Brasil

A saída de Renan e a violência brasileira – um estudo de caso

Quem conhece análise de riscos sabe que um grande acidente dificilmente acontece do nada. Há uma pirâmide que começa com “pequenos desvios”, depois passa por “incidentes”, e, no topo, tem o “grande acidente”. E, obviamente, a melhor abordagem é a prevenção dos desvios.

Quando ocorre uma tragédia como a dos médicos no Rio de Janeiro, fico sempre pensando nisto. Nada disto começou ontem; somos o país com mais assassinatos no mundo já há algum tempo. Só que a discussão trava quando se polariza entre Lula e Bolsonaro. Não se procura a causa, o que se quer é atribuir culpas.

Neste contexto, quero falar do pedido de demissão do técnico Renan, da seleção de vôlei. Joguei vôlei razoavelmente, disputei campeonatos, e acompanho desde sempre. Resolvi entrar em um grupo dedicado ao assunto na internet, na doce ilusão de que ia encontrar pessoas como eu, a fim de trocar ideias e comentários sobre os jogos do Pré-olímpico.

Fiquei (mal) impressionado com duas coisas; o nível de desconhecimento do jogo (sempre achei que um site específico sobre voleibol só seria acessado por quem entendesse ou estivesse interessado em entender o assunto), e a agressividade dos comentários. Claro que estou falando genericamente, tem muita gente educada e bem-intencionada no site. Assim como na sociedade. Mas…

Quando o time começou mal o torneio, boa parte dos comentários dizia apenas #foraRenan. Pacientemente eu pedia alternativas, ou explicações lógicas. Em vão. Nenhuma proposta construtiva. Só “Fora Renan!”. E adjetivos do tipo incompetente, burro, paneleiro… Nem a heroica classificação resolveu o problema; vi muita gente dizendo “já vai tarde” quando ele anunciou a sua demissão. Fico imaginando o que aconteceria com ele em caso de derrota e vaga para Paris adiada (ou perdida de vez). Sempre lembrando que é vôlei, um esporte que está longe de gerar as ondas de fanatismo e violência que acompanham o futebol.

Não é preciso ser um gênio prá entender que Renan pediu para sair por medo desta violência. Já sessentão, depois de quase ter morrido de COVID, ele resolveu preservar a si e sua família, antes que acontecesse algo pior com algum deles. O tom é de ódio, não de discordar tecnicamente de suas decisões. E lá se foi um técnico que conseguiu o milagre de recuperar o moral um grupo que estava morto, e fez substituições corajosas e inteligentes que resolveram situações difíceis nos últimos três jogos. Além de ser um dos maiores nomes da história do voleibol mundial.

Enfim, a tese é; somos uma sociedade dominada por um ódio cego, que só tem explicação na frase de Nelson Rodrigues; “O brasileiro é o Narciso às avessas – se puder, cospe na própria imagem”. Uma sociedade egoísta, indisciplinada e extremamente violenta.

E é a partir destes desvios que começa o caminho que leva às grandes tragédias.

Mas tudo bem, o que interessa é atribuir a culpa aos “fascistas” ou aos que “fizeram o L”. Vi comentários chamando Renan de “comunista”. A paranoia saiu de controle…

Tristes tempos. Triste Brasil.

Vida que segue.

Marcio Hervé

Márcio Hervé, 71 anos, engenheiro aposentado da Petrobras, gaúcho radicado no Rio desde 1976 mas gremista até hoje. Especializado em Gestão de Projetos, é palestrante, professor, tem um livro publicado (Surfando a Terceira Onda no Gerenciamento de Projetos) e escreve artigos sobre qualquer assunto desde os tempos do jornal mural do colégio; hoje, mais moderno, usa o LinkedIn, o Facebook, o Boteco ou qualquer lugar que aceite publicá-lo. Tem um casal de filhos e um casal de netos., mas não é dono de ninguém; só vale se for por amor.

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4 Comentários

  1. Hervé, sou solidário a sua desilusão. Conversando com um colega, hoje, falamos sobre certos posicionamentos tomados por alguns, e quiça até por nós mesmos, em certas conversas, sem ouvir ou argumentar de forma mais profunda e sem fugir do tema principal. Não que sua experiência no grupo do qual fazia parte acontecesse exatamente assim como menciono, mas chamou minha atenção. É preciso paciência para construir laços e a confiança . Abs William

  2. A falta de noções básicas de respeito impera no país. Reflito sobre como chegamos neste ponto. Creio que boa parte disto ter sido originada no descaso com o que é público. Quem pisava na rua na época do império era pária ou escravo. Os nobres nunca pisavam no chão. Com o tempo, esse sentimento de não pertencimento ao público só aumentou. Foi vendida a ideia de que o que é público não é bom e não tem dono, com isso, fomos orientados a desejar o privado como garantia de qualidade. O que é público cai cada vez mais em desdém, exceto pelas universidades, que são ocupadas pela elite financeira. Claro que isso está extremamente resumido, pois o provado também virou negócio, financiado aos pobres por programas do governo e satisfação dos empresários que pasaram a vender estudo sem qualidade. Nessa dicotomia entre público e privado, foi também introduzida a falsa sensação de pertencimento às elites. A Classe média identifica-se mais com a elite do que com a classe operária que pertence. Com este separativismo, o “nós e eles” ficou mais acirrado gerando a semente do ódio. Hoje, a polarização alimenta o ódio e o despertencimento que insistimos em não ver. Sem a união dos dominados, os dominadores seguirão firmes e fortes.

    1. Daniel, obrigado por ler e comentar novamente. Não conhecia a história dos nobres não pisarem o chão, é bem interessante, obrigado por partilhar este conhecimento. É uma boa explicação para o desrespeito que temos pelo que é “público”. Abraço virtual

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