Nem sempre pensamos aquilo que pensamos
A corregedoria da Câmara dos Vereadores de São Paulo aprovou requerimento para a cassação do mandato do vereador Camilo Cristófaro. Agora, o pedido segue para o plenário da Casa. O motivo: durante sessão legislativa, o parlamentar deixou o seu áudio inadvertidamente aberto, e em conversa informal com alguém não identificado, afirmou: “não lavaram a calçada, é coisa de preto, né?”.
Há algum tempo, o jornalista William Waack foi demitido da Globo também por causa de uma fala racista vazada em áudio involuntariamente aberto. Os mais seniores vão lembrar do episódio Rubens Ricupero, então ministro da Fazenda de Itamar Franco, pego em um áudio vazado, antes de uma entrevista em uma TV, dizendo: “o que é bom a gente mostra, o que é ruim a gente esconde”. O ministro, obviamente, caiu.
Sempre que ocorre um evento desse tipo, fico pensando sobre a fronteira entre o privado e o público. Uma coisa é a imagem pública da pessoa: Rubens Ricupero tinha uma imagem de homem íntegro, ético, inclusive bastante religioso. William Waack, idem, um jornalista sério. O vereador, que era e foi expulso do PSB, afirmou que lutava pelos direitos de quem tem as portas fechadas pelo racismo estrutural. Não duvido.
Todos, sem exceção, temos uma fachada para consumo público. Meticulosamente construída, essa fachada tem como objetivo imprimir na mente de nossos semelhantes a imagem que desejamos para nós mesmos. Não se trata de hipocrisia. Não se trata de pensar de um jeito e agir de outro. Essa imagem pública é aquilo que desejamos para nós mesmos. Vou dar um exemplo do que quero dizer.
Há muitos anos, assisti à série Twilight Zone, traduzida no Brasil para “Além da Imaginação”. A série original, não à nova, que é muito ruim. Em um episódio, um homem obtém o poder de ouvir o pensamento das pessoas. Em determinado momento, uma beldade olha pra ele e pensa “nossa, que homem bonito, poderia ir pra cama com ele”. Sem pestanejar, o homem agarra a mulher e a beija, para, imediatamente, receber um tapa na cara. O homem fica desconcertado, porque aquela atitude não condizia com o pensamento que acabara de ouvir. Ocorre que uma coisa é o que as pessoas pensam em seu íntimo, outra coisa bem diferente é a sua imagem pública. Nossa mente é selvagem, indomável. O esforço de construção de uma imagem pública é o que permite a vida em sociedade.
As conversas privadas estão a meio caminho entre o pensamento e as falas públicas. Nas conversas privadas, dividimos nossos pensamentos íntimos com pessoas com quem nos sentimos à vontade, sem as amarras da vida em sociedade. Aliás, se era para condenar alguém, a Câmara de São Paulo também deveria afastar o vereador com quem a conversa foi mantida; afinal, se o vereador cassado se sentiu à vontade para soltar uma frase racista, foi porque confiava que seu interlocutor era também racista. Isso é da natureza das conversas privadas.
Nas conversas privadas podemos “pensar alto”. Isso não significa, no entanto, que realmente “pensamos” daquela maneira. E aí é que está o busílis da questão: nem tudo que vai em nosso pensamento é o que realmente pensamos. Duvido que a imagem pública de qualquer pessoa (qualquer pessoa mesmo) resistisse à divulgação de todas, absolutamente todas, as suas falas privadas. Às vezes falamos bobagens. E como falamos!
Vazamento de áudio é algo somente possível com o advento de microfones, uma invenção relativamente recente. Antes disso, não havia como captar conversas privadas. Fico imaginando se, no futuro, conseguirmos inventar uma traquitana que possa captar nossos pensamentos. Se o vazamento do áudio de conversas privadas já causa esse estrago, imagine o vazamento de pensamentos. Acaba a civilização tal qual a conhecemos. Há uma passagem na Novo Testamento, em que Jesus afirma que o adultério é condenado no Velho Testamento, mas que, no Novo, quem “olhar para uma mulher desejando-a já cometeu adultério com ela em seu coração”. Em outra passagem, Jesus afirma que “todos os pecados nascem do coração do Homem”. São mensagens fortes, que contradizem o dito popular de que “olhar não tira pedaço”. No entanto, ao mesmo tempo em que Jesus diz que se pode pecar até por pensamentos, convida quem não tem pecado a “atirar a primeira pedra”. Pudera! Quem poderia escapar de tamanha exigência?
Hoje estamos discutindo se piadas ou discursos políticos podem ser condenados criminalmente. A condenação de falas privadas vai um passo à frente. Piadas e discursos políticos são falas públicas, e seu julgamento depende de contexto. Já as falas privadas, pela sua própria natureza, sequer deveriam vir a escrutínio público. Como o próprio nome diz, são privadas, não públicas. (Aqui, por favor, não confundam a escuta devidamente autorizada por juiz quando há indícios de crime. O vazamento de áudio está longe de se enquadrar nesse caso). O juiz que julgou a causa do vereador o absolveu do crime de racismo, enquadrando sua fala na categoria de “pilhéria”, não de “segregação”. Ou seja, o juiz interpretou a fala de acordo com a imagem pública do vereador. Fosse um deputado bolsonarista, a fala comprovaria a imagem pública de racismo, o que demonstra que, na verdade, o crime não é necessariamente o que foi dito no áudio, mas a imagem pública, verdadeira ou falsa. De verdade, o correto seria o juiz descartar liminarmente a “prova”, por se tratar de vazamento de conversa privada. Esse é o contexto correto.
Para encerrar, e por falar em juiz, lembro de uma cena inusitada durante a pandemia, em que, durante um julgamento virtual, um juiz foi pego inadvertidamente vestindo somente uma cueca samba-canção na parte de baixo, enquanto, na parte de cima, usava a vetusta toga dos magistrados. Somos todos mais ou menos assim: para o público, respeitáveis. No privado, senti-mo-nos à vontade para relaxar, e fazemos coisas que não faríamos em público. Quem é o nosso verdadeiro “eu”? Ambos, cada um em seu contexto. Atire a primeira pedra quem nunca.