Política

A Guerra na Ucrânia – Capítulo 4: Revoluções

A Ucrânia sempre foi um país convulsionado politicamente. Em sua curta história como nação independente, passou por duas “revoluções” que reverteram um resultado eleitoral e derrubaram um presidente. Esses dois eventos explicam muito sobre a situação atual do país. Por isso, é importante termos uma visão do que aconteceu.

A Revolução Laranja (novembro/dezembro de 2004)

AS urnas serão abertas em breve; a disputa continua muito acirrada para ser decidida; a nação está profundamente dividida; as campanhas estão ficando mais sujas; há temores de fraude; e o resultado terá consequências de longo alcance para o equilíbrio global de poder. Mas estes não são os Estados Unidos. Em 31 de outubro, os ucranianos também votarão. Sua escolha do presidente (embora provavelmente haja um segundo turno daqui a três semanas) será totalmente ignorada no frenesi em torno da eleição americana; mas não deveria ser. Embora o voto americano possa moldar as relações entre o Ocidente e o Oriente Médio, o da Ucrânia ajudará a mapear não apenas o formato futuro da Europa, mas também o relacionamento entre o Ocidente e outro Oriente mais frio: a Rússia e seus antigos domínios”.

Assim começava uma reportagem premonitória da edição da Economist do final de outubro de 2004. Era véspera do primeiro turno das eleições ucranianas, e o quadro era de um acirramento político quase fora de controle. O país vinha de dois mandatos de Leonid Kuchma, um político pró-Moscou que privilegiava os oligarcas corruptos. O candidato de Kuchma era Victor Yanukovich, seu primeiro-ministro e ele mesmo um oligarca. Do outro lado, temos Victor Yushchenko, candidato pró-Europa.

Yushchenko havia sobrevivido a uma tentativa de assassinato um mês antes por envenenamento (marca registrada de Putin). O Kremlin não estava para brincadeiras, e as ameaças de fraude nas eleições eram reais. A Rússia sob Vladimir Putin vinha em um processo de consolidação de sua esfera de influência regional, e a Ucrânia era peça-chave nesse jogo.

O primeiro turno das eleições terminou praticamente empatado entre os dois candidatos, com V. Yushchenko recebendo 39,9% dos votos, enquanto seu adversário pró-Moscou V. Yanukovich recebeu 39,3% dos votos. A votação foi dividida, como sempre, com as províncias do Oeste apoiando fortemente o candidato pró-Europa, enquanto as províncias do Leste apoiaram o candidato pró-Rússia.

O 2º turno, que teve lugar 3 semanas depois, resultou na vitória de V. Yanukovich por 51,5% a 48,5%. Mal o resultado foi divulgado, começaram protestos por parte dos partidários de Yushchenko, que denunciavam fraudes nas eleições. Reportagem da Economist descreve o pleito da seguinte forma:

Não há dúvidas de que a eleição foi conduzida de forma fraudulenta. Observadores internacionais da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), dos Estados Unidos e da União Europeia relataram violações generalizadas em uma escala ainda maior do que na votação do primeiro turno há três semanas, embora a cobertura da mídia tenha sido menos abertamente tendenciosa desta vez. Houve uso fraudulento de cédulas de voto à distância, monitores eleitorais foram expulsos e números de comparecimento de até 98% foram registrados em partes de Donetsk, a região natal de Yanukovich.”

Estados Unidos e os países da União Europeia se recusaram a reconhecer a vitória de Yanukovich. Centenas de milhares de manifestantes permaneceram nas ruas de várias cidades ucranianas, principalmente no Oeste, vestindo lenços cor de laranja, razão pela qual o movimento passou para a história como a “Revolução Laranja”.

O receio de Putin era a repetição da “Revolução Rosa”, que havia tomado a Georgia um ano antes, e que havia resultado no cancelamento das eleições naquele país e na eleição de um político pró-Europa como presidente (abordaremos essa revolução no capítulo 6).

Uma semana depois das eleições, o parlamento ucraniano já tinha votado pela anulação das eleições e, três dias depois, aprovou, por uma margem estreita, um voto de desconfiança em relação a Yanukovich, que era ainda o primeiro-ministro do presidente Kuchma.

Mas Yanukovich não ficou parado. Em 28/11, mesmo dia em que o parlamento votava pela anulação do resultado eleitoral, o candidato do governo liderou uma grande manifestação em Donetsk. Suas promessas de tornar o russo a segunda língua oficial da Ucrânia e de conceder dupla cidadania (ucraniana-russa) aos cidadãos que assim o desejassem, o fazia bastante popular na região. Houve ameaças de secessão por meio de referendos, uma situação particularmente familiar para nós, hoje.

Finalmente, em 03/12, a Suprema Corte ucraniana decidiu por novas eleições, a serem disputadas em 26/12. Algumas mudanças foram feitas para reduzir a possibilidade de fraudes, como a restrição à possibilidade de voto usando celular ou em casa, além da destituição de alguns membros desacreditados do Comitê Eleitoral.

No final, o resultado da nova votação deu a vitória a Viktor Yushchenko, com 54,0% dos votos, o que parecia colocar a Ucrânia no caminho da sua europeização. No entanto, Viktor Yanukovych voltaria à cena nas eleições seguintes, em 2010. Desta vez, em um pleito aparentemente justo, venceria a candidata pró-Europa Yulia Tymoshenko. É Yanukovych que será o protagonista da Euromaidan.

A Revolução da Dignidade (dezembro 2013 / fevereiro 2014)

Se a “Revolução Laranja” havia atingido os seus fins de modo pacífico, o mesmo não se pode dizer a respeito da “Revolução da Dignidade”, também conhecida como o “Euromaidan”, os protestos que acabaram por derrubar o governo de Viktor Yanukovych. Aliás, muito pelo contrário. Mas vamos começar do início.

A vitória de Yanukovych nas eleições de 2010 foi, como era tradição, apertada. No 2º turno, o candidato pró-Rússia obteve 51,8% dos votos válidos, contra 48,2% de sua adversária, a ex-deputada radicalmente pró-Europa Yulia Tymoshenko. Como pode, pouco mais de 5 anos depois da “Revolução Laranja”, ter sido eleito o mesmo político que havia sido impedido de assumir por fraude nas eleições?

A crise econômica de 2008/2009 pode ser uma explicação. Como vimos na seção sobre Economia, o PIB da Ucrânia havia recuado nada menos do que 15% em 2009, uma prova de fogo para qualquer governante. Mas a Economist chama a atenção também para a desilusão com o governo de Yushchenko, que havia ganho as eleições de 2004 contra Yanukovych:

A corrupção entre seus comparsas rendeu à sua administração uma reputação de corrupção quase tão ruim quanto a do regime que ele substituiu — confirmando a crença de muitos, especialmente no leste da Ucrânia (o reduto de Yanukovich), de que toda a conversa pré-revolucionária sobre um governo mais limpo era apenas uma narrativa interesseira. O fracasso em punir quase todos pelos crimes graves que Yushchenko havia denunciado, ou em reformar os tribunais, levou à desilusão entre seus apoiadores e à ousadia entre seus inimigos.” (Bloodless Orange – Economist – 11/02/2010)

Yanukovich não decepcionou. Como bom e velho aliado das oligarquias, e acostumado com os métodos mafiosos do leste europeu, o presidente não perdeu tempo. Três meses depois de empossado, o Procurador Geral desenterrou uma série de processos contra Yulia Tymoshenko, a adversária de Yanukovich nas últimas eleições e principal líder da oposição ucraniana. Esses processos terminaram com sua condenação, em outubro de 2011, a 7 anos de prisão, o que retirava um incômodo e estridente adversário da vida política do País.

O Ocidente reagiu de maneira dura à perspectiva de prisão de Tymoshenko. Líderes europeus e norte-americanos emitiram vários avisos claros sobre as consequências da prisão da opositora. A principal ameaça seria o congelamento das conversas em torno do acordo de comércio com a União Europeia, que vinha sendo amarrado pelo antecessor de Yanukovich.

No entanto, este congelamento não parece ter sido suficiente para pressionar o presidente Yanukovich a fazer as concessões que a UE desejava. Ele sabia que a Europa tinha interesse em afastar a Ucrânia da órbita da Rússia, e era esse o seu poder de barganha para manter o acordo vivo. No entanto, a Ucrânia não é um país monolítico, e a aproximação com a União Europeia interessava também a alguns oligarcas que suportavam o regime.

Yanukovych parecia fazer um jogo duplo. Acenava para os dois lados (União Europeia e Rússia), mas não assumia compromisso com nenhum dos dois, empurrando a situação com a barriga. Os oligarcas que suportavam o sistema político tinham interesses dos dois lados da fronteira, então a ninguém interessava levantar a poeira aderindo a um dos lados.

Em 25/02/2013, na cúpula Ucrânia-União Europeia, mais uma vez a Comissão Europeia exigiu da Ucrânia reformas políticas e econômicas liberalizantes como condições para a assinatura do acordo comercial, o que incluía a libertação de sua adversária Yulia Tymoshenko. Mas, como diz Yulia Mostovaya, editora do jornal Zerkalo Nedeli, “prometer tudo e não fazer nada é há muito tempo o esporte favorito da Ucrânia”. O presidente Yanukovich continuava o seu jogo, usando a ameaça de se juntar à zona de livre comércio da Rússia como uma ameaça à União Europeia e vice-versa, de modo a tentar obter vantagens de ambos os lados.

No entanto, em 04/09/2013 Viktor Yanukovich parecia ter pendido para um dos lados. O presidente chamou uma reunião com os membros do seu partido. Durante três horas, Yanukovich intimidou qualquer um que defendesse estreitar laços com a Rússia. “Esqueçam isso para sempre!”, teria gritado o presidente durante a reunião, segundo testemunhas. “Procuraremos a integração com a Europa”, respondeu o presidente àqueles que insistiam que seria um desastre contrariar Vladimir Putin.

É relativamente fácil de entender por que a União Europeia cedeu em suas exigências de libertação de Tymoshenko para seguir em frente. De acordo com uma análise do Centre for European Policy Studies (CEPS), um think tank belga, interessava à UE evitar que Putin contasse com a oportunidade de explorar as evidentes vulnerabilidades da Ucrânia para que esta se juntasse à área de livre comércio patrocinada pela Rússia, o que poderia enterrar de vez o acordo com a própria UE.

Mais difícil é saber o que finalmente fez a balança de Yanukovich pender para a assinatura do acordo com a UE. Na opinião da Economist, o que mais contribuía para que o presidente da Ucrânia caminhasse na direção do acordo era o próprio bullying russo. Putin usava a política da cenoura e da vara: a cenoura era a promessa de gás mais barato, além de ajudar o País a pagar a sua dívida externa; a vara era a ameaça de impor mais restrições às importações da Ucrânia (a Rússia era o maior parceiro comercial do País, e já havia banido a importação de chocolates em agosto daquele ano), além de ameaças veladas de insuflar revoltas separatistas. Essas ameaças poderiam estar tendo o efeito inverso, segundo a revista, provocando o aumento do desejo de ficar menos dependente de um vizinho tão problemático.

No entanto, em 21/11/2013, a apenas uma semana da assinatura do acordo, prevista para ocorrer durante uma cúpula da União Europeia com países do Leste europeu, em Vilna, capital da Lituânia, Viktor Yanukovich deu para trás. Segundo uma análise do Centre For Eastern Studies, um think tank polonês, o principal motivo teria sido econômico. O acordo poderia ser o melhor para a Ucrânia no longo prazo, mas no curto prazo poderia ser economicamente desastroso. De longe, o maior parceiro comercial da Ucrânia era a Rússia, e qualquer boicote por parte de Putin tornaria uma situação difícil ainda pior. As reservas internacionais vinham caindo em função do serviço de sua dívida externa, atingindo níveis perigosos. O FMI exigia um aumento de 40% nos preços do gás para renovar a sua linha de crédito, o que seria um suicídio político em um país já em recessão. A assinatura do acordo seria um salto muito grande rumo ao desconhecido para a elite ucraniana. A União Europeia e o FMI poderiam ter sido mais flexíveis, se a questão geopolítica fosse considerada acima da questão econômica.

A partir de 21/11, os protestos tomaram conta do País. Ficaram conhecidos como Euromaidan porque o seu epicentro foi a Praça da Independência, e maidan significa praça em ucraniano. Seria algo como “praça Europa”.

No início o comparecimento foi pequeno, mas foi ganhando corpo com o passar dos dias, e espalhando-se por outras cidades do País. No dia 29/11, os organizadores estabeleceram 3 condições para o fim dos protestos:

1) A formação de um Comitê para comunicar-se com a UE.

2) A renúncia de Yanukovich e

3) O fim da repressão às manifestações

Mas quem eram esses organizadores? Ao contrário da Revolução Laranja, que foi liderada pelo candidato derrotado nas eleições, Viktor Yushchenko e, principalmente, por Yulia Tymoshenko, os protestos na Praça da Independência tiveram início através de uma convocação no Facebook. O Euromaidan foi mais parecido com as nossas “jornadas de junho”, em 2013, no sentido de significar um repúdio a toda a classe política do país. Assim, a participação de líderes políticos foi limitada.

Mas sabemos que não há solução fora da política. O povo auto-organizado é uma miragem, são necessários líderes que coloquem em prática os ideais que moveram os protestos. Caso contrário, tudo volta a ser como antes, como aconteceu com as nossas jornadas de junho. Ao contrário dos nossos protestos, no caso ucraniano os acontecimentos se precipitariam em uma dinâmica que fugiu ao controle do presidente Yanukovich.

Em 30/11, uma forte repressão policial, a primeira de muitas, fez com que o movimento ganhasse corpo. O mesmo ocorreu no dia 11/12.

Em 17/12, em um movimento que sacramentava a aproximação com Putin, Yanukovich foi a Moscou para assinar um acordo em que a Rússia comprou US$ 15 bilhões da dívida externa ucraniana. Era mais ou menos este montante que estava em negociação com o FMI. A vantagem do acordo com Putin é que este veio, obviamente, sem condicionantes econômicos e, principalmente, sem exigências de “limpeza democrática”.

Viktor Yanukovich pisca para Vladimir Putin, durante a cerimônia de assinatura da compra de US$ 15 bilhões da dívida ucraniana por parte da Rússia. Fonte: Reuters.

Os manifestantes permaneciam em vigília, montando barricadas e estruturas para continuarem em esquema 24/7 na praça. No dia 16/01, o parlamento aprovou uma série de “leis antiprotestos”, que proibiam reuniões e restringiam a liberdade de expressão, o que levou ao recrudescimento dos protestos e à “batalha da Rua Hrushevsky”, em 19/01, uma verdadeira batalha campal entre manifestantes violentos de franjas da extrema-direita e a polícia.

Os líderes da oposição política pediam que os manifestantes não escalassem a violência, em uma atitude que seria digna de Mahatma Ghandi. Do outro lado, grupos nacionalistas reunidos no que ficou conhecido como o Setor Direito lideravam a reação à violência policial, e foram os protagonistas da batalha no dia 19/01, às vezes sendo agentes provocadores da violência para fins políticos. A natureza desses grupos, muitas vezes caracterizados como de “extrema-direita” ou mesmo “neonazistas”, merece uma melhor análise, que será feita no próximo capítulo.

O dia 20/02 foi decisivo para o Euromaidan. Snipers em edifícios próximos à praça começaram a atirar nos manifestantes, matando 74 pessoas. Em geral, aceita-se a ideia de que esses snipers eram da polícia de Yanukovich, mas há interpretações alternativas, como a do cientista político Ivan Katchanovski, que escreveu um livro defendendo que, na verdade, esses snipers pertenciam ao Right Sector, e que o massacre tinha como objetivo empurrar a classe política a depor o presidente Yanukovich. Uma interpretação rocambolesca, mas não poderia deixar de mencionar este “outro lado”.

De qualquer forma, o massacre do Euromaidan levou o Congresso ucraniano a depor o presidente Viktor Yanukovich dois dias depois, que fugiu para Moscou. Putin invadiria a Crimeia 5 dias depois da fuga de Yanukovich, dando início oficial à guerra contra a Ucrânia.

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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