Política

O STF e a Realpolitik

Em entrevista na TV Bandeirantes em 1999, o então deputado federal Jair Bolsonaro defendeu o fechamento do Congresso, o fuzilamento de “uns 30 mil”, incluindo o então presidente FHC, e a sonegação de impostos. Na época, estudou-se um processo de quebra de decoro no âmbito do Congresso, que acabou não ocorrendo. E ficou tudo por isso mesmo. Não houve, por suposto, qualquer ação do STF a respeito, muito menos uma ordem de prisão.

O que mudou de 1999 para 2021? Por que o STF, ordenou hoje a prisão de um deputado que ameaçou ministros do STF e elogiou o fechamento do Congresso? E convém observar que uma decisão inicialmente monocrática foi acompanhada por unanimidade por todos os ministros. Não consigo lembrar a última vez em que houve unanimidade no plenário do STF.Não somente isso. A reação do Congresso foi morna, pra dizer o mínimo. Difícil achar que a decisão do STF tenha sido tomada sem um mínimo de articulação com o alto clero do Parlamento.

E o silêncio ensurdecedor do presidente? Definitivamente, não é mais o deputado de 1999.

Kissinger, em sua monumental obra Diplomacia, faz um resenha histórica das duas grandes correntes filosóficas que permeiam as decisões diplomáticas ao longo do tempo. De maneira muito simplificada, a primeira corrente é a das esferas de poder, que prevaleceu na Europa ao longo do tempo. Nessa linha, os diversos países se alinham com base nas vantagens mútuas que podem obter. É a realpolitik. A segunda corrente é a da cooperação virtuosa, em que os países deveriam cooperar com base em uma ideia de bem comum. Woodrow Wilson, presidente dos EUA durante a 1a Guerra Mundial, foi o grande patrocinador dessa corrente, que inspirou a criação da Liga das Nações.

O governo Bolsonaro iniciou wilsoniano (desculpe-me Woodrow, sei que é uma comparação pobre) mas rapidamente migrou para a realpolitik. A prisão do deputado bolsonarista-raiz deve ser entendida neste contexto. Há um claro desconforto dos poderes em Brasília com a face bolsonarista-raiz do governo Bolsonaro. E não é de hoje. Vários episódios se acumularam, dando inclusive origem ao inquérito das fake news. Weintraub foi embora por conta disso.

Se em 1999 Bolsonaro era um exército de um homem só, hoje é formado por um conjunto fornido de deputados e alto staff do Executivo, alinhado a uma ala do Exército e uma rede de apoiadores não desprezível. Quando o deputado desbocado ameaça os ministros do STF e lembra o fechamento do Congresso em 1968, está dando voz a essa ala. Não foi somente Moraes que mandou prender o deputado. Foi o conjunto de todos os poderes em Brasília, incluindo o Executivo. Acabou. A realpolitik venceu.

Não há virtude, há espaços de poder dentro de certas regras de convivência, a que chamamos de democracia. O bolsonarismo desafiou essas regras e está sendo enquadrado. Hoje, nem Jair Bolsonaro é bolsonarista mais.

PS.: note que não entrei no mérito da liberdade de expressão ou da imunidade parlamentar. Eu particularmente penso que ambas não são salvo-conduto para cometer crimes, mas aí teríamos que analisar se o que o deputado falou é ou não crime. Aliás, os 11 ministros do Supremo decidiram que é crime. De qualquer modo, para entender o que ocorreu, esse é um dado irrelevante.

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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Um Comentário

  1. Concordo, em termos práticos (independente de questões legais), via realpolitik, a decisão do STF transcende em muito o vídeo do Daniel Silveira. Ela é um claro recado de rechaço de qualquer ação que subverta à ordem vigente. E o Bolsonaro hoje não é mais um livre atirador. Aliás, perfeito, o Bolsonaro deixou de ser bolsonarista, pelo menos a face que ele exibe…

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