Opinião

O dia em que o demônio capitalista desconstruiu uma linda e virtuosa história

Existe uma piadinha politicamente incorreta que diz que o sujeito que não é comunista aos 17 anos não tem coração, mas quem continua comunista depois dos 40 não tem cérebro. Obviamente não concordo com a grosseria, até já escrevi sobre um comunista maravilhoso aqui mesmo no Boteco (ver https://papodeboteco.net/opiniao-princ/as-tres-licoes-do-tio-gugu-o-doce-comunista/ ), mas posso dizer que eu e boa parte da minha geração “baby-boomer” seguimos este caminho; esquerdista na juventude, liberal na “melhor idade”. Vale dizer que boa parte do meu esquerdismo juvenil foi em contestação à ditadura militar da época mas tudo bem, já é passado.

Lembrei de tudo isto ao ler um interessante artigo sobre o assunto há alguns dias (ver https://www.mises.org.br/article/3149/e-facil-entender-por-que-os-jovens-dos-paises-mais-ricos-tendem-a-defender-mais-socialismo ). O autor, Nicholas Krovitz, explica a surpreendente estatística que informa que mais da metade dos jovens nos países ricos se identificam hoje como “socialistas” ou “comunistas”. A conclusão dele é que esta geração, que não passou por guerras ou privações sérias, acha que a riqueza acontece naturalmente, ou seja; que as prateleiras dos mercados sempre estarão cheias, que abastecer o carro nunca será difícil, que a internet vai funcionar livre e barata eternamente, etc… O autor fecha o raciocínio dizendo que eles ainda não conseguiram entender que esta prosperidade toda só existe por conta da liberdade econômica, e que todos os experimentos comunistas até hoje geraram apenas desabastecimento, fome, repressão e otras cositas mas. Parafraseando Delfim Neto, minha conclusão sobre o tema é que só se pode pensar em dividir o bolo depois que ele cresce. Virtuosos, caridosos e pouco afeitos a um estudo mais profundo sobre a história, os jovens tendem a achar que o bolo existente será eterno, e que para reparar as injustiças basta dividi-lo em pedaços iguais para que todos vivam felizes para sempre. Só que isto é frase de conto de fadas e, conforme eu digo sempre, o maior inimigo das belas doutrinas de esquerda é a vida real. Porque na vida real para fazer o bolo gostoso e barato é preciso otimizar a produção da farinha, dos ovos, do açúcar, e também recompensar de forma diferenciada os bons confeiteiros, como só o capitalismo competitivo conseguiu fazer ao longo da história. É um pouco mais difícil de entender mas, como bem disse o grande Lulu Santos, nem sempre é so easy se viver.

Madre Teresa e a divisão virtuosa

Nesta linha, um grande exemplo de “ação para corrigir a sociedade injusta” pertence a Madre Teresa de Calcutá, uma das almas mais nobres que já passou por este planeta. A história que se conta é que Madre Teresa, ao ganhar o Prêmio Nobel da Paz em 1979, pediu para cancelar o tradicional jantar em que seria homenageada, e que o dinheiro arrecadado fosse doado a uma instituição de caridade que ela mantinha.  Um ano depois ela teria enviado uma carta aos organizadores do Nobel dizendo algo do tipo “aquele dinheiro que ia proporcionar uma única refeição a 400 pessoas, alimentou 500 necessitados durante um ano”. Sempre gostei desta história, só que, um dia…

O demônio mora nos detalhes

Um dia tive um sonho prá lá de estranho. Eu estava sentado, na mesa de uma taverna antiga, tomando vinho com um cavalheiro muito elegante, mas com um ar misterioso e um tanto assustador. E ele começou a falar, com voz soturna, exatamente sobre este causo.

– Muito bem, meu amigo, você achou isto tudo lindo. Só que o demônio mora nos detalhes, já ouviu falar nisto?

Completou a fala com uma risada tétrica, ao estilo do inesquecível clip da música “Thriller”, do não menos inesquecível Michael Jackson. Meu sangue congelou.

– Vamos aos fatos; era um jantar para 400 pessoas, ao custo de 500 dólares per capita. A arrecadação foi de 200 mil dólares, certo? Portanto, dividindo pelos 500 desfavorecidos durante, vá lá, 400 dias (só prá arredondar), temos um dólar por dia por pessoa, que foi o custo da alimentação que ela forneceu. Certo?

Assenti com a cabeça. E ele, maquiavélico, continuou;

– Você já imaginou o que um jantar destes movimenta a economia? Certamente vão contratar o melhor buffet possível, que vai subcontratar os melhores fornecedores, cozinheiros, auxiliares, garçons… Isto sem falar na logística; motoristas, manobristas, seguranças, recepcionistas, vôos e hotéis para quem vier de fora, lavanderia no dia seguinte… já pensou em quanta gente boa e qualificada não conseguiu trabalhar e ganhar honestamente o seu pão de cada dia por conta do cancelamento do jantar? No efeito multiplicador dos contatos que poderiam ter sido feitos e não foram? Quanta riqueza poderia ter sido criada naquela noite? Quanto dinheiro deixou de circular?

Quando falou a palavra “dinheiro” a emoção dele foi visível, sua voz embargou e os olhos marejaram. Foi quando percebi, apavorado, que os olhos dele eram vermelhos. Era um demônio, sem dúvida. Controlando a emoção ele fechou o raciocínio malévolo;

– Então, meu prezado amigo, não eram 400 porcos burgueses se empanturrando de comida e bebida. Era a economia girando! E o que a inocente e virtuosa senhora resolveu fazer? Travar o carrossel e distribuir o dinheiro para seus pobres! Que, durante um ano, não fizeram mais do que esperar pelas migalhas que ela distribuiu. E quando acabou o dinheiro, ela mandou uma carta com que objetivo? Ver se apareciam mais porcos capitalistas prá sustentar a turminha dela!

Após a tocatta, a fuga

Nesta hora me indignei, afinal ninguém ia falar mal de Madre Teresa na minha frente sem ouvir uma resposta. Só que ele, esperto como se espera de um demônio, usou o velho truque de fingir uma ida ao banheiro e sumiu, deixando um cheiro de enxofre no ar e, pior que isto, a conta para que eu pagasse. Não se pode negociar com o demônio, lembrei. A gente sempre acaba perdendo.

Acordei suando frio.

E o pior é que nunca mais consegui contar a história com o mesmo entusiasmo de antes. Afinal, os detalhes que o demônio expôs colocaram dúvidas em minha mente. E este é o objetivo dos demônios, mesmo…

Marcio Hervé

Márcio Hervé, 71 anos, engenheiro aposentado da Petrobras, gaúcho radicado no Rio desde 1976 mas gremista até hoje. Especializado em Gestão de Projetos, é palestrante, professor, tem um livro publicado (Surfando a Terceira Onda no Gerenciamento de Projetos) e escreve artigos sobre qualquer assunto desde os tempos do jornal mural do colégio; hoje, mais moderno, usa o LinkedIn, o Facebook, o Boteco ou qualquer lugar que aceite publicá-lo. Tem um casal de filhos e um casal de netos., mas não é dono de ninguém; só vale se for por amor.

Artigos relacionados

4 Comentários

  1. Interessante estória mas se o jantar tivesse acontecido o dinheiro seria distribuído para pessoas que não são miseráveis. Neste caso específico o dinheiro foi usado para caridade. Alimentou emergencialmente os miseráveis. Acho que não serve como exemplo. O que vocês acham?

    1. Retóricas á parte, concordo,
      Se já passou fome alguma vez, uma dádiva dos Céus, comer por um ano .
      Uma dádiva dos Céus, só veio por intermédio da pessoa certa, A Madre Teresa e …

      .””…E quando acabou o dinheiro, ela mandou uma carta com que objetivo? Ver se apareciam mais porcos capitalistas prá sustentar a turminha dela! “””
      Inacreditável.

  2. Me permita discordar com uma terceira via, nem capitalista nem comunista. O teu artigo parte de um raciocinio que ainda existe, mas fadado ao fim. O capitalismo como conhecemos esta morto e o comunismo/socialismo nunca existiram na pratica. São utópicos. O capitalismo tem destas coisas, tipo o teu sonho com o demo, que traz uma lógica que parece resolver uma coisa mas na real esconde a verdade. Esta balela de crescer o bolo para depois dividir é coisa da elite do dinheiro que nunca vai querer dividir nada com a maioria pobre. Estamos chegando em um momento da humanidade onde o trabalho nao vai mais existir para todos. As pessoas terão que consumir. No minimo terão que ser pagas sem trabalhar. O fim do capitalismo passa pela evolução da consnciencia humana, pelo fim do lucro, pelo fim da exploração absurda dos recursos naturais em nome do lucro. Nao precisaremos mais trabalhar. AI vai trabalhar por nos. Temos recursos no planeta para vivermos bem e em harmonia com a natureza. Nao precisamos de porcarias criadas pela logica do lucro capitalista.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Verifique também
Fechar
Botão Voltar ao topo
%d blogueiros gostam disto:
Send this to a friend