Opinião

O eleitor assombrado por demônios

Em seu livro “O mundo assombrado por demônios”, o cientista Carl Sagan faz uma crítica ao apego das pessoas a explicações baseadas em mitos e pseudociência e uma defesa da ciência e do modo de pensar científico que, em poucas palavras, se baseia na razão e na utilização de fatos e dados como base para deduções e conclusões. 

Vivemos um mundo globalizado em que a tecnologia (em sentido mais amplo) tem um papel essencial na vida das pessoas. Nas últimas quatro décadas, em particular, o avanço da tecnologia em diversos campos assumiu uma escala exponencial. Em 1984 quando iniciei minha faculdade de TI, cheguei a programar com cartões perfurados, em um mainframe que tinha algo como 256 Kb de memória. Hoje, temos celulares que cabem na mão com 256 Gb de memória – algo como 1 milhão de vezes a mais que a memória daqueles computadores enormes que ocupavam uma sala.  

E qual é a base de todo esse desenvolvimento tecnológico? A ciência.  

Seleciono um trecho do capítulo 2 do livro de Sagan: 

“Nós criamos uma civilização global em que os elementos mais cruciais – o transporte, as comunicações e todas as outras indústrias, a agricultura, a medicina, a educação, o entretenimento, a proteção ao meio ambiente e até a importante instituição democrática do voto – dependem profundamente da ciência e da tecnologia. Também criamos uma ordem em que quase ninguém compreende a ciência e a tecnologia… uma receita para o desastre. Podemos escapar ilesos por algum tempo, porém mais cedo ou mais tarde essa mistura inflamável de ignorância e poder vai explodir na nossa cara.” 

Trazendo essa reflexão para o nosso país, estamos, mais uma vez, em meio a um processo eleitoral importantíssimo. E, mais uma vez, um processo eleitoral radicalizado. 

Um processo eleitoral assombrado por demônios. 

É altamente provável que o vencedor do pleito mais importante será um dos dois representantes de facções político-ideológicas que a cada dia se tornam mais radicais, em um movimento de reação e contrarreação entre elas.  

Cada lado procura incutir na cabeça dos eleitores um medo de demônios alegadamente criados e/ou cultuados pelo lado opositor, como forma de angariar votos. Cada lado proclama que esta eleição é uma luta do bem contra o mal.  

Para um dos lados, os demônios são os empresários, os empreendedores, as grandes organizações, os banqueiros e um tal de “neoliberalismo” (seja lá o que isso signifique), os defensores de reformas do Estado e privatizações, a agronegócio, a imprensa… 

Para estes, o anjo do bem é o Estado forte. O Estado que quer produzir bens e serviços que deveriam ser da iniciativa privada. O Estado que deve direcionar os investimentos das empresas, dizendo a elas o que produzir e em que quantidade, com base nas ideias de Celso Furtado e cia. Uma turma que ainda alimenta fetiches para a tal teoria do centro-periferia da CEPAL, e que deu origem às “sudenes” da vida, palcos de tanta corrupção e que em décadas não resolveu a questão das desigualdades regionais.   

Nessa defesa do Estado forte, ignoram dados históricos e atuais que mostram que os países com melhores indicadores de desenvolvimento socioeconômico (PIB/capita, IDH, Gini, expectativa de vida, etc.) são países que tem mais liberdade econômica – mesmo que tenham adotado em um ou outro momento no passado alguma política pública de desenvolvimento promovida pelo Estado.  

E para convencer seu rebanho de que esses demônios acima são reais e precisam ser eliminados, a turma desse lado se vale de dados socioeconômicos selecionados conforme sua conveniência e meias-verdades segundo às quais, os governos de Lula teriam sido os responsáveis pela fase mais pujante da nossa Economia.  

De fato, houve vários avanços sociais e econômicos em determinados momentos dos governos de Lula, principalmente em seu primeiro mandato – momento esse em que o governo do PT basicamente manteve o modelo de política macroeconômica que vinha de FHC. 

Por exemplo, é fato que durante um período do governo Lula o Brasil chegou a atingir pleno emprego (com desemprego abaixo de 4%). Porém, é muito simplista dizer que esse alto nível de empregos foi decorrente direta e unicamente das políticas daquele governo. Havia todo um contexto que contribuiu para isso – como sempre acontece quando se fala de relações causais em Economia.  

E claro, houve vários outros fatores que levaram no final das contas, à queda do PT com o impeachment de Dilma Roussef, dentre eles os escândalos de corrupção que acabaram por colocar uma parcela enorme da opinião pública contra o PT e foi o principal gatilho para a ascensão do outro lado ao poder.  

E foram exatamente os escândalos dos governos do PT e piora da situação fiscal do governo a partir de 2012 que fizeram aparecer os demônios que alimentam o imaginário do bolsonarismo.  

Para estes, os principais demônios são “os comunistas corruptos da esquerda”.  

Mas não só eles.  

O STF, o Congresso, aqueles que defendem a diversidade, aqueles que defendem a proteção à Amazônia, cidadãos que defendem a democracia, empresários que não estão satisfeitos com o governo atual, governadores que não querem baixar impostos, os defensores da vacinação, os contrários ao tratamento precoce, os que defendiam uso de máscaras, os homossexuais… todos são demônios que devem ser eliminados.  

O governo Bolsonaro, apesar dos pesares, também realizou ações no plano econômico que devem ser reconhecidas. A reforma previdenciária, várias medidas voltadas à liberdade para empreender. E não se pode deixar de reconhecer que a pandemia trouxe uma crise econômica que não é brasileira, é global.  

Mas em vez de exaltar algumas realizações positivas, o bolsonarismo prefere armar e incendiar a nação numa verdadeira “guerra santa” contra os “comunistas”. 

Os bolsonaristas vivem uma ilusão de que seu líder veio para acabar com o “sistema” e com a corrupção. E continuam acreditando nisso, mesmo que os fatos e dados mostrem que, no final das contas, Bolsonaro está convivendo com o “sistema” – vide orçamento secreto, aliança com o centrão e filiação ao PL de Waldemar da Costa Neto. 

Mas o principal demônio bolsonarista, no momento, é a urna eletrônica. A mesma com a qual se elegeu várias vezes deputado e em 2018, presidente. Ainda que se reconheça que o sistema pode melhorar – como qualquer sistema – lançar dúvidas sobre a sua confiabilidade, de maneira tão enfática, neste momento, parece oportunismo. Com que intenção?  

Nessa guerra contra o “mal”, anjos bolsonaristas são os adeptos das armas, a milícia digital que dissemina mentiras e meias-verdades e, claro, os militares – seres que no imaginário bolsonarista estão acima do bem e do mal pelo simples fato de usarem fardas.  

O que esses dois grupos, ligados ao provável próximo líder máximo da Nação, tem em comum? 

O fato de criarem narrativas em que os que apoiam seus oponentes, os críticos isentos e aqueles que não apoiam nenhum deles, seriam todos pobres incautos que foram seduzidos pelos demônios do outro lado.  

E para convencer seus “anjos” de que aqueles são demônios, usam dados falsos ou fora do contexto (pseudociência) ou apelam para o fundamentalismo religioso. Muito próximo do contexto que Sagan critica em seu livro.  

No meio desses grupos radicais, existem alguns que ainda acreditam que poderíamos tentar algo diferente. E esses acabam virando demônios para os dois lados.  

Frequentemente chamados de “isentões” ou algo pior, são simplesmente pessoas que demonstram algum ceticismo e senso crítico em relação às informações que lhes chegam. 

Mas, neste momento, eu tenho a impressão de que estes são a minoria, de forma que acredito que teremos mais quatro anos de governo obscurantista, que continuará criando demônios para assustar os eleitores. O tal do “voto útil” – uma aberração em termos democráticos na minha opinião – deve aparecer mais uma vez. 

E no meio dessa guerra, a democracia continua sendo achincalhada sob desculpas toscas e simplistas, construídas sem embasamento algum em fatos e dados. 

Mas tenho esperança no futuro. Que venha logo 2026.   

Marcel Fleming

Gerente de projetos, professor, cruzeirense, fotógrafo e ciclista nas horas vagas. Graduado em computação, sempre me interessei pela Política e pela Economia, tanto que atualmente sou mestrando em curso correlacionado.

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