Opinião

Histórias de bar – O cara que odiava o hino nacional

O causo de hoje se enquadra perfeitamente na filosofia do “Papo de Boteco”. É claro que o vovô em que me transformei não agüenta mais que três chopes, mas no milênio passado, quando eu ainda era aluno de Engenharia em Porto Alegre, a atividade do currículo que eu cumpria com mais assiduidade e prazer era justamente o papo de boteco. As grandes bebedeiras sempre renderam histórias boas. Afinal, conforme dizia o imortal Humphrey Bogart, todo o homem nasce duas doses abaixo do normal. As time goes by.

O Chinéca era meu colega de bola e de copo. O apelido era uma simplificação do impronunciável sobrenome dele, uma sopa de letras onde três pobres vogais eram obrigadas a conviver com um monte de consoantes, numa espécie de bullying alfabético. Uma característica engraçada do Chinéca é que sempre que ele ouvia o hino nacional fazia uma cara de reprovação. E um dia, no boteco, com todos já devidamente calibrados, um amigo resolveu perguntar qual era o problema dele com o velho e bom “Ouviram do Ipiranga”.

Ele tomou um gole longo, esvaziou o copo, e começou; “amigos, alguns aqui na mesa são gremistas. Vocês conhecem o hino do Grêmio? Vocês conhecem a história do hino do Grêmio?”.

Abro um parêntese para contar a história; Lupícinio Rodrigues, sambista genial e gremista fanático, seguia de bonde com os amigos para ver um jogo. O bonde enguiçou, e ainda faltava um bom pedaço para chegar ao estádio, mas eles resolveram encarar a caminhada. Aí a voz de um anjo sussurrou no seu ouvido; “Até a pé nós iremos, para o que der e vier, mas o certo é que nós estaremos, com o Grêmio onde o Grêmio estiver”. O resto da letra ele fez depois (provavelmente no boteco). Todo o gremista que se preza conhece esta história. Fecho o parêntese.

Pois o Chinéca (que era gremista) seguiu com o raciocínio;

“É impossível ouvir este hino sem sentir um frio na barriga, uma vontade de lutar até o fim. É para isto que serve um hino, certo?”.

Diante da nossa concordância, ele continuou, firme e didático;

“Veja os hinos dos países bem sucedidos. O americano bate no peito e diz que lá é “The land of the free, and the home of the brave”. Um francês jamais ficará indiferente ao ouvir “Allons enfants de la Patrie, le jour de glorie est arrivé”. Até nós, gaúchos, sentimos o sangue ferver quando cantamos “Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a terra”. Mais uma? Porque vocês acham que os uruguaios ganharam em 50? Porque entraram em campo cantando “Orientales, la patria o la tumba! Libertad o con gloria murir!”. Alguma dúvida?”.

Não havia o que questionar, o raciocínio era claro. E ele seguiu;

“E aqui? Todo mundo sabe de cor, mas se colocar numa prova o que significa “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas, de um povo heróico o brado retumbante” quem sabe interpretar? Quem sabe a que fato isto se refere? Quem sabe quem é o sujeito e o objeto da oração? Vai ser reprovação geral”.

A lógica dele era quase matemática, digna de um futuro engenheiro. E ele foi em frente;

“Alguém sabe quem é o verde louro desta flâmula? E erguer da justiça a clava forte? Quem vai levantar um dedo prá lutar por um país que vive deitado eternamente em berço esplêndido?”.

Com um ar de profeta, terminou o discurso;

“Este hino é a cara do Brasil! A letra é bonita, a melodia é linda, mas alguém sente algum impulso de partir prá briga? Falta sangue nos olhos! Nenhum país vai prá frente deste jeito, porra!”.

A esta altura do campeonato, o Chinéca já estava falando alto, e boa parte do bar prestando atenção nele. Como vivíamos tempos obscuros (vai que tem alguém do DOPS na outra mesa?), achamos que era hora de acionar o freio de mão, e usamos um golpe sujo consagrado nos botecos da vida; colocamos um chope recém-tirado na frente dele e, enquanto ele dava aquele primeiro gole caprichado, alguém enfiou outro assunto e levamos nosso papo para um patamar mais tranquilo. Bêbados sim, sem noção do perigo, jamais! E a noite terminou sem problemas.

Nunca mais falei com ele a respeito, perdi contato com a turma há décadas, mas toda vez que ouço o Hino Nacional lembro esta história. Será que faz sentido?

Marcio Hervé

Márcio Hervé, 71 anos, engenheiro aposentado da Petrobras, gaúcho radicado no Rio desde 1976 mas gremista até hoje. Especializado em Gestão de Projetos, é palestrante, professor, tem um livro publicado (Surfando a Terceira Onda no Gerenciamento de Projetos) e escreve artigos sobre qualquer assunto desde os tempos do jornal mural do colégio; hoje, mais moderno, usa o LinkedIn, o Facebook, o Boteco ou qualquer lugar que aceite publicá-lo. Tem um casal de filhos e um casal de netos., mas não é dono de ninguém; só vale se for por amor.

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4 Comentários

  1. Sensacional!
    Faz muito sentido. O Brasil é um país no qual a população é doutrinada a abaixar a cabeça, e essa é mais uma forte prova disso.
    Tenho minha teoria sobre Brasília que vai de encontro a isso. Quem sabe um dia desses surge a oportunidade de contar.

  2. Sempre me incomodei com o ‘deitado eternamente em berço esplêndido’,, para mim uma apologia à vadiagem. Crônica sensacional e bem humorada!

  3. O Hino Nacional é uma declaração de amor ao Brasil, que só vira tom de ameaça nos últimos versos:

    “Mas se ergues da justiça a clava forte
    Verás que um filho teu não foge à luta
    Nem teme, quem te adora, a própria morte”

    Em suma, o que o povo quer dizer é: “eu amo meu país. Se vier comigo, contra ele, a gente vai para o pau.” Basicamente.

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