Política

A Guerra na Ucrânia – Capítulo 9: Volodymyr Zelensky

Leonid Kravchuk, presidente de 1991 a 1994, havia sido o último burocrata apontado pela antiga União Soviética para comandar a Ucrânia.

Leonid Kuchma, presidente de 1994 a 2004, foi deputado e primeiro-ministro antes de ser eleito presidente. Foi o representante da Ucrânia na assinatura do acordo de Minsk II.

Viktor Yushchenko, presidente de 2005 a 2010, foi presidente do Banco Central ucraniano, primeiro-ministro e deputado antes de ser eleito presidente.

Viktor Yanukovych, presidente de 2010 a 2014, foi governador da província de Donetsk, deputado e primeiro-ministro antes de ser eleito presidente.

Petro Poroshenko, presidente entre 2015 e 2019, foi deputado, chanceler, ministro do Desenvolvimento Econômico e Comércio, e empresário dos ramos de chocolate e mídia, antes de ser eleito presidente.

Volodymyr Zelensky, presidente desde 2019, foi comediante antes de ser eleito presidente.

Esta relação dos presidentes ucranianos já por si mostra o choque que foi a eleição de Zelensky para a política ucraniana. Seria o equivalente a termos um Pablo Marçal eleito no Brasil. A eleição de Bolsonaro foi o que tivemos de mais próximo dessa experiência, ainda que o ex-capitão já contasse com ampla experiência parlamentar quando foi eleito. Zelensky nunca havia passado perto de qualquer cargo público.

A melhor descrição que encontrei para a Ucrânia que Zelensky iria encontrar está em uma matéria da Economist de 2013:

“[…] a Ucrânia claramente não é uma democracia. Mas também não é uma ditadura. O poder político é um meio de enriquecimento, e não de governança. […] Os políticos da oposição são uma extensão dos grupos empresariais que eles alegam combater. As regras são flexíveis, as lealdades fluidas e a ideia de uma elite — uma classe de pessoas responsáveis ​​pelo país — é quase sem sentido. Os oligarcas tratam a Ucrânia como uma vaca leiteira. A corrupção é tão abundante que é difícil ver como ainda resta dinheiro no orçamento. […] Yulia Mostovaya, editora do Zerkalo Nedeli, um semanário independente, diz que a ideia de Yanukovych (então presidente da Ucrânia) sobre a soberania da Ucrânia não se baseia num sentimento de nacionalidade, mas numa firme crença de que “a Ucrânia só pode ser saqueada pelos ucranianos”.

Volodymyr Zelensky nasceu em 25/01/1978, na cidade de Kryvyi Rih, na província de Dnipropetrovsk, com alto percentual de russófonos, conforme podemos observar no mapa abaixo, em que destacamos a cidade natal de Zelensky. Ele mesmo nasceu em uma família judia de fala russa, como são praticamente todos os judeus ucranianos.

Zelensky formou-se em direito, mas nunca exerceu. Sua carreira como comediante começou cedo, em competições no canal de TV russo KVN a partir dos 17 anos de idade. Em 1997, funda o seu próprio time para essas competições, o Kvartal 95, que seria o embrião de sua produtora de filmes e programas de TV de mesmo nome, fundada em 2003.

Sua carreira artística vai se desenvolvendo em vários programas e filmes de fala russa e ucraniana, até que o Euromaidan o faz acordar para o mundo da política. Não o Euromaidan em si, mas as suas consequências.

A entrada de Zelensky na política

Após a deposição do presidente Viktor Yanukovych, e o início das hostilidades em Dontesk e Luhansk, teve início uma caça às bruxas a respeito de tudo o que se referia à Rússia. Em 07/08/2014, Zelensky critica, em sua página no Facebook, a intenção do governo ucraniano de banir os artistas russos do país. Não seria a última vez.

Em novembro de 2015, estreia o primeiro episódio da primeira temporada da série Servo do Povo, em que Zelensky faz o papel de um professor de história que é eleito presidente da República após um vídeo viral, em que o professor é filmado às escondidas por um aluno fazendo um discurso político recheado de palavrões. Aqui é uma interpretação minha, mas não descarto a hipótese de que Zelensky já tivesse planos de voo mais altos nessa época, não sendo o roteiro da série uma mera coincidência. A 2ª temporada da série é lançada entre outubro de novembro de 2017, quando ocorre um incidente que será definidor na carreira de Zelensky.

No dia 22/11/2017, o ator russo Fyodor Dobraravov tem sua entrada na Ucrânia proibida pelo governo, pois é considerado uma ameaça à segurança do país, em função de suas repetidas declarações de apoio à Rússia e, especialmente, à anexação da Crimeia. Fyodor era o protagonista de uma série chamada Matchmakers, produzida pela Kvartal 95, o estúdio de Zelensky. Uma semana depois, no dia 29/11, a Agência Estatal de Cinema cancela todas as licenças da série, proibindo a sua exibição na TV ucraniana. No dia seguinte, Zelensky anuncia o fim da série.

Três dias depois, no dia 03/12/2017, a Kvartal 95 registra um novo partido político com o mesmo nome da série da TV, Servo do Povo. Estava clara a intenção de Zelensky, apesar de sua candidatura somente ser oficializada um ano depois.

É interessante observar como, além do combate à corrupção, mote principal da série Servo do Povo, a defesa da convivência pacífica entre ucranianos e russos no país aparentemente também foi um fator importante na decisão de Zelensky.

Em seu discurso inaugural no parlamento, Zelensky dirá o seguinte:

Nosso próximo desafio é pegar de volta os territórios perdidos. Com toda a honestidade, esta formulação não me parece totalmente correta porque é impossível pegar de volta o que sempre foi nosso. Tanto a Crimeia quanto o Donbas foram nossa terra ucraniana, mas a terra onde perdemos a coisa mais importante — o povo.

Hoje temos que pegar de volta suas mentes — foi isso que perdemos. Ao longo dos anos, as autoridades não fizeram nada para fazê-los se sentirem ucranianos e entenderem que não são estranhos, mas são nosso povo, são ucranianos. E mesmo que eles recebam 10 passaportes diferentes, isso não mudará nada. Pois ser ucraniano não é uma linha no passaporte — ser ucraniano está aqui (aponta para o próprio coração)”

Há, no entendimento de Zelensky, uma responsabilidade grande das autoridades de Kiev pelo que está ocorrendo no Donbas. Os russos étnicos que vivem na Ucrânia são, segundo Zelensky, tratados como cidadãos de segunda categoria, razão pela qual “perdemos as suas mentes”. Ele, que pertence a essa comunidade, fala com autoridade. Não à toa, sua votação no 2º turno nas províncias russófonas foi arrasadora.

Volodymyr Zelensky aparece então como uma esperança de algo diferente dos velhos políticos e das velhas oligarquias, alguém que podia unir ucranianos e russos. Se alguém soava crível quando dizia que podia acabar com a guerra no Donbas, esse alguém era Zelensky. Claro que a realidade é sempre mais complicada.

Zelensky presidente

Zelensky anunciou a sua candidatura presidencial no Réveillon de 2018, apenas 3 meses antes do 1º turno. Mas a sua candidatura já estava na rua, como podemos observar pelas pesquisas de opinião. Desde junho, seu nome aparecia de maneira competitiva, assumindo o 2º lugar na disputa já em outubro e a liderança nas intenções de voto assim que assumiu a candidatura.

Fonte: Wikipedia

Como já vimos no 3º capítulo dessa série, Zelensky ganhou as eleições com larga margem: 73% dos votos no 2º turno. A distribuição dos votos pode ser vista no mapa a seguir. Grande parte dos votos de Zelensky veio das províncias russófonas do Leste. Mas não só. Zelensky ganhou em todas as províncias, com exceção de Lviv, o centro do nacionalismo ucraniano.

Em 20/05/2019, Zelensky profere o seu discurso inaugural na Câmara dos Deputados. Um discurso idealista, sem dúvida, e que soaria vazio não fosse Zelensky quem era, um outsider. O presidente endereça 5 assuntos principais:

1) A união dos ucranianos, independentemente de suas etnias

2) A luta contra a corrupção

3) A união com a Europa

4) Um cessar-fogo, desde que preservados os territórios ucranianos

5) Problemas econômicos

A seguir, os trechos que se referem mais diretamente ao conflito no Donbas.

“[…]

Nosso país europeu começa com cada um de nós. Escolhemos um caminho para a Europa, mas a Europa não está em algum lugar lá fora. A Europa está aqui (aponta para a própria cabeça). E depois que aparecer aqui, estará em todos os lugares, em toda a Ucrânia.

Este é o nosso sonho comum. Mas também compartilhamos uma dor comum. Cada um de nós morreu no Donbas. Todos os dias perdemos cada um de nós.

[…]

Mas superaremos tudo isso! Porque cada um de nós é ucraniano.

Somos todos ucranianos: não há ucranianos maiores ou menores, corretos ou incorretos. De Uzhgorod a Luhansk, de Chernigiv a Simferopol, em Lviv, Kharkiv, Donetsk, Dnipro e Odesa — somos ucranianos. E temos que ser um. Afinal, só assim seremos fortes.

[…]

No entanto, nossa primeira tarefa é o cessar-fogo no Donbas. Muitas vezes me perguntam: qual preço você está pronto para pagar pelo cessar-fogo? É uma pergunta estranha. Qual preço você está pronto para pagar pelas vidas de seus entes queridos? Posso garantir que estou pronto para pagar qualquer preço para impedir a morte de nossos heróis. Definitivamente não tenho medo de tomar decisões difíceis e estou pronto para perder minha fama, minha popularidade e, se necessário — sem qualquer hesitação, meu cargo, para trazer a paz, contanto que não desistamos de nossos territórios.

A história é injusta. Não fomos nós que começamos esta guerra. Mas somos nós que temos que terminá-la. E estamos prontos para o diálogo. Acredito que o primeiro passo neste diálogo será o retorno de todos os prisioneiros ucranianos.

Nosso próximo desafio é retomar os territórios perdidos. Com toda a honestidade, esta formulação não me parece totalmente correta porque é impossível retomar o que sempre foi nosso. Tanto a Crimeia quanto o Donbas são nossa terra ucraniana, mas a terra onde perdemos a coisa mais importante — o povo.

Hoje temos que retomar suas mentes — foi isso que perdemos. Ao longo dos anos, as autoridades não fizeram nada para fazê-los se sentirem ucranianos e entenderem que não são estranhos, mas são nosso povo, são ucranianos. E mesmo que eles recebam 10 passaportes diferentes, isso não mudará nada. Pois ser ucraniano não é uma linha no passaporte — ser ucraniano está aqui (aponta para o próprio coração)”

A primeira ação de Zelensky foi dissolver o parlamento e convocar eleições para dali a três meses. Seu recém-fundado partido, o Servo do Povo, obteve 235 das 450 cadeiras, o que permitiu a Zelensky deter a maioria do Congresso, em uma eleição que renovou nada menos que 80% das cadeiras. Seria a última eleição da Ucrânia até hoje.

A eleição de Zelensky foi um golpe significativo também para a narrativa de Putin. Como diz trecho de uma reportagem da Economist de 26/09/2019:

A guerra permitiu que Vladimir Putin, o presidente russo, não apenas desestabilizasse a Ucrânia, mas também se apresentasse como defensor da etnia russa no país contra uma junta nacionalista ucraniana. Petro Poroshenko, antecessor presidencial de Zelensky, também passou a ver o conflito com a Rússia como uma forma útil de consolidar sua base eleitoral e desviar a atenção da corrupção e dos problemas econômicos. A vitória de Zelensky mudou esse cálculo. Sendo de origem judaica e vindo da parte russófona do país, ele mina a narrativa do Kremlin sobre fascistas ucranianos usurpando o poder em Kiev.”

Não que Putin tenha desistido dessa narrativa. Mas, sem dúvida, tornou-se mais vulnerável, e o Kremlin precisou lançar mão da influência dos “grupos neonazistas” que, supostamente, mandam em Zelensky. Em determinado trecho de seu discurso, Zelensky diz o seguinte:

Lembram-se da seleção islandesa de futebol na Eurocopa — quando um dentista, um administrador, um piloto, um estudante e um faxineiro defenderam a honra do seu país? Ninguém acreditava que eles conseguiriam, mas eles conseguiram! E este deve ser precisamente o nosso caminho. Devemos nos tornar os islandeses no futebol, os israelenses na defesa da sua terra natal, os japoneses na tecnologia e os suíços na capacidade de conviver em harmonia, apesar de todas as diferenças.” (grifo meu)

Certamente quem se compara aos israelenses na defesa de sua terra natal não deve ter nenhuma simpatia por doutrinas neonazistas.

Zelensky e a guerra no Donbas

Em um país dominado pela corrupção e com sérios problemas econômicos, o item número 1 da agenda de Zelensky era o fim do conflito no Donbas. Faltou combinar com Putin, com os separatistas e com a oposição interna em seu próprio país.

Zelensky, de fato, tentou dar os primeiros passos. Em 08/09/2019, em um primeiro gesto de aproximação, Rússia e Ucrânia fizeram a maior troca de prisioneiros desde 2014: foram 35 de cada lado, ainda que, quando analisado no detalhe, foi um acordo muito mais vantajoso para a Rússia, dado que entregou prisioneiros que já teriam que ser entregues de acordo com tratados internacionais.

Mas foi em 01/10/2019, pouco mais de 4 meses depois de assumir o cargo, que o presidente ucraniano deu um passo decisivo, assinando um acordo em que aceita a chamada Fórmula Steinmeier, que vimos no capítulo anterior, e que previa eleições no Donbas, e a concessão de autonomia aos territórios. No entanto, Zelensky ao mesmo tempo afirmou que “não haverá eleições sob a mira de uma arma, não haverá eleições lá se as tropas ainda estiverem lá”. O problema é que, como vimos no capítulo anterior, a Fórmula Steinmeier não resolve o problema do momento de retirada das forças ocupantes.

No dia 16/10, Zelensky vai explicar o que entende ser a Fórmula Steinmeier, segundo nota da presidência:

Volodymyr Zelenskyy enfatizou mais uma vez que a chamada Fórmula Steinmeier apenas regulamentou a lei sobre o status especial do Donbas. “Vocês sabem que esta lei (sobre o status especial do Donbas) é válida até 31 de dezembro deste ano. A Fórmula Steinmeier será implementada na nova lei sobre o status especial se nos reunirmos no formato Normandia e se todas as partes concordarem com a regulamentação adicional. Se todas as partes, e o lado russo, quiserem impedir esta terrível tragédia, podemos conversar sobre a implementação da Fórmula Steinmeier na lei sobre o status especial, se concordarmos com isso”, enfatizou Volodymyr Zelenskyy. Ele também observou que o projeto de lei sobre o status especial do Donbas será amplamente discutido, em particular no Parlamento Ucraniano”.

Note como Zelensky restringe a Fórmula Steinmeier à inscrição, na constituição ucraniana, da autonomia da região do Donbas, como se fosse o final do processo, não o seu início, como entende Putin.

Protestos contra este movimento de Zelensky pipocaram no país inteiro, apesar da promessa de “nada sem tropas fora”. No dia 07/10, outro passo acordado no mesmo dia da assinatura da Fórmula Steinmeier foi dado: a retirada das forças ucranianas de Zolote, na província de Luhansk, e Petrivske, na província de Donetsk, ambas as cidades na linha de contato, conforme podemos observar no mapa a seguir:

Fonte: BBC

A retirada de Zolote encontrou forte resistência de grupos paramilitares nacionalistas, e teve que ser adiada por algumas semanas. Assim que o acordo de retirada foi anunciado, várias dezenas de soldados do Batalhão de Azov se dirigiram a Zolote com o objetivo de impedir a retirada. Zelensky não teve dúvida: foi pessoalmente até a cidade para enfrentar o grupo.

Diante das TVs ucranianas, Zelensky disse para os soldados do batalhão:

Vocês não podem me dar ultimatos. Sou o presidente deste país. Tenho 42 anos. Não sou nenhum idiota. Vim aqui para dizer para vocês tirarem suas armas da linha de frente.”

Três dias depois, o exército ucraniano tinha desarmado os soldados de Azov, abrindo caminho para a retirada. Mas o movimento estava longe de ser unanimidade no local. Um jornalista conta que muitos moradores pediram para que os soldados do exército ucraniano não se retirassem. “Muitos temem que as forças apoiadas pela Rússia ocupem novas posições na cidade”, disse o jornalista. “Aqueles que têm opiniões pró-Ucrânia temem ataques de vingança.”

Entende-se por que Zelensky vai atuar com muito cuidado, a partir daqui, com relação aos próximos passos. Seu apoio político doméstico depende também da boa vontade dos separatistas e de Vladimir Putin, que pouco fizeram para ganhar a confiança dos ucranianos.

É fundamental entender o que aconteceu com as negociações após a reunião de Paris. Nenhum encontro no “formato Normandia” ocorreu depois deste, mas, como vimos no capítulo anterior, ocorreram várias reuniões do Grupo de Contato Trilateral (TCG na sigla em inglês), que reúne representantes da Ucrânia, Rússia e OSCE (Organização de Segurança e Cooperação Europeia).

Como vimos, uma dessas reuniões foi fundamental, a de 22/07/2020, em que se estabeleceram condições objetivas de cessar-fogo na linha de contato. Foi nesta reunião que as forças separatistas foram, pela primeira vez em um documento oficial, colocadas em pé de igualdade com as forças regulares ucranianas em um acordo, como se a Rússia fosse mera observadora. Houve, inclusive, ordens de não reação a ataques dos separatistas. Até aí foi Zelensky na tentativa de facilitar as negociações.

Esta concessão seria a última. A partir daí, provavelmente constatando a falta de reciprocidade, por parte do governo russo, em relação às suas próprias concessões, o que veremos é um congelamento das posições do governo ucraniano. Zelensky descobriu o que seu antecessor já sabia: é impossível encerrar uma guerra sem vencidos e vencedores. Retomar os territórios perdidos seria uma derrota diplomática que Putin jamais aceitaria, e assumir qualquer negociação em que o controle dos territórios estivesse na mesa seria a morte política de Zelensky e sua substituição por alguém muito mais linha dura, como vimos no Euromaidan.

Zelensky fez todas as concessões possíveis, e até ultrapassou a linha do que se imaginou possível dentro do seu contexto político. Se ele não conseguiu chegar a uma solução para acabar com a guerra mantendo a soberania ucraniana, nenhum outro político conseguirá.

Zelensky ditador?

Em 19/02/2025, depois de Zelensky afirmar que Trump estava preso ao mundo de desinformação russo, Trump chamou o presidente ucraniano de um “Ditador sem Eleições”. Essa acusação foi repetida desde então.

Na verdade, Zelensky poderia chamar eleições e seria reeleito facilmente. Ao contrário do que Trump afirmou, sua popularidade está em alta, como podemos ver em pesquisa Ipsos do início de março, e reproduzida a seguir:

Pesquisa Ipsos. Fonte: Economist

Podemos observar também que apenas 13% da população deseja ter eleições assim que possível. O restante prefere esperar ou um cessar-fogo, ou, na maior parte dos casos, o fim da guerra.

Volodymyr Zelesnky foi eleito em abril de 2019 para um mandato de 5 anos. No entanto, a Constituição ucraniana prevê que podem não ocorrer eleições se o país estiver sob lei marcial, como é o caso desde a invasão russa. Mas não é somente este detalhe legal que impede a realização de eleições regulares. Há alguns impedimentos práticos, decorrentes do estado de guerra:

  • O custo das eleições, em um momento em que o máximo de recursos disponíveis devem ser canalizados para o esforço de guerra;
  • Seria difícil garantir a segurança dos eleitores, que seriam alvos fáceis de bombardeios nos centros de votação. A solução de um aplicativo para votação remota poderia ser alvo de hackers russos;
  • Pelo menos 6 milhões de ucranianos em regiões ocupadas pela Rússia estariam impedidas de votar.

Um outro evento explorado pela propaganda russa foi o fechamento de 3 emissoras de televisão em fevereiro de 2021. Segundo as forças de segurança ucranianas, essas 3 emissoras pertenciam secretamente a um oligarca próximo ao Kremlin, Viktor Medvedchuk, que acabaria sendo processado e preso alguns meses depois. Vladimir Putin é padrinho de casamento da filha de Medvedchuk.

Essa medida é tão mais chocante quanto mais lembrarmos que Zelensky provavelmente decidiu entrar na política após o veto do então governo Petro Poroshenko à entrada no país de um ator russo que fazia um programa produzido pelo seu estúdio, e o próprio programa foi censurado pelo governo. Lembremos que isso ocorreu em novembro de 2017 e, no mês seguinte, Zelensky registrava um partido político chamado Servo do Povo. Pouco mais de três anos depois, era Zelensky que estava cassando a licença não de um programa, mas de três canais inteiros.

Zelensky, em defesa de seu ato, disse o seguinte:

Sanções contra a mídia são sempre uma decisão difícil para qualquer governo, exceto um autoritário. Esta decisão não foi tomada de improviso, mas sim algo que já vinha sendo elaborado, com base em informações de longa data de diversas agências governamentais ucranianas. Não se trata, de forma alguma, de um ataque à liberdade de expressão; trata-se de uma decisão bem fundamentada para proteger a segurança nacional.”

A decisão de Zelensky teve recepção mista no mundo Ocidental. A União Europeia colocou reparos na ação e, por meio do seu chanceler Josep Borrell, afirmou:

Embora os esforços da Ucrânia para proteger sua integridade territorial e segurança nacional, bem como para se defender da manipulação de informações, sejam legítimos, em particular dada a escala das campanhas de desinformação que afetam a Ucrânia, inclusive do exterior, isso não deve ocorrer às custas da liberdade da mídia e deve ser feito com total respeito aos direitos e liberdades fundamentais e seguindo os padrões internacionais.”

Já os EUA apoiaram a ação. A embaixada americana na Ucrânia soltou a seguinte nota:

Os EUA apoiam os esforços da Ucrânia para combater a influência maligna da Rússia, em conformidade com a lei ucraniana, em defesa de sua soberania e integridade territorial. Devemos todos trabalhar juntos para impedir que a desinformação seja utilizada como arma em uma guerra de informação contra Estados soberanos.”

ONGs ucranianas de combate à desinformação (os fact-checkers deles) soltaram uma nota apoiando a cassação dos canais. As razões que justificam o ato seriam os seguintes:

  • De acordo com o Gabinete Presidencial da Ucrânia, esses canais são financiados pela Federação Russa;
  • Eles promovem consistentemente a desinformação do Kremlin, incluindo, mas não se limitando, às narrativas falsas, enganosas e manipuladoras de “Ucrânia fascista pós-2014”, “russofobia”, “Ucrânia como um estado falido” e “Ucrânia controlada pelo Ocidente”. A narrativa geral desses canais é que a Ucrânia não tem o direito de existir como um país independente pró-europeu;
  • Eles apoiaram, em diversas ocasiões, a agressão russa contra a Ucrânia;
  • Esses canais não aplicam os princípios da liberdade de expressão e os padrões jornalísticos em seu trabalho;
  • Eles servem frequentemente como uma ferramenta de relações públicas políticas em favor do partido político pró-Rússia de seu proprietário;
  • Eles frequentemente empregam especialistas sem educação relevante e experiência profissional para promover a agenda política favorecida pelo proprietário dos canais;
  • Esses canais serviram como uma plataforma para a promoção da extrema-direita.

Aqui realmente é complicado julgar. Um país em guerra certamente está sob mais condicionantes que um país em condições normais. Vale dizer que esta foi a única intervenção do governo Zelensky na mídia de seu país em seus quase 6 anos de governo. Não parece, portanto, ser um padrão, mas uma exceção, ainda mais vindo de um profissional da mídia.

A Repórteres Sem Fronteiras produz um ranking anual de liberdade de imprensa. A seguir, um gráfico que mostra a evolução da colocação da Ucrânia neste ranking, comparado com Rússia, EUA e Brasil:

Podemos observar que a liberdade de imprensa na Ucrânia vem evoluindo de maneira consistente nos últimos 10 anos, tendo avançado 60 posições nesse período, principalmente nos últimos 2 anos. Hoje, a Ucrânia tem um nível de liberdade de imprensa superior à do Brasil e semelhante à dos Estados Unidos. A Rússia, no movimento inverso, perdeu 20 lugares no ranking (que já não era bom) nos últimos 3 anos.

No entanto, em reportagem de 16 de abril deste ano, a Economist afirma que Zelensky tem monopolizado perigosamente o poder na Ucrânia. Foi a primeira vez, desde o início do governo Zelensky, que a revista escreveu um artigo crítico ao presidente da Ucrânia.

A matéria começa por reconhecer um dilema dos liberais ucranianos: como criticar decisões do presidente sem enfraquecer a posição da Ucrânia em uma guerra? E uma guerra contra um inimigo que não enfrenta esse tipo de oposição em seu próprio quintal. O apoio internacional à Ucrânia passa pelo reconhecimento de que o presidente sabe o que fazer com esse apoio. Se houver a mínima dúvida com relação a este pilar, corre-se o risco de fazer ruir todo o edifício.

Este dilema piorou após a desastrosa reunião de Zelensky e Trump na Casa Branca, quando o país se uniu ainda mais em torno do presidente, contra o que a maioria da população considerou um ultraje por parte do presidente dos EUA. No entanto, críticas da oposição são o contrapeso do poder em regimes democráticos, e sua ausência pode levar o detentor do poder a cometer erros. É a isto que a Economist chama a atenção.

Um exemplo apontado pela revista foi o impedimento do ex-presidente Petro Poroshenko (que disputou o 2º turno em 2019 contra Zelensky) de disputar eleições, acusado de “traição”. Claro que há narrativas para todos os lados, como acontece em qualquer disputa política, mas não parece ser um bom precedente.

A revista lista outros casos concretos de ameaças e procedimentos contra críticos da sociedade civil ou mesmo do staff governamental. Sevgil Musaeva, editora do Ukrainska Pravda, o maior site jornalístico independente do país, reclama que, ao invés de lidar com as razões que motivam as investigações jornalísticas, o gabinete presidencial responde restringindo o acesso, mirando anunciantes e encarando qualquer contato com seus jornalistas como traição. Nas palavras da editora, “isso não é censura sistêmica, mas se não resistirmos, o espaço livre desaparecerá antes que percebamos”.

A matéria termina admitindo que um certo grau de centralização é comum em tempos de guerra. Mas Zelensky pode estar ultrapassando uma linha difícil de definir a princípio, mas reconhecível depois de ultrapassada. Seria triste ver uma luta contra uma autocracia gerar uma outra autocracia.

A relação de Zelensky com Donald Trump

Queremos drenar o pântano aqui em nosso país. Trouxemos muitas pessoas novas. Não os políticos típicos, porque queremos ter um novo tipo de governo. Você é um grande professor para nós nisso.”

Acontece que, embora logicamente a União Europeia devesse ser nossa maior parceira, tecnicamente os Estados Unidos são um parceiro muito maior do que a União Europeia, e sou muito grato a vocês por isso, pois os Estados Unidos estão fazendo muito pela Ucrânia. Muito mais do que a União Europeia, especialmente quando se trata de sanções contra a Federação Russa. Gostaria também de agradecer o seu grande apoio na área de defesa. Estamos prontos para continuar a cooperar para os próximos passos, especificamente, estamos quase prontos para comprar mais Javelins dos Estados Unidos para fins de defesa.”

Estas foram algumas das palavras ditas por Volodymir Zelensky para Donald Trump, em um telefonema de 25/07/2019. Palavras de alguém que admira Trump (ou sabe como agradá-lo), e que certamente serviriam para amaciar o presidente americano. Mas Trump queria mais.

Será nesse telefonema que Trump irá pedir dois “favores” para Zelensky referindo-se: 1) ao caso Crowdstrike e 2) ao caso Hunter Biden.

A transcrição do primeiro pedido é a seguinte:

Gostaria que nos fizesse um favor, porque nosso país passou por muita coisa e a Ucrânia sabe muito sobre isso. Gostaria que você descobrisse o que aconteceu com toda essa situação com a Ucrânia, dizem que foi a Crowdstrike… […] O servidor, dizem que é da Ucrânia. […] Gostaria que o Procurador-Geral (dos EUA) ligasse para você ou para o seu pessoal e gostaria que você investigasse a fundo. Como você viu ontem, toda essa bobagem terminou com uma atuação muito ruim de um homem chamado Robert Mueller, uma atuação incompetente, mas dizem que muito disso começou com a Ucrânia. Seja lá o que você puder fazer, é muito importante que faça, se possível.”

Trump refere-se a uma teoria da conspiração, que teria supostamente envolvido uma empresa de cibersegurança Crowdstrike, contratada pelo Comitê Democrata. Esta empresa havia, em conjunto com o FBI, detectado a invasão de hackers russos no Comitê. Segundo a teoria, haveria um “servidor” não revelado pela empresa, e que conteria informações desabonadoras para os democratas. Em 2018, o Conselheiro Especial Robert Mueller havia indiciado 12 agentes da inteligência russa como responsáveis por esse hackeamento, e no dia anterior ao telefonema, havia prestado seu testemunho no Senado. Em resposta a esse primeiro pedido, Zelensky respondeu de maneira genérica e evasiva:

Sim, é muito importante para mim, assim como tudo o que você mencionou anteriormente. Para mim, como Presidente, é muito importante e estamos abertos a qualquer cooperação futura. Estamos prontos para abrir uma nova página na cooperação e nas relações entre os Estados Unidos e a Ucrânia. Para esse fim, acabei de chamar de volta nosso embaixador nos Estados Unidos, que será substituído por um embaixador muito competente e experiente, que trabalhará arduamente para garantir que nossas duas nações se aproximem. Também gostaria e espero que ele tenha sua confiança e mantenha relações pessoais com você para que possamos cooperar ainda mais. Direi pessoalmente que um dos meus assistentes conversou com o Sr. Giuliani recentemente e esperamos muito que ele possa viajar para a Ucrânia e que nos encontremos quando ele chegar. Gostaria apenas de garantir mais uma vez que vocês só têm amigos ao nosso redor. Vou me certificar de me cercar das melhores e mais experientes pessoas. Também queria dizer que somos amigos. Somos grandes amigos e o Sr. Presidente tem amigos em nosso país, então podemos continuar nossa parceria estratégica. Também pretendo me cercar de ótimas pessoas e, além dessa investigação, garanto, como Presidente da Ucrânia, que todas as investigações serão feitas de forma aberta e franca. Posso garantir isso a vocês.”

O segundo caso refere-se a uma investigação a respeito de uma empresa de óleo e gás chamada Burisma, em que Hunter Biden, filho de Joe Biden, ex-vice-presidente e potencial candidato democrata nas eleições seguintes, faz parte do Conselho de Administração. A respeito desse ponto, Trump diz o seguinte:

[…] ouvi dizer que você tinha um promotor que era muito bom e ele foi demitido e isso é realmente injusto. Muitas pessoas estão falando sobre isso, a maneira como demitiram seu bom promotor e você teve algumas pessoas muito ruins envolvidas. Giuliani é um homem altamente respeitado. Ele era o prefeito da cidade de Nova York, um grande prefeito, e eu gostaria que ele entrasse em contato com você. Vou pedir que ele te ligue junto com o procurador-geral. Rudy sabe muito o que está acontecendo e ele é um cara muito capaz. Se você pudesse falar com ele, isso seria ótimo. O ex-embaixador dos Estados Unidos, a mulher, era uma má influência e as pessoas com quem ela estava lidando na Ucrânia eram más influências, então eu só quero que você saiba disso. A outra coisa, há muita conversa sobre o filho de Biden, que Biden bloqueou a promotoria e muitas pessoas querem descobrir sobre isso, então o que você puder fazer com o procurador-geral seria ótimo. Biden se gabou de que ele bloqueou a acusação, então se você puder investigar isso… parece horrível para mim.”

Neste trecho há vários detalhes que merecem explicação. O promotor a que Trump se refere é Yuri Lutsenko, nomeado pelo ex-presidente Petro Poroshenko em 2016, e que tinha, ele próprio, bloqueado várias investigações, inclusive sobre a Burisma. Lutsenko vai afirmar, em uma entrevista ao site político The Hill em março de 2019 (quatro meses antes do telefonema), que a embaixadora dos EUA na Ucrânia no governo Biden deu a ele “listas de veto”, que mantinham certas pessoas de fora das investigações. É a esta ex-embaixadora que Trump se refere como uma “má influência”. Assim, temos um presidente americano tentando influenciar a nomeação de um funcionário de alto nível de um governo estrangeiro, com o objetivo de incriminar um adversário político. A referência a Giuliani ocorre porque, de acordo com reportagem da Economist, Zelensky vinha evitando se encontrar pessoalmente com o advogado pessoal de Trump, apesar de várias tentativas.

A resposta de Zelensky a esse segundo pedido já é um pouco mais específica, defendendo a sua indicação para a promotoria:

Gostaria de lhe falar sobre o promotor. Antes de mais nada, entendo e estou a par da situação. Como conquistamos a maioria absoluta em nosso Parlamento, o próximo procurador-geral será 100% meu, meu candidato, que será aprovado pelo Parlamento e assumirá o cargo em setembro. Ele ou ela analisará a situação, especificamente a empresa que você mencionou neste caso. A questão da investigação do caso é, na verdade, garantir o restabelecimento da transparência, então cuidaremos disso e trabalharemos na investigação do caso. Além disso, gostaria de lhe perguntar se você tem alguma informação adicional que possa nos fornecer. Seria muito útil para a investigação garantir que administramos a justiça em nosso país. Em relação à Embaixadora dos Estados Unidos na Ucrânia, pelo que me lembro, o nome dela era Ivanovich (na verdade, tratava-se de Marie Yovanovitch, e que havia atacado o trabalho de Lutsenko em 2016). Foi ótimo que você tenha sido o primeiro a me dizer que ela era uma má embaixadora, porque concordo plenamente com você. A atitude dela em relação a mim estava longe de ser das melhores, pois ela admirava o presidente anterior e estava do lado dele. Ela não me aceitaria como novo presidente o suficiente.”

Zelensky se coloca à disposição, mas não devolve Yuri Lutsenko ao seu posto, dadas as suas óbvias ligações com o ex-presidente Poroshenko. Como provavelmente nada aconteceu de substancial daí em diante, Trump deve ter “pegado um bode” do comediante no papel de presidente.

O primeiro e único encontro oficial de Zelensky com Trump em seu primeiro mandato ocorreu durante a Assembleia da ONU, em 25/09/2019, no dia seguinte ao pedido de impeachment de Pelosi. Podemos imaginar o clima.

Zelensky cumprimenta Trump em reunião paralela na Assembleia Geral da ONU – 25/09/2019 Fonte: Washington Post

Depois desse encontro, o próximo se daria somente 5 anos depois, quando Zelensky faria uma visita a Trump na Trump Tower em 27/09/2024. Trump ainda estava em campanha, mas Zelensky não perdeu a oportunidade. Trump somente repostou um post de sua rede social, a Truth, ele mesmo não escreveu nada a respeito dessa reunião.

Mas foi no dia anterior que Zelensky acabou por, involuntariamente, despertar a fúria dos republicanos. O presidente da Ucrânia fez uma visita a uma fábrica de munições na Pennsylvania, um estado-pêndulo disputado palmo a palmo por Donald Trump e Kamala Harris. Essa visita, acompanhada de políticos democratas, foi interpretada pelos republicanos como uma campanha velada para a candidata democrata.

Volodymyr Zelensky visita a fábrica da Scranton Army Ammunition, na Pennsylvania, acompanhado de vários políticos democratas. Fonte: BBC

Neste mesmo dia, ele se encontraria com Biden e Kamala, e falaria no Congresso. Mas esta visita de Zelensky seria lembrada pelo vice-presidente JD Vance no já histórico bate-boca no Salão Oval da Casa Branca: “você foi até a Pennsylvania e fez campanha para a oposição em outubro”.

O próximo encontro pessoal se daria somente em 07/12/2024, com Trump já eleito, em Paris. Trump, sempre tão ativo nas redes sociais, não escreveu nada sobre este encontro, o que já dá uma dimensão do tipo de relacionamento que teria com Zelensky.

Trump, Macron e Zelensky no Palácio Eliseu, Paris, 07/12/2024. Fonte: Le Monde

Então veio a desastrosa reunião na Casa Branca. A maioria das pessoas somente assistiu aos últimos 10 minutos mais ou menos, quando Zelensky se envolve em um bate-boca com Trump e Vance.

Volodymyr Zelensky e Donald Trump batem boca na Casa Branca – 28/02/2025 – Fonte: BBC

Quem assistiu aos quase 50 minutos de reunião, pode observar que Trump, entre alguns elogios à brava gente ucraniana e autoelogios à sua capacidade de terminar com a guerra e ao grande acordo de exploração de terras raras que seria assinado, reiteradamente se refere a Putin como uma contraparte legítima de uma transação comercial, não como o agressor. O presidente dos EUA enquadra o ditador russo em três categorias:

1) Alguém injustiçado. Putin foi injustiçado ao ser acusado pelos democratas e pela mídia liberal de ter dado uma mão para a primeira eleição de Trump. Claro que ali estava se autodefendendo também, mas chamou a atenção essa “solidariedade no sofrimento”. Segundo o presidente, Putin sofreu calado toda essa maledicência.

2) Alguém que não se pode odiar. Segundo Trump, não há como se chegar a um acordo se houver ódio de parte a parte. Em determinado momento, Trump chama a atenção da imprensa, dizendo “olha quanto ódio!”, quando Zelensky tenta enquadrar Putin como o que ele é.

3) Alguém que não se pode confrontar. A ideia aqui é que o confronto não adiantou nada até o momento, é hora de tentar outra tática. É um ponto. Talvez os americanos devessem adotar a mesma tática com traficantes de drogas, por exemplo, dado que o confronto não tem funcionado até o momento. Sentar em uma mesa e negociar sem ódios ou rancores.

Volodymyr Zelensky ficou escutando esse tipo de discurso durante 40 minutos, claramente desconfortável a cada vez que Putin era mencionado como uma contraparte em uma mesa de negociações, e não como o carniceiro responsável pela destruição de seu país. Não foi à toa que ele contradisse firmemente JD Vance no final, o que deu origem ao bate-boca.

Houve muitas críticas a Zelensky em relação à sua reação. Certamente não foi das melhores, olhando em retrospectiva. Mas é preciso considerar que ele vem de um país em guerra há 3 anos, e certamente está exausto das manobras de Putin.

No dia seguinte ao bate-boca, Zelensky publicou um tuíte em que reafirma sua gratidão aos EUA, mas estressa o ponto das garantias de segurança contra Putin, a única forma, em sua visão, de alcançar uma paz duradoura. A seguir, a íntegra do tuíte.

Somos muito gratos aos Estados Unidos por todo o apoio. Sou grato ao Presidente Trump, ao Congresso por seu apoio bipartidário e ao povo americano. Os ucranianos sempre apreciaram esse apoio, especialmente durante esses três anos de invasão em larga escala.

A ajuda dos Estados Unidos foi vital para nossa sobrevivência, e quero reconhecer isso. Apesar do diálogo difícil, continuamos sendo parceiros estratégicos. Mas precisamos ser honestos e diretos uns com os outros para realmente entender nossos objetivos comuns.

É crucial para nós termos o apoio do Presidente Trump. Ele quer acabar com a guerra, mas ninguém quer a paz mais do que nós. Somos nós que vivemos esta guerra na Ucrânia. É uma luta pela nossa liberdade, pela nossa própria sobrevivência.

Como disse o Presidente Reagan: “Paz não é apenas a ausência de guerra”. Estamos falando de paz justa e duradoura — liberdade, justiça e direitos humanos para todos. Um cessar-fogo não funcionará com Putin. Ele violou cessar-fogo 25 vezes nos últimos dez anos. Uma paz verdadeira é a única solução.

Estamos prontos para assinar o acordo sobre minerais, e este será o primeiro passo em direção a garantias de segurança. Mas não é suficiente, e precisamos de mais do que isso. Um cessar-fogo sem garantias de segurança é perigoso para a Ucrânia. Estamos lutando há três anos, e o povo ucraniano precisa saber que os Estados Unidos estão do nosso lado.

Não posso mudar a posição da Ucrânia em relação à Rússia. Os russos estão nos matando. A Rússia é o inimigo, e essa é a realidade que enfrentamos. A Ucrânia quer a paz, mas deve ser uma paz justa e duradoura. Para isso, precisamos ser fortes na mesa de negociações. A paz só pode vir quando sabemos que temos garantias de segurança, quando nosso exército é forte e nossos parceiros estão conosco.

Queremos paz. Foi por isso que vim aos Estados Unidos e visitei o presidente Trump. O acordo sobre minerais é apenas um primeiro passo em direção a garantias de segurança e a uma aproximação da paz. Nossa situação é difícil, mas não podemos simplesmente parar de lutar sem ter garantias de que Putin não retornará amanhã.

Será difícil sem o apoio dos EUA. Mas não podemos perder nossa vontade, nossa liberdade ou nosso povo. Vimos como os russos invadiram nossas casas e mataram muitas pessoas. Ninguém quer outra onda de ocupação. Se não pudermos ser aceitos na OTAN, precisamos de uma estrutura clara de garantias de segurança de nossos aliados nos EUA.

A Europa está pronta para contingências e para ajudar a financiar nosso grande exército. Também precisamos do papel dos EUA na definição de garantias de segurança — que tipo, qual volume e quando. Uma vez que essas garantias estejam em vigor, podemos conversar com a Rússia, a Europa e os EUA sobre diplomacia. A guerra por si só é longa demais e não temos armas suficientes para expulsá-los completamente.

Quando alguém fala em perdas, cada vida importa. A Rússia invadiu nossas casas, matou nosso povo e tentou nos eliminar. Não se trata apenas de territórios ou números — trata-se de vidas reais. É isso que precisamos que todos entendam.

Quero que os EUA se mantenham mais firmes ao nosso lado. Esta não é apenas uma guerra entre nossos dois países; a Rússia trouxe esta guerra para o nosso território e para as nossas casas. Eles estão errados porque desrespeitaram a nossa integridade territorial.

Todos os ucranianos querem ouvir uma posição firme dos EUA ao nosso lado. É compreensível que os EUA procurem dialogar com Putin. Mas os EUA sempre falaram em “paz pela força”. E juntos podemos tomar medidas firmes contra Putin.

A nossa relação com o Presidente americano é mais do que apenas entre dois líderes; é um laço histórico e sólido entre os nossos povos. É por isso que sempre começo com palavras de gratidão da nossa nação para a nação americana.

O povo americano ajudou a salvar o nosso povo. Os seres humanos e os direitos humanos vêm em primeiro lugar. Somos verdadeiramente gratos. Queremos apenas relações fortes com os Estados Unidos e espero realmente que as tenhamos.

De qualquer modo, Trump colocou Zelensky na geladeira por um tempo, inclusive suspendendo temporariamente a ajuda no campo da inteligência. Com o tempo, voltaram a conversar, e Zelensky prontamente aceitou o cessar-fogo proposto por Trump em 11/03. Putin, no entanto, não fez o mesmo, levando Trump a dizer que, talvez, o ditador russo o esteja “enrolando”.

Seja pela antipatia por Zelensky, seja por alguma identificação com a agenda conservadora de Putin, Donald Trump vem claramente pesando a balança das negociações de paz a favor da Rússia, e Putin vem se aproveitando disso, com seu jeitinho ambíguo de tocar a sua agenda.

Como última imagem, deixo aqui o encontro entre Trump e Zelensky na Basílica de São Pedro, em 26/04. Esta foto foi postada por Trump, sem nenhum comentário, como que querendo transmitir uma mensagem. Fica a cargo de cada um interpretá-la

Donald Trump e Volodymyr Zelensky conversam na Basílica de São Pedro – 26/04/2025 – Fonte: @realDonaldTrump no TruthSocial

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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