postagem da jurista Janaina Paschoal.

Pode ser uma imagem de 1 pessoa e texto que diz "Janaína Paschoal 6h. Conselho àqueles que estão dizendo que a discussão sobre o tal filme seria censura: Leiam o artigo 241 do ECA e todas as suas letrinhas! Até a simulação de criança OU adolescente em situação pornográfica é CRIME no Brasil! No caso, adolescentes REAIS participaram das cenas! A situação ultrapassou, em muito, a apologia!"
Janaína Paschoal diz que este filme incorre em crime previsto no ECA

Vejo este tipo de interpretação como muito extrema porque o texto se refere à  cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente e no final a lei detalha o conceito:

A expressão “cena de sexo explícito ou pornográfica” compreende qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais.

No caso, a cena envolve personagens completamente vestidos, onde o único ponto mais polêmico é usar a palavra pun(*) ao se referir ao convite do antagonista adulto para um dos estudantes adolescentes masturbá-lo. Ou seja, não ´dá, nem forçando, para considerar isso dentro da definição posta acima.

Mais a mais, pelo artigo 241B,  é vedado adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente.

Ou seja, se o conceito fosse tão rígido como algumas pessoas alegam, todas as cenas simuladas envolvendo crianças ou adolescentes e adultos em séries e filmes estrangeiros com esta temática estariam enquadrados neste quesito e todos os distribuidores de conteúdo estariam incorrendo em crime.

Liberdade de expressão deve ter limites?

Sou contra a censura de modo geral, excetuando elementos que sirvam claramente para incitar o cometimento de crimes.

Não aprovaria de forma nenhuma que se permitisse um filme que retratasse a pedofilia, por exemplo, como algo bom.

Por exemplo, acredito que influencers, de fato, podem ter o poder de estimular (com as palavras certas, mesmo sem ser totalmente explícitos) uma parcela de seus seguidores.

As pessoas são diferentes, sendo assim elas reagem de forma diferente ao mesmo discurso.

Faz sentido que um discurso de ódio consistente influencie pessoas mais suscetíveis, que já tenham dentro de si estas ideias em estado bruto, e que, desse modo, aumente a chance desse tipo de pessoa vir a cometer atos de violência contra pessoas do grupo alvo.

A Psicologia Social é o ramo da Psicologia dedicado a estudar os mecanismos que ajudam a explicar o comportamento das pessoas médias na nossa sociedade.

O fascinante é que o estudo desta área é repleta de pesquisas onde se recrutam pessoas sem dizer o que está acontecendo ou falando de forma vaga, como se fosse um “pegadinha” científica.

O campo da possibilidade de persuasão de seguidores a partir de discursos de ódio tem sido estudado pela Psicologia Social há muito tempo e existem diversos estudos sobre este tema, como esse aqui de 2019.

O que fazer no campo legal?

Defendo que existam leis menos vagas que as atuais para proteger a sociedade de discursos de ódio.

Sei dos perigos de restrições à liberdade de expressão e acho que qualquer lei neste sentido tem que ser muito bem redigida e até meio prolixa, para não deixar margem de dúvidas quanto à sua interpretação. No entanto, a subjetividade nunca pode ser 100% eliminada.

A lei precisa ser super clara, para evitar a sua aplicação excessiva e generalizada além do necessário. Acho que conversa na mesa do bar, frases irônicas, humor e muitas coisas correlatas não caracterizam discurso de ódio.

E nos EUA? Pode tudo?

Muitos defendem com paixão a liberdade de expressão, mesmo no caso de discurso de ódio, citando os EUA como o paraíso na Terra, em nome da tal primeira emenda.

A primeira emenda, a mesma que permite nos  EUA a legalidade do partido nazista, também torna possível que seja legal por lá a organização NAMBLA (North American Man/Boy Love Association) que defende abolir as leis de idade de consentimento que criminalizam o envolvimento sexual de adultos com menores e faz campanhas pela libertação de homens que foram presos por contatos sexuais com menores que não envolvem o que considera coerção.

NAMBLA logo.svg
A sigla da maldada organização norte-americana em prol da pedofilia.

Epílogo

Liberdade é importante, mas não pode ser ilimitada.

Como o filósofo inglês Herber Spencer (1820-1903) dizia: “Todo homem é livre para fazer o que quiser, desde que não infrinja a mesma liberdade do outro”

Óbvio que filmes de ficção podem dar ideias para criminosos. Só que não podemos deixar de ter filmes por causa disso. Sendo assim ´e natural que filmes de ficção retratem crimes, que é algo que faz parte de nossa realidade. Isso incluem filmes como o do Danilo, independente de sua qualidade ou falta dela.

Da mesma forma, o mundo não pode banir carros e motos particulares, a despeito que eles respondam por centenas de milhares de óbitos anuais no mundo e que transporte coletivo seria muito mais seguro.

Em suma, tudo isso faz parte da vida. Inclusive a morte.

O que não se pode tolerar são pessoas que, em nome da liberdade de expressão, atuem de forma consciente, insidiosa e articulada para estimular, influenciar, manipular e persuadir seus seguidores a cometer atos criminosos, a partir da instilação do ódio contra uma pessoa ou algum grupo de pessoas.

Isso pode ser feito sem explicitamente pedir para as pessoas fazerem algo, mas apenas manipulando suas emoções apertando os botões certos.

O poder da influência pode ser tão dramático que pessoas podem até ser convencidas a se matar, como no caso do pastor Jim Jones em 1978, que envolveu o suicídio coletivo de 909 pessoas, incluindo 304 crianças.

Paulo Buchsbaum

Fui geofísico da Petrobras, depois fiz mestrado em Tecnologia na PUC-RJ, fui professor universitário da PUC e UFF, hoje sou consultor de negócios e já escrevi 3 livros: "Frases Geniais", "Do Bestial ao Genial" e um livro de administração: "Negócios S/A". Tenho o lance de exatas, mas me interesso e leio sobre quase tudo e tenho paixão por escrever, atirando em muitas direções.

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