Opinião

Sobre vacinas, direitos individuais e direito à vida

Há dois séculos, por volta de 1796, Edward Jenner, observando que quem adquiria a varíola bovina, ficava imune as formas graves da varíola humana, criou a primeira vacina. Com isso seria possível controlar uma doença altamente contagiosa e que dizimou milhões de vida na Europa e posteriormente nas américas onde os europeus fizeram a primeira guerra bacteriológica do mundo. Deixavam roupas e objetos contaminados para que fossem pegos pelos nativos, contaminando as tribos e facilitando a invasão.

Passado mais de um século desde a primeira vacinação, o então presidente Rodrigues Alves, junto com seu Ministro da Saúde Oswaldo Cruz e com o prefeito Pereira Passos, resolveram sanear o Rio de Janeiro, com um porto evitado por navios de muitas bandeiras, dada a suas condições precárias de saúde da cidade cheia de casos de febre amarela, peste bubônica e varíola. Foi decretada a vacinação obrigatória e isso gerou a famosa revolta da vacina que, em novembro de 1904, quase derrubou o governo. O lema na época era “morra a polícia e abaixo a vacina” e contou com um movimento chamado de “liga contra a vacina obrigatória”. O decreto caiu e último caso de varíola no Brasil foi registrado em 1971 e a doença foi considerada erradicada no mundo em 1980.

Voltando para os dias de hoje, em outubro de 2020, o número de mortos pela Covid19 no Brasil ultrapassa 150.000 e os do mundo 1.115.000. Nesse instante há várias vacinas sendo estudadas, assim como proliferam numa velocidade espantosa as teorias conspiratórias a respeito de todas elas.
O desenvolvimento de vacinas no nível de segurança atual é complexo, com vários testes sobre a segurança e eficácia respeitando normas comuns a agências reguladoras como o FDA Americano, Agência Europeia e nossa Anvisa. O que talvez as pessoas não percebam é que enquanto alguns vírus, como a febre amarela, têm vacinas altamente eficazes e que duram para a vida toda, outros estão longe de ter uma vacina adequada. Existe um grande arsenal de medicamentos contra o vírus HIV, mas nenhuma vacina eficaz até o momento. Num exemplo menos drástico, o vírus sincicial respiratório, que pode causar quadros gravíssimos em crianças com menos de um ano e em pacientes transplantados, não tem até hoje, uma vacina com segurança e eficácia adequada, mesmo considerando o imenso investimento já feito.

Para entender o que acontece é preciso conhecer um pouco de imunologia. Algumas vacinas são variantes atenuadas dos vírus, que não produzem a doença, mas produzem uma resposta imune e assim quando o vírus real aparece, o sistema imune facilmente o reconhece. As mais modernas, produzidas por técnicas de engenharia genética, podem usar fragmentos do vírus, ou mesmo colocar fragmentos de um vírus numa “capa” de outro vírus menos letal.

No caso da atual Covid19, demos um pouco de “sorte”. Imagine por exemplo se uma variante muito mais agressiva do vírus sincicial respiratório surgisse afetando pessoas mais velhas tal qual afeta lactentes. Teríamos um desastre de proporções igualmente épicas ou até pior.
Felizmente as tecnologias já disponíveis puderam ser adaptadas às características biológicas do vírus Sars-Cov-2, permitindo o desenvolvimento rápido de vacinas em poucos meses.

Nesse momento, em que podemos estar próximos de controlar essa pandemia que tantas vidas levou, tanto estrago fez e fará na economia mundial, no tratamento de outras doenças, ressuscita depois de 116 anos a “liga contra a vacina obrigatória”.

Travestidos de democratas e defensores da constituição e dos direitos, essa “liga” afirma que cada um pode decidir se vacinar ou não, pois isso é um “direito individual assegurado pela constituição”. Talvez falte a essa “liga” um pouco mais de conhecimento de como as vacinas funcionam.

Em primeiro lugar, nem a melhor das vacinas tem 100% de eficácia, ou seja, mesmo quem se vacinou não tem garantias absolutas de que ficará imune, logo, para que uma doença seja controlada é preciso que uma proporção grande da população esteja imune. Há outras pessoas que, contra sua vontade, têm imunodeficiências, câncer, fazem transplante de órgãos ou tomam imunossupressores para controlar doenças reumatológicas. Assim, quem não se vacina, assume o risco de contrair a doença (o que é um direito privado), mas também coloca em risco toda uma comunidade e mesmo a vida de quem ele não conhece, ou seja, atenta contra toda a sociedade.

É direito individual ter maior risco de adoecer e quem quiser pode fumar ou beber até cair e mesmo em alguns países também pode usar maconha sem cometer nenhum crime. Você também pode se recusar a tomar seu anti-hipertensivo e optar por ter menos anos de vida, mas o erro de quem imagina o direito “democrático” de não se vacinar é assumir que que não existem populações de risco, impossibilitadas de receber vacinas ou nas quais as mesmas não funcionam.

Para uma vacina ter sucesso é fundamental que o maior número possível de indivíduos esteja imunizado. Vacinação é um esforço coletivo, sem adesão maciça da população ela não funciona adequadamente.

Encerro com uma história mais ou menos real, cujo dados não são exatos para preservar a privacidade das pessoas e locais. Uma criança tratando uma leucemia, recebeu a visita de um primo, e sua tia, defensora do “direito” de não vacinar, jamais administrou qualquer vacina ao filho, mas sempre omitiu isso de todos. Essa mesma criança com leucemia tinha uma internação programada no dia seguinte e passou pela sala de recreação do hospital onde encontrou outros colegas em tratamento. O primo começou com febre no dia seguinte, mas só depois de alguns dias foi diagnosticado seu sarampo. No hospital, outras oito crianças contraíram sarampo, trazido involuntariamente pelo primeiro contato. Nesse total de nove casos, um faleceu e sete tiveram seu tratamento atrasado ou reduzido, com consequências futuras imprevisíveis.

Colocar a vida de inocentes intencionalmente sob risco não é algo garantido por nenhuma constituição. É tempo de salvar vidas e não de ressuscitar discussões mortas há mais de um século.

Cláudio Galvão

Cláudio Galvão é médico Hematologista, faz transplante de medula óssea e oncologia pediátrica. Queria ser piloto da Varig e até chegou a pilotar aviões. Depois fez física, mas parou e finalmente concluiu o curso de medicina. O gosto por aviação e por divagações acerca de números e da física teórica nunca o abandonou.

Artigos relacionados

10 Comentários

  1. A vacina chinesa eu não tomo e nem minha família. Mas assim que surgir alguma vacina que não tenha envolvimento destes chineses eu serei o primeiro a tomar a vacina.

  2. O debate sobre vacinas sob o ponto de vista acadêmico é uma coisa. Mas na vida prática é outra. Falemos da Covid…. O próprio artigo aponta que há diferentes formas de chegar-se na vacina o que indica (não sou medico então me submeto a revisão) que as vacinas de diferentes marcas não são iguais e nem terão a mesma eficácia. Daí pergunto: Se é possível concluir que a vacinação deva ser obrigatória, como decidir qual vacina deve ser aplicada ? Pode o Estado exigir uma e a União outra? Qual a eficácia de uma se metade da população optar pela outra e vice versa…. Concluir pela obrigatoriedade de vacinas consolidadas é uma coisa, mas neste nosso cenário em particular é outra totalmente diferente. Sem as respostas para as perguntas acima tudo não passa de teoria para a sala de aula.

    1. Boa noite, o debate não é acadêmico, é prático uma vez que as vacinas já existem. A despeito de utilizarem diferentes metodologias, no primeiro momento o ideal é vacinar o maior contingente de pessoas possível. Nas campanhas de vacinação em geral podemos ter vcains de diferentes origens. Estamos em uma emergência e vacinas tem suporte científico e estão sendo testadas em diversos países e monitoradas por agências reguladoras. Então uma parte poderá receber a vcaina do fornecedor A e outra do B. Também não sabemos a necessidade de uma revacinação anual. O tempo dirá, o importante é cuidar da emergência.

      1. Olá Doutor. Não quis imputar a seu artigo a estigma de ser acadêmico, mas apenas anotar que o debate pode ter duas feições distintas. Academicamente, a meu ver, é uma não discussão: Dada a gravidade da doença e a existência de protocolos tradicionais de vacinação obrigatória no Brasil, a decisão administrativa de obrigar a vacina parece-me óbvia. Contudo, no caso prático Covid (E ai a distinção que fiz), temos diversos fatores que tumultuam a decisão. O simples fato de haver mais de uma vacina (com diferente metodologia e eficácia) já traz um “tempero” diferente que interfere na decisão administrativa. Some-se a isso a guerra tola entre os entes da federação e temos como resultado uma população ansiosa e insegura. Reconheço a emergência dos tempos que vivemos, mas também é necessário reconhecer que o preço das decisões iniciais sobre a Covid está se apresentando. Creio que o Governo (todos) devem iniciar de pronto uma campanha de esclarecimento da importância da vacina, e discutir com a sociedade os protocolos de sua distribuição (quem, quando, onde etc). Mas não estamos vendo nada disso. Só a politização do “não é obrigatório x obrigatório”. A decisão se ela será obrigatória ou não me parece menor. Se o tema houvesse sido tratado com transparência, cuidado e sem política, nem estaríamos discutindo isso. Todos iriam tomar a vacina sem muito debate… Mas parabéns pelo artigo. O site tem chamado a atenção e é bom saber que há uma nova fonte de notícias / opiniões mais abalizada e franca que a mídia tradicional. 🙂

  3. Artigo muito bom enviado pelo meu vizinho para me demover da postura retrógrada, no sentido de ser antiga, Do grupo anti vacina!
    Agradeço dr. Cláudio e Alexandre Barbosa

  4. Boa tarde Dr.
    Afirmo ainda que o direito à vida é um direito fundamental, portanto não deve ser violado.
    Embora seja um direito personalíssimo, esse não deve sobrepor ao direito social. Ou seja, a não vacinação como direito personalíssimo, pode ser avocado, mas não como direito social. Um indivíduo não pode colocar em risco a sociedade. O estado pode agir obrigando a vacinação .

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Verifique também
Fechar
Botão Voltar ao topo
%d blogueiros gostam disto:
Send this to a friend