Atualidades

O trabalho remoto veio para ficar. Quais suas implicações?

Uma das consequências práticas mais evidentes da pandemia e que certamente se perpetuará entre nós, foi o advento do trabalho remoto, antes tido como possível somente para um nicho muito reduzido de atividades. Não é mais assim. Se você trabalha no setor de serviços ou mesmo em outros segmentos, mas com atividades que podem ser efetuadas de qualquer local, desde que tenha uma boa conectividade, certamente vivenciou uma mudança significativa na utilização do seu tempo laboral ao longo dos últimos dois anos. E nada voltará a ser como antes.

Eu particularmente sempre vou preferir o trabalho presencial, mais por uma questão cultural do que pelo tema de produtividade, pois considero que as conexões interpessoais que somos capazes de fazer quando estamos ao vivo são melhores do que por vídeo. Não há dúvida de que a nossa versão ‘virtual’ é mais solitária. Quem não liga para isso concluirá que o ‘home office’ é ‘tudo de bom’.

Não são poucos os casos de pessoas que mudaram de emprego durante a pandemia e que raramente encontraram seus colegas presencialmente ou nem o fizeram, quando em situações cada vez mais usuais, vivem em cidades diferentes da sede da empresa em que trabalham. Essa transformação aconteceu abruptamente e hoje isso é dado como normal, algo impensável até março de 2020. Embora o fim próximo da pandemia proporcione a possibilidade do retorno à normalidade de outrora, é muito provável que as empresas adotem o modelo híbrido, alternando as atividades presenciais e remotas para todos os seus colaboradores.

Antes de detalharmos os possíveis efeitos dessa mudança nada sutil em nossas vidas, é importante realçar alguns aspectos derivados da nova realidade. Primeiramente, as reuniões virtuais, muitas vezes sucessivas ao longo do dia, impuseram ao brasileiro um senso de respeito aos horários que jamais tivemos. Nossa cultura tolera pequenos atrasos e presencialmente eles eram comuns, particularmente para quem vive nas grandes cidades e precisava enfrentar o trânsito para se deslocar. Com reuniões virtuais, os congestionamentos deixaram de ser um problema e não existe mais justificativa para os famosos pequenos atrasos. Não deixa de ser surpreendente assistir à sessão de desculpas para quem entra 5 minutos depois de iniciada a reunião. Observem! Há uma preocupação, antes inexistente, em ser pontual. Isso obviamente não nos transformou em britânicos, mas aquela flexibilidade com a agenda definitivamente não é mais a mesma. Ponto positivo.

Também nos tornamos mais educados. Aquela ‘latinidade’ de falar ao mesmo tempo que outros, muitas vezes criando reuniões paralelas, não é mais possível. Se não respeitarmos a vez do outro, a conversa simplesmente não flui. Mais um ponto para o virtual.

A possibilidade de reunir muita gente ao mesmo tempo não era realidade no ‘mundo presencial’, as grandes salas de reunião dificilmente comportam mais de 20 pessoas, e as menores, quando muito oferecem espaço para 10. Pois bem, as reuniões virtuais podem contar com a presença de mais de uma centena, sem nenhum prejuízo à sua organização. Dada a comodidade, ficou conveniente ampliar a audiência. De repente, temos reuniões com 40, 50, 60 pessoas espalhadas ao longo do dia. Mesmo que soe exagerado, uma conversa que envolvia 4 indivíduos no período anterior à pandemia certamente teve seu escopo ampliado, eu diria que ao menos o dobro ou o triplo de pessoas participam dessa mesma prosa hoje. Parece democrático, mas é bastante improdutivo. Reuniões grandes só servem para informar, dificilmente serão deliberativas, e muita gente que participa desses amplos fóruns virtuais sequer está focada na discussão e poderia usar seu tempo de forma mais eficaz. Essa situação, levada ao extremo, pode prejudicar muito a produtividade da empresa. Ponto negativo.

A facilidade para marcar reuniões também as transformou quase em uma praga. Se descuidarmos, preenchemos o dia inteiro sem nenhum intervalo, o que convenhamos, é mentalmente exaustivo. O oceano de reuniões a que nos submetemos não respeita mais os horários comerciais, o fato de estarmos ‘virtuais’, se traz o benefício da flexibilidade por um lado, permite que nossa vida particular seja invadida pela profissional, também um efeito colateral perverso.

É uma incógnita também como será adaptação dessa nova realidade às leis trabalhistas brasileiras, que ainda flertam com práticas do século passado. Esse desafio, ainda pouco discutido, ficará mais evidente à medida que surjam conflitos nos tribunais. É uma questão de tempo, será uma dor de cabeça.

Foi-se embora o dogma de que para trabalhar muito, o sujeito tem que chegar cedo e sair tarde, pensamento antiquado, mas ainda muito em voga até há pouco tempo. Na nova realidade, para muitos colaboradores, o controle do horário torna-se algo quase impossível, talvez seja tão efetivo quanto à medição da temperatura das pessoas em shoppings e restaurantes. Se o gestor não tem mais condições de monitorar sua equipe visualmente, falará mais alto a qualidade da entrega e para isso a comunicação do que deve ser feito precisa ser ótima, bem como as métricas que determinarão a efetividade do resultado. Gestores muito controladores terão que aprender a delegar, ou farão da própria vida um inferno. Nesse sentido, as mudanças são positivas, pois ocorrem em prol de um ambiente com mais objetividade, clareza na comunicação e autonomia.

As situações acima já são realidade. Mas o quê um futuro com o modelo híbrido de trabalho nos reserva? Que tipo de mudanças perenes são esperadas? Vamos ‘elaborar’ a respeito, assumindo que ao final desse processo, tenhamos um retorno de 70% das atividades presenciais, cenário que eu considero otimista (acho que deve variar entre 50 e 70%, em uma enquete que fiz ano passado, o tempo ideal identificado pelos respondentes seria algo como 66% virtual e 33% presencial). Quais os impactos disso na economia e nas nossas vidas?

Com 30% a menos de pessoas se deslocando nos horários de pico, o trânsito vai melhorar. Boa notícia para todos. Com certeza a flexibilidade trará para as reuniões muito matinais uma presença mais ‘virtual’. Por outro lado, pequenos negócios que se valem do fluxo de pessoas ao redor dos escritórios sofrerão demais. Aliás, muitos deles nem resistiram a esse período de dois anos, e sua capacidade de geração de receita não será a mesma, pela simples razão de que os clientes não ‘batem mais perna’ por ali, não na mesma frequência. Pergunte ao dono de um restaurante o que ele acha de perder 30% da receita no mês. Serviços de ‘delivery’ passam a ser mais importantes, mas há o impacto no número de funcionários para manter a loja, que não será mais o mesmo. Risco na manutenção de empregos para vendedores e garçons. Quem quiser sobreviver, terá que adequar os custos à nova realidade de receita.

Empresas demandarão de menos espaço corporativo e não devem preenchê-los mais como antes (o ‘layout’ anterior ficou antigo). As grandes torres de escritório que tinham seus andares disputados a tapa terão que se readequar, clientes devem estar fazendo as contas para devolver lajes inteiras, se é que ainda não o fizeram. Quem precisava de 1000 posições, consegue viver com metade disso. Preços caem quando a oferta é bem maior que a demanda. Novos lançamentos serão reavaliados à luz dessa novidade. Isso também implica em mudança para o mercado imobiliário residencial. Antes, morar perto do trabalho nas grandes cidades era um ‘plus’, valorizando as regiões mais centrais. Se a presença nos escritórios deixa de ser algo essencial, viver perto dele também não é. Aliás, muita gente experimentou com sucesso ir para longe, interior ou litoral. Como frisado no início, há casos de empresas contratando profissionais que vivem fora de sua cidade e eventualmente do país. Claramente, viver ‘no borburinho’ perde significado nesse contexto, fato que já inflacionou o preço de imóveis e terrenos em regiões fora dos grandes centros e que se mostraram atraentes durante a pandemia. É só o começo, trata-se de um movimento provavelmente duradouro.

E se trabalhar de casa é uma realidade, a conectividade doméstica torna-se a preocupação número um, algo a beneficiar as ‘teles’ com serviços mais atraentes de ‘fornecimento de dados’. Ainda nessa linha, se as casas não tiverem um espaço convidativo ao ‘home office’, receberão algum tipo de adaptação, seja através de uma pequena reforma, ou pela aquisição de mobiliário pertinente. Acho improvável que o leitor desse artigo não tenha feito nada a respeito desse assunto ao longo dos últimos tempos. Afinal, o sujeito quer o seu ambiente de trabalho minimamente confortável, e se ele estiver em casa, desejará que seja da mesma forma.

Não há dúvidas de que o modelo híbrido ajuda na logística doméstica de quem tem filhos. A combinação do ‘leva e traz’ pode ser adaptável à rotina do pai e da mãe, algo muito complicado de fazer na ‘era presencial’. É possível inclusive participar com efetividade de reuniões de dentro do carro, algo que já fiz inúmeras vezes. Pontos positivos.

E as viagens corporativas? Essas foram abaladas para todo sempre. Lembra-se daquelas em que você fazia um ‘bate e volta’, passava o dia em outra cidade para atender a uma simples reunião? Nunca mais. Não fazem mais sentido, serão exceção. Não é que deixarão de existir, há situações em que a ‘presença física’ é indispensável, mas um número muito grande de reuniões que geravam viagens curtas pode ser completamente substituída pela videoconferência. A diferença de custo é brutal, não tenho dúvidas de que empresas serão muito mais diligentes para aprovação desse tipo de despesa. É uma péssima notícia para as companhias aéreas, que tinham boa parte de suas receitas oriundas do ‘viajante corporativo’. Aliás, se o modelo de negócio dessas companhias, quase sempre em situação financeira débil no período anterior à pandemia, já era desafiador, a partir de agora será ainda mais. Terão que se reinventar. Isso não é uma boa notícia para o consumidor, que deve experimentar um ajuste no custo total das viagens, não há como passar ao largo se o setor inteiro sofre…

Algo que deve retornar com força total, tão logo seja possível, são os eventos presenciais, praticamente desaparecidos nos últimos dois anos. Eles até foram substituídos pelos virtuais, que despontaram como nunca. Porém, na minha opinião, esses grandes eventos digitais são chatíssimos. Claramente é um exemplo onde a ‘presença’ dá uma goleada no ‘virtual’. Um dos grandes chamarizes desse tipo de evento é a possibilidade de ampliar sua rede de relacionamentos, conhecer pessoas e quem sabe fazer novos negócios. Esse realidade não é transposta para o modelo virtual. As convenções digitais perdem muito em qualidade e efetividade quando comparadas às suas versões presenciais, conclusão essa que pode ser extrapolada para além do corporativo. Nada mais sem sal que ‘happy hours’, ’cafés, ’‘festas’ virtuais ou similares. Aqui, o ‘estar presente’ faz toda diferença. Por essa razão eu acredito que negócios que ‘aglomerem’ pessoas retornarão com força, ainda mais em um contexto em que navegaremos em um ambiente mais ‘solitário’ do que o usual.

Se não estaremos mais tão presentes fisicamente, a maneira pela qual nos comunicamos também precisa ser adaptada. Precisamos nos tornar bons usuários dos aplicativos que nos permitem acessar os outros. Muitas vezes aquela história de ‘falar pessoalmente’ pode levar mais tempo, talvez dias a mais. Nem sempre podemos esperar. Teremos que buscar a eficiência em todas as formas de comunicação, o profissional que se valer de apenas ‘uma’ ou das mesmas disponíveis há 10 anos, estará em desvantagem, ou na melhor das hipóteses, será mais ‘lento’.

Ao longo de seis meses durante a pandemia, eu vivenciei um processo de ‘M&A’ da empresa em que era sócio, realizado quase 100% de maneira ‘virtual’. Em muitos momentos, foi até mais fácil, pois reunir muitas pessoas por conferência é mais simples do que fazê-lo em uma sala. Por outro lado, foi mentalmente mais exaustivo, pois houve dias em que foram 14 horas quase consecutivas de reuniões, com centenas de páginas de contrato revisadas remotamente. De qualquer maneira, em uma situação altamente complexa como essa (quem viveu sabe como é), o modelo remoto não foi impeditivo para o êxito do desfecho, e talvez até tenha tornado o processo mais rápido.

Trata-se de uma evolução. A nova realidade se imporá sobre nós, gostemos ou não. Confesso que até sinto falta do dia a dia corporativo com dezenas de ‘bons dias’, apertos de mão, conversas no corredor, etc. Isso ficou para trás. A adaptação é indispensável para que não vivamos em um novo mundo como dinossauros de um tempo que já passou.

Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

Artigos relacionados

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Verifique também
Fechar
Botão Voltar ao topo
Send this to a friend