Opinião

Redes Sociais e a busca pelo censor ideal

O canal do jornalista Allan dos Santos no YouTube, chamado Terça Livre, foi retirado do ar pelo próprio YouTube. Segundo a rede social, o canal havia violado os seus termos de serviço uma vez, e foi suspenso por uma semana. Allan dos Santos criou então um outro canal alternativo para continuar postando os vídeos do Terça Livre. O YouTube entendeu que o canal alternativo procurava burlar as suas regras, o que levou ao encerramento definitivo de todos os canais de Allan dos Santos na rede social.

Ao que parece, a primeira advertência se deu pela postagem de vídeos denunciando supostas fraudes nas eleições norte-americanas. Estas postagens foram consideradas “notícias falsas” pelo YouTube, o que levou à primeira advertência. A questão fundamental, portanto, não é o encerramento em si das contas de Allan dos Santos. Este encerramento ocorreu porque, efetivamente, o jornalista tentou burlar as regras ao criar um canal alternativo. O problema fundamental é a natureza da primeira advertência. Teria a rede social legitimidade para vetar conteúdos? Este veto não se configuraria em uma agressão à liberdade de expressão?

Uma pequena digressão inicial: a liberdade de expressão como uma boa desculpa

Antes de enfrentar este tema, gostaria de chamar a atenção para duas reações ao acontecido. O primeiro, do próprio Allan dos Santos, e o segundo, do Partido da Causa Operária (PCO).

Chamo a atenção para o ponto em comum às duas manifestações: nos dois casos, o agente responsável pela censura seria um grande ente manipulador global: os “globalistas” no dizer de Allan dos Santos, os “monopólios imperialistas”, no caso do PCO. Tenho uma regra mestra que guia as minhas decisões sobre no que acreditar ou não acreditar: se tem cheiro de teoria da conspiração, normalmente descarto. É o caso dessas duas notas. Os dois extremos se encontram não na defesa da liberdade de expressão, mas no exorcismo de fantasmas. A defesa da liberdade de expressão parece ficar em segundo plano. A verdadeira luta se dá contra “forças ocultas e poderosas”, e a defesa da liberdade de expressão serve apenas como uma desculpa conveniente. O amor do PCO à liberdade de expressão não orna com a férrea censura implementada para “defender la revolución” em países onde partidos guiados pela sua mesma ideologia dão as cartas. E tampouco o apreço de Allan dos Santos pela liberdade de expressão combina com a diuturna demonização da grande imprensa levada a cabo pelo governo a que apoia. O governo Bolsonaro diminuiu as verbas publicitárias para a TV Globo e aumentou as da TV Record, não respeitando critérios técnicos de audiência. É o seu modo de censurar os “inimigos da revolução”.

Em resumo: liberdade de expressão é um termo tão elástico quanto, por exemplo, democracia. Segue o jogo.

A legitimidade das redes sociais como árbitros do jogo político

Mas, neste artigo, o foco não será a liberdade de expressão. Vamos, outrossim, tentar responder à seguinte questão: tem o YouTube legitimidade para derrubar canais hospedados em sua plataforma? Terá o YouTube exorbitado de seu poder ao derrubar os canais de Allan dos Santos? Este texto será como que uma continuação do post Redes Sociais e Poder Político, publicado neste mesmo blog. E como ele, terá mais perguntas do que respostas.

O principal argumento em favor do direito de o YouTube derrubar qualquer canal é o seguinte: assim como o Facebook e o Twitter no caso do cancelamento dos perfis de Donald Trump, o YouTube é um empreendimento privado. Caberia ao seu dono, portanto, criar as regras do seu mundo. Na nota em que explica o banimento do canal Terça Livre, o YouTube diz textualmente o seguinte: “o YouTube também se reserva o direito de restringir a criação de conteúdo de acordo com os próprios critérios”. É isso. Minha empresa, minhas regras.

No entanto, parece claro que “minha empresa, minhas regras” não é uma expressão absoluta, válida em todos os casos. Uma empresa não pode, por exemplo, poluir um rio ou escravizar pessoas por um simples ato de seu poder. O fato de uma empresa ter sido constituída com capitais privados não lhe dá permissão para fazer tudo de acordo com seus próprios critérios. Há limites, dados pelo direito dos outros. Cabe, então, analisar se o YouTube, ao derrubar o canal Terça Livre, feriu o direito de um terceiro.

O YouTube está fornecendo uma mercadoria: uma infraestrutura para manter vídeos na internet. Como qualquer empresa, o YouTube pode escolher a quem fornecer a sua mercadoria, de acordo com seu exclusivo critério. Ninguém tem o direito de exigir de uma empresa que lhe venda alguma coisa, a não ser que se trate de um bem essencial vendido por um monopolista (água encanada, por exemplo). Não é o caso do YouTube. Não se trata de um bem essencial, e nem tampouco a empresa é monopolista, há outros fornecedores. Portanto, ao se recusar a vender o seu produto para o Terça Livre, o YouTube não feriu o direito de ninguém. Além disso, sempre se poderá dizer que, se o YouTube não existisse, este serviço também não existiria, e o cliente ficaria sem o serviço de qualquer forma. Ou seja, não existe uma espécie de “direito divino” a um canal no YouTube. Este direito só existe porque a empresa existe, trata-se de um direito “criado” pela empresa, que, portanto, também teria o poder de subtrair este direito de um determinado cliente.

Há dois contra-argumentos a esse raciocínio.

O primeiro está no critério usado pela empresa para se recusar a fornecer a sua mercadoria. Por exemplo: um supermercado não pode barrar a entrada de uma pessoa negra em suas dependências, alegando ter uma regra própria que impede negros de frequentarem o estabelecimento. É óbvio que o supermercado não é monopolista, e o cliente barrado pode procurar outro. Mas isso não isenta a empresa de ser acusada de crime de discriminação racial. O critério para não vender para o cliente precisa também ser ético. Por isso, o YouTube dizer que “se reserva o direito de restringir a criação de conteúdo de acordo com os próprios critérios” não está correto. É preciso entender quais são esses critérios. E note que não entramos na areia movediça da discussão sobre liberdade de expressão. Estamos apenas analisando a discricionariedade de uma empresa em relação ao fornecimento de mercadorias a seus clientes. No momento em que uma empresa se estabelece, são precisos motivos fortes para deixar de fornecer seus serviços para determinados clientes.

O YouTube, de fato, estabelece claramente os seus critérios, que estão devidamente descritos nos seus termos de serviços. A empresa existe há 16 anos. Se algum desses critérios estivesse em desacordo com a lei, como por exemplo a discriminação racial, já teria sido denunciada faz tempo. Portanto, em princípio, nada do que o YouTube faz transgride o ordenamento legal vigente, o que faz com que este primeiro contra-argumento não se aplique ao caso em tela.

O segundo contra-argumento é mais sutil e aplica-se especialmente a este caso. Trata-se do jogo político, entendido como a busca pelo poder político por parte de grupos organizados. Calar a voz de um ator político significa dar mais força ao grupo político opositor. No jogo democrático, todos os atores políticos deveriam ter à disposição as mesmas armas. Claro, isso é uma utopia, pois sabemos que recursos financeiros distorcem este jogo. As redes sociais se constituíram em um advento que justamente equilibrou o jogo democrático, ao dar voz a atores que, de outra maneira, seriam ignorados por não terem recursos financeiros. Assim, ao calar a voz de um dos principais apoiadores do governo, o YouTube voltaria a desequilibrar o jogo democrático em favor de seus adversários. Aliás, este mesmo contra-argumento serve para condenar o fechamento das contas de Donald Trump no Facebook e no Twitter. Em outras palavras, uma vez que o YouTube existe, o direito de usar o seu espaço deveria ser equilibrado entre todas as forças políticas. Este direito, “criado” pela existência da empresa, não poderia ser retirado por ela.

Aqui já entramos em terreno mais pedregoso. Angela Merkel, a respeito de quem não paira nenhuma dúvida sobre suas convicções democráticas, condenou o fechamento das contas de Donald Trump. Seu argumento: empresas privadas não podem tomar decisões que envolvam o jogo político. Trata-se de uma esfera pública, que deveria ser tratada pelos representantes do povo devidamente eleitos. É um ponto.

Juntamos aqui o primeiro e o segundo contra-argumentos: dentre os critérios que seriam considerados inválidos para barrar determinados clientes, poderiam estar aqueles que desequilibram o jogo político? Mais do que isso: as redes sociais teriam legitimidade para arbitrar sobre o jogo político?

O YouTube, de fato, tem critérios sobre o que pode e o que não pode ser feito em seus canais quando se trata de política. Estes critérios podem ser lidos aqui, e incluem manipulação de vídeos, informações incorretas ou obtidas através de hackers e até “denunciar falsamente que um candidato não pode ser eleito por não apresentar os requisitos de cidadania necessários para assumir cargos públicos em um determinado país”. Só faltou dizer que não pode afirmar que Obama não é norte-americano…

Em princípio, esses critérios do YouTube (e imagino que sejam basicamente os mesmos no Facebook e no Twitter) foram concebidos para tornar mais justa a luta política. Merkel, como vimos, não vê legitimidade das redes sociais para adotarem critérios deste tipo. Ou, no mínimo, para aplicarem esses critérios aos casos concretos. Porque os critérios são sempre bons e justos, o diabo está no detalhe da aplicação ao caso concreto.

Vamos dar uma parada no raciocínio por um instante, e desviar para o caso concreto. Depois voltamos. O canal Terça Livre recebeu uma advertência por propagar vídeos mostrando supostas fraudes no processo eleitoral norte-americano. A questão é saber se as fraudes são verdadeiras ou se são, elas mesmas, fraudes feitas para distorcer os resultados de um processo eleitoral legítimo. Quem tem o poder de distinguir a verdade? Neste caso concreto, entendo que seja o próprio árbitro do processo eleitoral, que são as juntas eleitorais e os juízes aos quais se apelou contra os resultados apurados. Até onde eu saiba, não houve reversão substantiva de resultados nessas instâncias. Ou seja, as instituições da mais longeva e sólida democracia ocidental referendaram o resultado eleitoral. Acusar de fraude é, em si, uma fraude. O árbitro por direito do processo já declarou que não houve fraude a ponto de mudar o resultado. Já deveria ser o suficiente. Resta inútil procurar rebater nas redes sociais todas as acusações de fraude, por um motivo simples: não há argumento que vença uma teoria da conspiração. Sempre prevalecerá a convicção de que o resultado não poderia ser aquele, a não ser por interferência de um “grande ente manipulador global”. Contra esta convicção, não há o que fazer.

Esta breve digressão ao caso particular nos será útil para voltar com novos elementos à nossa discussão anterior: teriam as redes sociais legitimidade para interferir no jogo político, mesmo com critérios bons, justos e belos? Em princípio, ao coibir a propagação de falsidades (e estamos assumindo aqui que, como desenvolvemos no parágrafo acima, a acusação de fraude nas eleições norte-americanas é, em si, uma fraude), o YouTube estaria protegendo o processo político. Como se lê em seus termos, “temos a responsabilidade de […] promover um discurso político íntegro”. Novamente: é papel do YouTube fazer isso, ou deveríamos ter uma instância política dedicada a isso?

Peço que leiam a pequena nota a seguir. É de abril de 2019:

Mark Zuckerberg, que de bobo não tem nada, pediu, em um artigo no Washington Post, regras claras sobre o que pode e o que não pode ser publicado nas redes. Obviamente, não veio nada por parte dos governos. O poder político simplesmente não sabe como lidar com este assunto. Então, as redes sociais resolveram fazer justiça com as próprias mãos, seguindo seus exclusivos critérios. Por quê? Alguns vão dizer que há um viés ideológico por parte de seus executivos. Outros vão afirmar que houve uma resposta a uma pressão da opinião pública. Na prática, é irrelevante o porquê. O fato é que as redes sociais têm o poder de fazer o que fizeram, a lei não os impede de fazer o que fizeram, e decidiram então fazê-lo. A motivação é irrelevante.

Irão os governos legislar sobre o que pode e o que não pode aparecer nas redes sociais? Ou sobre o poder que têm as redes sociais de decidir o que pode ou o que não pode aparecer? Vamos aguardar as cenas dos próximos capítulos.

O problema do censor ideal

Sempre se dirá que há conteúdos inequivocamente prejudiciais, sobre os quais não há dúvida de que não deveriam estar no ar. O fato é que, se 100% das pessoas concordassem que um determinado conteúdo não deveria estar no ar, ele não estaria no ar, por definição. Como todos os conteúdos que estão no ar contam com uma parcela de pessoas que os apoiam, seria preciso uma instância definidora do que pode e do que não pode estar no ar. E esta instância, desculpe-me o nome feio, chama-se censor.

E aqui cabe novamente distinguir entre as regras e a aplicação das regras. Hoje, tanto as regras quanto a sua aplicação aos casos práticos estão nas mãos das redes sociais. Zuckerberg, ao que parece, está pedindo regras gerais. Fica a dúvida se isso também inclui a criação de alguma instância estatal responsável pela sua aplicação. Seria, aí sim, um órgão censor estatal.

Chegamos, finalmente, à questão da liberdade de expressão. A censura (este é o nome) a determinados conteúdos fere a liberdade de expressão, um direito fundamental do ser humano? Como escrevi no meu post anterior, entendo que a liberdade de expressão não é um bem absoluto, sendo limitada pelo prejuízo que possa causar a terceiros. Todos concordamos que uma pessoa aplicando um golpe na internet está exercendo a sua liberdade de expressão de maneira criminosa. O problema está em aplicar, de maneira universalmente aceita, o conceito abstrato de crime aos casos concretos. As fraudes eleitorais aconteceram de fato ou são, em si, uma fraude? Quem decide isso? A regra em si é sempre boa. O problema é sempre sua aplicação ao caso concreto.

O censor ideal seria aquele que aplica as regras boas de maneira inequivocamente adequada. Existe? Obviamente não, assim como não existe o juiz ideal. Mas não é pelo fato de não termos um juiz ideal que não devemos ter juízes de maneira alguma. Há casos concretos em que a liberdade de expressão deve ser limitada. Falta um censor com legitimidade que aplique este princípio ao caso concreto no jogo político. Fica a pergunta: as redes sociais podem fazer este papel enquanto não existir uma instância legítima?

Resumindo

Concluo com um resumo do que vimos até aqui.

As redes sociais são empreendimentos privados. No entanto, mesmo empreendimentos privados não podem negar os seus produtos e serviços a qualquer um, a não ser baseados em critérios justos. A mera existência da empresa, que permite a oferta do produto, não é motivo suficiente para negar a oferta do produto de maneira absolutamente discricionária.

Este ponto é especialmente importante quando se trata da arena política: todos os contendores deveriam poder contar com o mesmo espaço nas redes sociais, para o bem do equilíbrio do jogo político. Critérios objetivos e sua aplicação aos casos concretos deveriam, em tese, ser de responsabilidade do poder público. As redes sociais estão somente ocupando um vácuo deixado pelo poder público, de acordo com seus próprios critérios. Não que os critérios do poder público sejam necessariamente melhores, é só uma questão de legitimidade.

Por outro lado, a figura de um censor público não rima com liberdades democráticas. Equação difícil de resolver.

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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Um Comentário

  1. O fato é que qualquer coisa publicada pode ser alvo de uma denúncia e de um eventual processo por calunia, difamação ou que peça compensações por danos morais, por parte de quem se sente ofendido. Isso deveria bastar, mas no limite, ainda é compreensível o direito de uma plataforma de retirar do ar uma publicação ofensiva, ou de ódio. O que não se pode aceitar é que uma pessoa tenha o seu canal ou rubrica/ marca pública definitivamente excluído. E aí não importa se é de esquerda ou de direita. E pode demorar, mas é lá que imaginamos chegar. Pode tudo, mas cada um é responsável pelo que faz e publica. Big techs poderiam tirar uma publicação que fira as regras, mas nunca impedir qq um de acessar e publicar.

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