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Sobre piquetes e benefícios sociais na Argentina

Escrevo este texto no começo da tarde de hoje, dia 20 de dezembro, enquanto acontecem manifestações na Argentina, já dentro do novo protocolo de segurança.

Sem entrar nas questões de ser contra ou a favor das novas medidas é importante que se esclareçam algumas coisas que sequer tem sido muito divulgadas aqui no Brasil – seja por ideologia, seja por desconhecimento. Como já contei outras vezes, sou argentina e mantenho estreitíssimos laços com o país que me viu nascer e crescer, onde mora absolutamente toda minha família e para onde vou com muita frequência, portanto tenho muito mais do que o horroroso “lugar de fala”.

Em primeiro lugar, o novo protocolo não impede manifestações. Apenas as realizadas pelas ruas e que interditem o trânsito de veículos e de passageiros. Quem conhece Buenos Aires sabe a enorme quantidade de praças que há por lá. Pois bem, as manifestações continuam permitidas nesses espaços ou nas calçadas do país. Aliás, durante a manhã de hoje vi vários manifestantes pelas calçadas, marchando sem serem importunados pela polícia. O novo governo não quer que os piquetes impeçam a livre circulação de pessoas, que devem ter também seu direito protegido, assim como o comércio deveria ter preservado seu direito de receber clientes. Há espaço para todos nas amplas praças e espaços públicos da Argentina – não é só Buenos Aires que tem uma profusão de áreas públicas verdes.

Em segundo lugar, o lema “el que corta no cobra” (quem interdita ruas não recebe benefícios sociais) vem desde o início da campanha de Javier Milei. Que, de resto, foi aprovado pela ampla maioria da população quando o elegeu. A democracia tem dessas coisas – a maioria vence e a alternância de poder faz com que as políticas econômicas, sociais, de comércio exterior e outras mudem quando muda o poder. Aqui no Brasil está acontecendo o mesmo desde janeiro. Como sempre, tem gente que acha que aqui as mudanças são para melhor e outros acham que são para pior. Lá também – a diferença é que a aprovação nas urnas foi por uma diferença muito mais ampla.

Em terceiro lugar, o eventual corte de pagamento de benefícios sociais precisa ser melhor explicado. Na Argentina, há inacreditáveis 141 tipos de bolsa, como por filho, vale alimentação, bônus para aposentados, seguro-desemprego e todo tipo de assistencialismo que se possa imaginar. Mas os argentinos não recebem esse dinheiro diretamente do governo – federal, estadual ou municipal. Os recursos são repassados para “obras sociais” que fazem os repasses aos cidadãos. Um dos principais é o Polo Obrero, uma entidade filiada univitelinamente ao Partido Obrero, um partido político trostskista. Alguém achou estranho um partido político, na prática, controlar repasses de benefícios sociais? Bem-vindo ao clube. O Polo Obrero é liderado pelo extremista Eduardo Belliboni, a quem vi na televisão, agora há pouco, ameaçando e batendo boca com jornalistas, totalmente destemperado – e eles nem haviam feito perguntas tão difíceis assim. A seguir explico os motivos de tanto nervosismo.

Hoje à noite Milei deve anunciar um pacote de medidas e de projetos de lei a ser enviado para o Congresso. É muito provável que entre os itens esteja a mudança na forma de pagar os benefícios. Mesmo que estas entidades continuem fazendo os repasses, fala-se em dispensar a presença do beneficiado para evitar pressões e achaques, e fazer isso por transferência bancária para coibir a cobrança de comissões. Pelo visto, na Argentina ainda não ouviram falar em rachadinha e em como as pessoas são achacadas tendo que devolver parte do que recebem. Mas esse é outro ponto. Prefiro aguardar o anúncio do pacote.

Em junho do ano passado, dados oficiais do Ministério de Desenvolvimento Social argentino (do governo anterior, dos agora oposicionistas kirshneristas) anunciaram que haviam recebido, nos primeiros cinco meses do ano, 4.400 denúncias de irregularidades no recebimento de benefícios sociais. A maioria era por pagamento de “comissões” (entre 5% e 50%) ou porque foram obrigados a comparecer a marchas de protesto. Se alguém estranha marcha de protesto contra um governo do mesmo espectro político e ideológico, eis a simples explicação: o próprio governo era extorquido pelas entidades sociais. Reivindicações eram feitas e, se não fossem atendidas, a negociação (sic) era com a faca no peito. Houve 1.700 denúncias de maus tratos por parte dos representantes das organizações sociais e 900 reclamaram de terem sido ameaçados. Parece muito? Isso era relativo somente ao Programa Potenciar Trabalho, somente um dos 141 tipos de benefício. Desde sua criação, em outubro de 2021, o canal de denúncia desse benefício havia recebido, até junho de 2022, 4.419 casos. E este é só um exemplo. O problema mais óbvio disto é que o governo paga milhões em benefícios que não audita nem controla e ainda podem ser usados contra ele quando interessa à entidade.

Hoje, dia 20 de dezembro, o governo Milei abriu um canal para denúncias anônimas para quem quisesse relatar ameaças feitas pelos pagadores dos benefícios para comparecer aos piquetes. Até a hora do almoço havia recebido mais de 8.500 denúncias.

Em quarto lugar, não adianta pensar em manifestação na Argentina como as que acontecem aqui no Brasil. Não se trata de 50 pessoas marchando pela Paulista e interditando uma pista da avenida por meia hora. O jornal Clarín publicou há uns dias um levantamento que dizia que só no mês de novembro passado houve 568 piquetes em todo o país. O recorde pertence a agosto deste ano, com inacreditáveis 882 interdições.

Pessoalmente, estive em Buenos Aires em outubro, antes do primeiro turno das eleições. Num dia de semana que andei 22 quarteirões por uma única avenida em direção a um escritório em frente ao Congresso, cruzei com três piquetes que interditavam a avenida Callao. Fora os manifestantes que estavam acampados havia dois meses na praça do Congresso. Ou seja, um dia como outro qualquer. Com este protocolo e as medidas que vem por aí dá para imaginar os motivos de tanto nervosismo por parte dos dirigentes dessas entidades.

Nora Gonzalez

Nora Gonzalez é jornalista com pós-graduações em Comunicação Corporativa. Foi repórter e editora em jornais como Gazeta Mercantil e O Estado de S.Paulo e trabalhou em diversas multinacionais cuidando da Comunicação Interna e Externa no Brasil e na América Latina. Atualmente tem uma coluna no site Autoentusiastas.

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Um Comentário

  1. Nora,
    Agradeço os esclarecimentos sobre o que são os “Piquetes na Argentina”. Parte da nossa imprensa televisiva e impressa não explicaram as mudanças que ocorrem na Argentina com a mesma profundidade com que escreveu esse artigo.

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