Atualidades

Um ano que se foi…

Hoje faz um ano que tivemos o caso 150 de covid no Brasil. Daqui a uma semana, completaremos o mesmo ciclo para o dia em que o país parou em uma espécie de quarentena, que em seus primeiros três meses foi bastante rigorosa. Pouco se sabia sobre a doença além das imagens de cortejos fúnebres na Itália e a ideia assustadora de que seríamos acometidos pelo mesmo mal. Ao longo desse período, experimentamos um andamento relativamente contido da nossa curva de país continental durante a maior parte do tempo (até novembro) e que não causou colapso no sistema, exceto pontualmente em poucas cidades, mas acirrou polarizações políticas e originou um excedente de óbitos no ano passado da ordem de 13%. Infelizmente, vivenciamos hoje uma espécie de prorrogação desse suplício, agora com a variante P1, mais contagiosa e agressiva, colapsando muitas cidades do país, depois de passar por Manaus como um tsunami. Sem saber ao certo quando terminará nossa agonia, temos apenas a certeza de que a salvação virá com a vacina, ainda que a passos irritantemente lentos nesse momento. Em 2020 não tínhamos essa perspectiva.

Foi por acaso que eu comecei a mensurar os resultados da pandemia, inicialmente para consumo próprio. Chamou-me atenção uma planilha que recebi em que os países estavam alinhados pela data do caso #150 e não pelo acumulado atemporal. Era uma espécie de análise ‘safrada’, que fazia comparações justas, diferentes das informações superficiais repassadas pela imprensa, sempre com o tom de que o mundo acabaria amanhã. Essa compilação de informações foi se tornando mais robusta, as análises mais sofisticadas, migraram do mundo para os estados, incluíram média móvel (até então ignorada pela imprensa) e acabou sendo bastante disseminada pelas redes sociais, e para minha surpresa gerando muito engajamento. Para a infelicidade geral isso ainda não acabou e por mais que eu já esteja exausto em realizar essas análises, não há como abandoná-las, trata-se de um serviço de utilidade pública. Embora hoje já tenhamos algumas fontes bastante confiáveis na disseminação de informação de qualidade, sinto-me vinculado aos que diariamente passam nas minhas ‘TLs’ para dar uma olhada no breve relatório do dia. Há quase um ano que faço desse trabalho um ponto de contato com algumas centenas de pessoas em busca de uma avaliação realista da situação e em respeito a elas persistirei até o final.

Por ocasião da eclosão da pandemia, escrevi um texto equivocadamente esperançoso de que ela poderia despertar os melhores sentimentos humanos em um planeta diante de um gigantesco desafio e que talvez conseguíssemos nos inspirar em lideranças que nos uniriam ao redor de uma causa. Quem sabe, pensava eu, inocentemente à época, não sairíamos dessa experiência melhores do que entramos. Foi um equívoco.

Exceto se uma leitura futura diferente corrigir a minha percepção atual, o estrago causado pela covid não teve precedentes na história recente: em vidas perdidas, nas economias devastadas, nas finanças pessoais de centenas de milhões completamente comprometidas, na saúde mental de tantos outros e nas animosidades, ampliadas ou afloradas em todo mundo. Isso tudo sem que houvesse o surgimento de lideranças globais, tanto do ponto de vista pessoal, como institucional, capazes de prover convergência de prioridades ou ao menos uma luz que nos guiasse nas sombras. Como disse um amigo meu, a humanidade teve mais sorte que juízo pelo fato desse vírus ter uma letalidade baixa. Fosse alta, teríamos sido dizimados face à nossa inabilidade em reagir adequadamente.

Ao longo desse ano, constatamos que situações inesperadas nos colocam na zona do ‘emburrecimento’, quando simplesmente deixamos de avaliá-las de maneira racional. Eu retomarei a excepcional obra de Hans Rosling (‘Factulness’), que já foi abordada em dois artigos anteriores, para elaborar sobre 8 instintos intensamente presentes em praticamente todos os momentos no último ano, e que prejudicam um ponderado juízo de valor sobre as coisas.

Para começar, o bom e velho instinto da separação, aquele que divide o mundo em dois lados, o que você defende e o dos outros, o bom e o mau. Durante a pandemia, se alguém levantasse a mão para prover uma leitura menos aterrorizante da realidade, já era taxado pelo outro lado do pensamento binário como negacionista. Da mesma forma, caso fosse o emissário de alguma notícia realmente ruim, era um ‘pandeminion’. Sabe-se lá por que foram criados dois grupos extremos, aqueles que convergiam com as expectativas catastróficas do Atila Tamarino e a sua antítese, os que consideravam o Osmar Terra um porto seguro. É claro que estou usando de uma retórica exagerada em ambos os casos. A situação ganhou contornos políticos. Como o presidente relativizava a questão de saúde em detrimento da economia, tivemos no Brasil um posicionamento mais politizado, os que eram simpáticos ao Bolsonaro passaram a enxergá-la como algo menos severo e os ‘antibolsonaristas’ se abraçaram às teses mais horríveis. Quem quer que estivesse no meio, apanhava. No mundo, não foi tão diferente. Incrível a capacidade das pessoas em simplificar temas tão complexos em situações binárias.

Não menos relevante foi o instinto da negatividade, aquele que realça sempre o pior da notícia. Sabemos que seres humanos são naturalmente atraídos pela tragédia e indiferentes às situações amenas e previsíveis. Os milhões de pousos seguros de avião não são informados em lugar algum, é normal. A pandemia trouxe a má notícia para as primeiras páginas dos jornais todos os dias desse ano que passou, um bombardeio incessante que seguramente causou transtornos psíquicos em milhões de pessoas mundo afora. Não estou sugerindo que a omissão ou a ilusão seriam uma solução para o cenário que enfrentamos, mas certamente o exagero, nas doses mais que cavalares em que nos foi apresentado, causou danos colaterais que possivelmente jamais sejam mensurados.

O instinto da linha reta também se fez muito presente, aquele que transforma uma tendência temporária ascendente em fenômeno infinito. Sabemos que eventos demográficos (nascimento, crescimento, morte) não se perpetuam para sempre. A linha reta ascendente para de crescer, estabiliza-se ou cai. É no momento da subida, aliás exatamente o que estamos vivendo lamentavelmente outra vez, que o pânico se instala. O foco é no crescimento desenfreado, como se fosse infinito. Não é. Uma hora a curva muda a tendência. Não há mal que dure para sempre, assim como não há fenômenos que perpetuem uma linha de ‘crescimento’.

Outro instinto bastante peculiar que nos abraçou foi o do medo. Mesmo sendo uma doença de letalidade baixa para a maioria da população, o medo de ser acometido por ela, que em 90% das pessoas passaria desapercebida, tornou-se quase doentio para muita gente. Importante ressaltar que isso não é uma defesa do ‘desleixo’, como muitos ‘usuários’ do pensamento binário podem crer, apenas uma constatação de que não se deve sacrificar em vão a sua sanidade mental por algo cuja probabilidade de ocorrer pode ser menor do que algum outro evento negativo cotidiano. Tomar todos os cuidados preventivos é uma coisa, transformar sua vida em uma obsessão doentia é algo bem diferente.

O instinto do tamanho, que coloca as coisas em proporções indevidas, também esteve entre nós. Costumo citar o exemplo de profissionais altamente especializados para explicá-lo. Imagine quem trabalha com prevenção a fraudes. Todos os dias, encara as mais diversas artimanhas de sofisticados picaretas para combatê-las. Para esse profissional, os potenciais fraudadores estão em toda parte e a sua frequência é super dimensionada, mesmo que ela represente apenas 1 em cada 1000 transações. Nada de errado em ter a perspectiva do seu microcosmo, mas não avaliar a visão do todo pode nos levar a conclusões equivocadas. Expor números absolutos sem a devida comparação com alguma referência faz parte desse erro, possivelmente um dos mais comuns nessa pandemia, normalmente encontrado em situações em que o instinto da negatividade se fazia presente. O pior é que muita gente acaba se influenciando pelos pedaços soltos de informações e com eles constituindo um painel mental de horrores.

O instinto da urgência, aquele que nos convida a agir rapidamente, mesmo sem as melhores informações em mãos, também foi muito utilizado, em particular pelas autoridades públicas nas mais diversas esferas. O fechamento de muitas cidades sem que houvesse a circulação do vírus, ano passado, exauriu a paciência da população antes do tempo e contribui para um relaxamento precoce em um momento inadequado. A adoção de práticas simplesmente iguais àquelas executadas em outros lugares, sem ao menos avaliar soluções alternativas, também foi bastante comum. O que dizer da limitação no horário de funcionamento das lojas, algo ‘contra intuitivo’ e que somente concentra a frequência e aumenta a possibilidade de aglomeração? Agir rápido não necessariamente é melhor solução.

Nosso instinto de culpar não inocentou ninguém. A culpa é do Bolsonaro, a culpa é do Dória, a culpa é da China, a culpa é do Trump, a culpa é de alguém. Trata-se de simplificação mais falaciosa da pandemia, atribuir a culpa de um evento tão complexo a um indivíduo ou instituição. Ao fazê-lo, parece que ficamos mais aliviados. Nada mais equivocado. Tivéssemos os líderes imaginários perfeitos no mundo nesse momento e possivelmente estaríamos em situação não muito diferente da atual. Costumamos superestimar o papel de indivíduos, quando são as instituições que realmente fazem a diferença. Não que isso seja um alento, pois elas também fracassaram, mas atribuir a culpa a uma pessoa me parece um raciocínio bastante raso e que só aumenta a já perversa polarização em que vivemos. Isso obviamente não isenta os diferentes personagens de críticas ou elogios à sua atuação individual, mais uma vez cabe esse lembrete aos detentores do pensamento binário, para que não confundam as afirmações. Um exemplo disso bem próximo a nós é Jair Bolsonaro, que merece um zero bem redondo como nota por sua atuação individual na pandemia, mas nem de longe é o responsável por ela.

E não poderia faltar aquele que para mim foi o mais perverso de todos os instintos nesse período, o da perspectiva única. As pessoas simplesmente mergulharam em suas bolhas e fecharam olhos e ouvidos para qualquer opinião ventilada fora dela, tem sido um verdadeiro absurdo a forma agressiva e desdenhosa como se tratam as divergências, são tempos em que discordar é quase criminoso. Triste.

Ainda aprendermos muito sobre o vírus e a pandemia, tanto do ponto de vista de saúde, como sociológico e econômico. Nenhuma opinião atual, nem mesmo uma constatação tida como certa hoje, pode ser encarada como definitiva. Trata-se de um filme, em andamento, que aflorou vários instintos causadores de confusão. Pelo que já produziu de danos, seus efeitos se assemelharão aos de uma guerra. E se não aguentamos mais, imaginem os profissionais que estão na linha de frente desde o início. A todos, meu profundo respeito e admiração.

Eu já tive uma vã esperança de que poderíamos despertar o melhor da humanidade durante essa guerra, porém mantenho a chama acesa de que eventualmente o pós guerra nos ofereça um mundo melhor. Um dia a menos.

Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

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Um Comentário

  1. Caro Victor,

    Primeiramente GRATO pelo seu esforço GRATUITO em divulgar INFOs diariamente. EU sei o que CUSTA pois elaboro briefings DIÁRIOS, embora mais curtos pois só VEJO a Grande Estratégia, aliás denominada SHIH pelos chineses, ou configurações de forças em DETERMINADO CONTEXTO. Conheci o seu trabalho através da indicação do colega em comum Roberto Troster.

    Ainda não vislumbro o que será O PÓS PANDEMIA….. por ora recomendo WEAR MASK AVOID PEOPLE……… mesmo tomando as Vacinas.

    Abraço

    Celso Chini

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