Opinião

Os tolos agressivos herdaram a Terra. E agora?

“Há tantos burros mandando em homens de inteligência, que às vezes fico pensando que a burrice é uma ciência” (Ruy Barbosa).

Napoleão sabia das coisas…

Gosto de citar em minhas aulas sobre liderança uma classificação que é atribuída a Napoleão Bonaparte. Reza a lenda que Napoleão dividia seus comandados em quatro grupos.

  1. Homens com discernimento e iniciativa; estes, muito raros, eram os que Napoleão escolhia como seus ministros e assessores mais importantes. Sendo um líder de verdade, o “Pequeno Corso” não se preocupava com a concorrência, e seguia a cartilha de ter junto de si os cérebros mais brilhantes disponíveis;
  2. Homens com discernimento, mas com pouca iniciativa; eram importantíssimos para fazer o meio campo entre a alta cúpula e a tropa, o equivalente à gerência média das empresas modernas. Ou seja, pessoas capazes de cumprir missões, atingir metas, liderar pequenos grupos.
  3. Homens com pouco discernimento e pouca iniciativa; numa época em que as batalhas eram travadas praticamente em luta corporal, esta turma era importante pela capacidade de obediência. Na gíria de algumas décadas atrás eram os “bucha de canhão”. Obviamente que eram mais numerosos que os outros dois grupos.
  4. Homens com pouco discernimento e muita iniciativa; Este era o grupo que Napoleão considerava “perigoso”, e que devia ser descartado rapidamente. Todo mundo conhece pelo menos um exemplar desta espécie; o sujeito que toma as decisões sem ter competência para tal. O famoso “sem noção”. Normalmente as grandes besteiras da humanidade começam com um cara destes.

Durante séculos o mundo conseguiu se livrar da influência destes especiméns tão prejudiciais. O problema é que a evolução tecnológica das comunicações deu a eles a possibilidade de um protagonismo jamais sonhado. Napoleão teve a sorte de morrer muito antes disto acontecer.

“A internet deu voz aos imbecis” (Umberto Eco)

Não gosto de chamar ninguém de imbecil, mas tive que ser fiel à citação original. Prefiro o termo “com pouco discernimento”. Para avaliar a capacidade de discernimento das pessoas um bom critério é o que eu chamo de “segundo raciocínio”. Dando um exemplo prático dos tempos pré-históricos da internet; há um percentual bem razoável da população brasileira que acha que a derrota do Brasil para a França na final da Copa de 1998 aconteceu em um jogo comprado. O “primeiro raciocínio” indica isto; foi um resultado anormal, houve um problema nunca bem explicado com Ronaldo Fenômeno, nossos dirigentes eram comprovadamente desonestos… Só que pessoas com discernimento vão além disto e, num “segundo raciocínio” fazem a constatação óbvia; quem teria que entregar o jogo eram os jogadores. Algum jogador de futebol pensaria em entregar uma final de Copa do Mundo? Por dinheiro nenhum. E não custa lembrar que tínhamos em campo, entre outros, cidadãos acima de qualquer suspeita como Dunga, Jorginho, Cafú, Leonardo, Taffarel, César Sampaio… É claro que é mentira, basta refletir um pouco para descobrir.

Lembro este caso porque a primeira vez em que fui seriamente perturbado por um exemplar da espécie dos tolos agressivos foi há uns quinze anos quando usei justamente este exemplo em uma aula. Uma aluna me interrompeu agressivamente e disse que eu estava mentindo, porque “todo mundo sabe que este jogo foi comprado”. E quando tentei argumentar, ela me fuzilou; “Ih, mestre, nem vem com esta conversa que eu não entendo nada de futebol. Mas eu sei e todo mundo sabe que o jogo foi armado”. Ou seja; a moçoila não entendia nada de futebol, mas sabia a verdade e, de quebra, me rotulou de burro e mentiroso. Provavelmente sem sequer entender que estava me ofendendo. Preferi mudar de assunto, mas senti que algo grave estava acontecendo com a humanidade, afinal era uma aula de pós-graduação, ela era engenheira e trabalhava em uma grande empresa. Alguma coisa está fora da ordem, diria Caetano, com muita propriedade.

Sorria, você está no Neandertal

De lá para cá a situação só piorou.  As redes anti-sociais e o wattsap passaram a exigir respostas em milissegundos, e o raciocínio reflexivo, que exige tempo, ficou totalmente fora de moda. Como no Velho Oeste dos filmes de cowboy da minha infância, vence quem saca o revólver mais rápido. Mesmo porque os assuntos perdem a atualidade em algumas horas. Alguém ainda se lembra do homem que foi assassinado no Carrefour? Ou do “estupro culposo”? Mas todo mundo já se xingou e se agrediu por conta disto.

Na minha opinião o “fake news” só tem sucesso porque as pessoas, por falta de tempo e/ou de vontade, não praticam mais o “segundo raciocínio”, e reagem cada vez mais por impulso. Fiel ao meu estilo de “velhinho metido a engraçado” eu costumo dizer que à medida em que as máquinas estão se tornando cada vez mais inteligentes, os seres humanos estão cada vez mais burros. Construir conhecimento é um processo lento e, muitas vezes, doloroso, feito de perguntas e mais perguntas, muitas vezes sem respostas, afinal, conforme disse Bertrand Russel, sábios têm dúvidas e tolos têm certezas. Por isto estão dominando o mundo. Desenvolver uma vacina confiável é um trabalho lento e penoso, mas dizer que a vacina chinesa tem uma substância que transforma o cara em comunista e gay é fácil e rápido. E, por incrível que pareça, qualquer tese absurda arruma logo um monte de adeptos. Agressivos, como temia Napoleão. Sejam de direita ou de esquerda, ou anti-qualquer-coisa, os xiitas estão em voga.

Como é que a gente sai desta? Sei lá. Nestas horas uma boa piada pode não ajudar, mas pelo menos diverte. E aí lembro do meu avô lá de Santa Maria que dizia que “a diferença entre o espelho e o imbecil é que o espelho reflete sem falar, e o imbecil fala sem refletir”. Vovô Conrado sabia das coisas…

Enfim, espero que um dia os fatos mudem e se cumpra a profecia bíblica que diz que os mansos herdarão a Terra. Por enquanto a gente está perdendo de goleada…

Marcio Hervé

Márcio Hervé, 71 anos, engenheiro aposentado da Petrobras, gaúcho radicado no Rio desde 1976 mas gremista até hoje. Especializado em Gestão de Projetos, é palestrante, professor, tem um livro publicado (Surfando a Terceira Onda no Gerenciamento de Projetos) e escreve artigos sobre qualquer assunto desde os tempos do jornal mural do colégio; hoje, mais moderno, usa o LinkedIn, o Facebook, o Boteco ou qualquer lugar que aceite publicá-lo. Tem um casal de filhos e um casal de netos., mas não é dono de ninguém; só vale se for por amor.

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