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Censura das Redes Sociais

Neste ano de 2020 assistimos a um fenômeno interessante das redes sociais, que vêm tomando cada vez mais posições a respeito dos debates ali empreendidos. Se sua proposta foi de neutralidade ideológica, claramente isso mudou de maneira inconteste nestes últimos meses.

O propósito deste artigo é trazer algumas reflexões a respeito da legitimidade do fenômeno, mas, em sendo um assunto espinhoso, dificilmente uma conclusão definitiva poderá ser enunciada.

Os Fatos

Tenho observado diferentes graus de intervenção das redes sociais sobre o que é veiculado nelas. Os graus de intervenção podem ser tarjas preventivas, suspensão temporária de postagens ou parcial do usuário e até banimento da conta.

Suspensão e banimento, se entendi corretamente, decorrem do algoritmo de verificação a respeito das políticas do portal ou de denúncia dos leitores. A denúncia dos leitores, para ser efetiva, precisa ser numerosa, por isso esse caminho é mais difícil de censurar a postagem, já que demanda algum grau de coordenação. Porém, verifica-se cada vez mais que são os algoritmos próprios que determinam a suspensão da postagem ou do autor.

Muitas vezes, a suspensão ou banimento não fazem o menor sentido, pois a inteligência artificial dos algoritmos ainda está em desenvolvimento. Daí é comum sentir-se injustiçado quando algo assim acontece, além do transtorno e desconforto .

Entre os vários exemplos que se observam a esse respeito, cito os seguintes:

  1. Suspensão do canal dos Pingos nos Is da Jovem Pan;
  2. Suspensão de postagens de pessoas e médicos a favor do tratamento precoce da Covid19;
  3. Suspensão de postagens de pessoas veiculando artigos científicos sugerindo tratamento da Covid19 com certos protocolos que incluem HCQ;
  4. Suspensão da transmissão de especialista médico no Senado americano a respeito da pandemia;
  5. Tarjas indiscriminadas a respeito das eleições nos EUA, especialmente nas postagens do candidato que perdeu; e, entre outras,
  6. Tarjas indiscriminadas em postagens a respeito do Convid19.

As redes sociais têm tomado sistematicamente um posicionamento em cada um desses temas e, assim, restringido as postagens que são contrárias a sua política, nem sempre clara ou explícita.

Embora não sejam redes sociais, mas fazendo parte do mesmo fenômeno em termos gerais, redes de televisão americanas deixaram de transmitir a fala de seu presidente da república. Se o conteúdo de sua fala é questionável, sua posição como presidente é suficiente para caracterizar o interesse sobre o que tem a dizer, como sempre foi. E esta decisão descaracteriza o princípio de neutralidade do jornalismo e mostra a coordenação dos veículos de comunicação com quem não se submete a suas regras.

Discussão

A justificativa mais usual para a decisão das redes sociais adotar uma posição, de novo caso eu tenha entendido corretamente, é que se trata de notícias falsas. Logo, seria seu dever impedir a disseminação dessas notícias.

Há muitas objeções a essa posição. Eis algumas. Em primeiro lugar, em muitos casos trata-se de disseminação de opinião, não de notícias. Se são meras opiniões, a forma mais civilizada de esclarecimento é por meio de outras contestatórias no mesmo veículo. Isso não precisa de monitoramento, pois os próprios usuários se encarregam do contraditório.

Em segundo lugar, há suspensões evidentes que não decorrem de notícias falsas, mas opiniões contrárias ao que a rede social acha correto. Em particular, tenho visto postagens a artigos científicos publicados sendo sistematicamente censuradas, sob a alegação de que atentam contra a política do portal. Ocorre que publicações de caráter análogo, mas de conteúdos diferentes, não sofrem da mesma política, evidenciando claramente o viés ideológico do portal.

Em terceiro lugar, suponha que a postagem veiculada seja, de fato, falsa. Bem, ninguém pensa em censurar um jornal por veicular uma notícia dessas, mas espera-se que se retrate. E mesmo sendo difamação, calúnia ou injúria, o meio disponível para a reparação é o Poder Judiciário. Sim, o jornal é mais fácil de monitorar, porém atinge uma audiência maior e pode provocar um mal maior que a postagem de um usuário de rede social. E, se as redes sociais têm milhares de usuários, a liberdade de expressão e suas receitas astronômicas envolvem esse custo a ser diluído entre os milhares de leitores monitorando a postagem.

Em quarto lugar, cabe também ao leitor da postagem verificar sua veracidade, contestar suas imprecisões e mostrar suas inconsistências com outros fatos, opiniões e argumentos logicamente encadeados. Sim, há textos sedutores, sub-reptícios, mas é a liberdade de expressão que sepulta o errado, o equivocado, a malícia nociva. Afinal, como saber se o que está sendo publicado é inverídico ou é uma opinião se a própria rede social tem suas preferências ideológicas? Do ponto de vista social, por que essas preferências seriam “corretas”? Além disso, há leitores que consomem esse tipo de informação e não haveria justificativa para restringir o que devem consumir ou não.

É curioso um portal desses tomar uma posição, em vez de manter-se isento. Afinal, isso pode potencialmente criar uma demanda por portais mais neutros e, consequentemente, perda de usuários. Claro, aparentemente essa ameaça não é relevante, mas é importante discutir um pouco mais essa escolha. E daí aparece a segunda justificativa para a prática desse tipo de restrição, qual seja, sendo privadas, as redes sociais podem escolher seus usuários ou como eles se devem portar dentro delas. Vejamos isso com mais detalhes.

Enquanto é certo que as redes sociais são privadas, elas têm um caráter público que deve ser respeitado, de acordo com a lei. Para entender bem isso, imagine outra propriedade privada como um restaurante que se recusa a atender negros, imediatamente poder-se-ia acionar a legislação antirracista. Portanto, embora o negócio seja privado, há um caráter público passível de regulação, para impedir abusos.

Pois bem, no caso de redes sociais, esse caráter é mais importante, especialmente porque o usuário é a parte mais fraca da relação, considerando-se sua vulnerabilidade, a assimetria de informações entre ele e o portal, o alcance e poder econômico da rede. A externalidade de rede favorece todos, mas dá mais poder aos donos do portal. A externalidade de rede também dificulta a entrada de novos concorrentes, por isso, se usada para expressão de opiniões, restringi-las caracteriza censura, uma vez que o usuário não teria alternativas de mesma dimensão para expressar-se.

De fato, no Brasil, a liberdade de expressão é um direito, assim como a propriedade privada. Mas, o caráter público do negócio limita a liberdade de imposições e regramentos do privado. Do contrário, seria lícito impedir alguém de quem não se goste por causa da cor da pele, religião ou orientação sexual a entrar em seu estabelecimento por ser uma propriedade privada. Não vejo por que a liberdade de expressão individual tenha que ser submetida às preferências da rede social. Ela apenas tem que respeitar a lei e, casos extremos, devem ser tratados com o devido contraditório no âmbito judicial.

Conclusões

A disseminação de notícias alegadamente falsas e o caráter privado de uma rede social legitima a imposição de censura à liberdade de expressão de seus usuários?

Ainda que discutível, não vejo como legitimar esse posicionamento se inexistir violação da legislação. Uma rede pode estabelecer algumas regras de conduta, mas não pode evoluir para a censura de seus usuários, haja vista seu caráter necessariamente público, portanto sujeito à lei de liberdade de expressão.

A disseminação eventual de notícias falsas ou opiniões extremas tem que ser minimizada expondo-as à verdade, ao correto, ao comprovado. Os próprios usuários da rede monitoram isso, sem contar que eles também devem buscar as informações mais corretas.

É muito preocupante que não se enxergue e até se justifique a imposição unilateral da visão da rede sobre o usuário, quando as alternativas a essa rede são limitadas e quando isso se trata de uma manifestação claramente antidemocrática.

É preocupante a violação do contrato com a rede social, quando esta se propõe exatamente a veicular o que o usuário está pensando. Afinal, ao censurar o que o usuário está pensando, a rede está impondo um pensamento único. Não só a diversidade fica prejudicada, mas a tirania fica mais próxima. Convém mais uma vez parafrasear a expressão máxima do pensamento de Voltaire sobre o direito à livre expressão: Posso não concordar com o que dizes, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo (a frase, segundo a Super Interessante é de Evelyn Beatrice Hall, biógrafa de Voltaire). Talvez a condição civilizacional mais difícil seja justamente defender o direito de se expressar, quando não se concorda com seu conteúdo.

Rodrigo De Losso

Rodrigo De Losso tem Ph.D em Economia pela Universidade de Chicago e é professor do Departamento de Economia da USP. A ideia aqui é mostrar como teoria econômica pode ser aplicada a temas do cotidanos, às vezes polêmicos, sem deixar de falar dos outros assuntos que o interessam com música, vinhos, literatura, cinema e política.

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