Opinião

O pobre é de direita porque a esquerda não quer saber dele

“Este país não pode dar certo. Aqui prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme, traficante se vicia e pobre é de direita” (Tim Maia)

Nos meus quase 40 anos de Petrobras (boa parte deles ainda durante a ditadura militar), lidei com gente de todos os matizes políticos. Eu mesmo me considerei “de esquerda” durante boa parte da minha vida, mas acho que me arrependi a tempo.

O causo que vou contar envolve justamente um amigo, bem mais novo que eu, que era (e é ate hoje) uma espécie de “paladino da classe proletária explorada e sofrida”, inimigo feroz dos empresários e do capitalismo opressor. Lembro bem que o descanso de tela do computador dele era um jogo de imagens que incluía Lula, Chaves, Fidel e Guevara – isto lá pelo início dos anos 2000. Pois aconteceu que um dia, na hora do almoço, a gente estava discutindo sobre o problema do transporte público no Rio de Janeiro, e o rapaz confessou, candidamente, que não pegava ônibus desde os dezoito anos – quando seu papai o presenteou com um carro.

Embora todo o esforço que faço para me tornar um espírito mais puro ao longo desta reencarnação, ainda existe uma parte de mim que é trevosa e terrivelmente irônica. Vai daí que nunca mais consegui ouvir os furiosos discursos do cara em favor “dos interesses maiores do povo brasileiro” sem lembrar a Dona Florinda, a zelosa mãe do Quico, que dizia; “Tesouro, não se misture com esta gentalha!”. O cidadão defendia o explorado povo brasileiro até a morte, mas pegar ônibus junto com eles… aí é pedir muito!

Quando tento entender as sucessivas derrotas eleitorais (algumas vergonhosas) de nomes de peso da esquerda brasileira contra adversários medíocres (Freixo x Crivella, Haddad x Bolsonaro, Boulos x Covas, entre outras) acabo sempre lembrando esta história. E a conclusão que tiro de tudo isto é que a esquerda brasileira tem uma dificuldade enorme de dialogar e conviver com a classe menos favorecida, que é justamente quem decide a eleição. O teorema de Tim Maia funciona. Vamos tentar entender o porquê.

“Todo o artista tem de ir aonde o povo está” (Milton Nascimento)

A frase inspirada da canção “Nos bailes da vida” me remete a um fenômeno interessante ocorrido na religiosidade do brasileiro ao longo dos últimos 30 anos. De 1991 para cá a fatia de evangélicos cresceu de 9 para 31%, enquanto a de católicos caiu de 83 para 50%. Entre os mais pobres tenho certeza que o tombo foi maior ainda. Certamente não foi coincidência ou sorte, mas sim consequência de um projeto cuidadosamente planejado e executado pelos líderes evangélicos, visando oferecer uma opção ao cliente insatisfeito com a alienação da igreja católica em relação aos problemas do dia a dia das pessoas. A ideia foi treinar indivíduos com capacidade de liderança e bem falantes para levar a palavra bíblica a todos os cantos deste país imenso. Uma verdadeira aula de empreendedorismo. O resultado é que hoje, em qualquer local remoto do Brasil, por mais pobre e/ou perigoso que seja, incluindo até os presídios, você vai sempre encontrar um sujeito de terno e gravata com uma Bíblia na mão, pregando. A gente pode até desdenhar, dizendo que ele está muito mais preocupado com o “market share” do que com a palavra de Deus, mas o fato é que os caras vão lá e encaram a missão de frente, muitas vezes precisando até de uma coragem física admirável. E é forçoso admitir que conseguem bons resultados, ajudando a reintegrar muita gente à sociedade produtiva. Enquanto isto, a esquerda não gosta nem de entrar no ônibus. Para onde vai o voto dos pobres? Para quem está ao lado deles. Elementar, meu caro Watson.

Um efeito colateral perverso desta convivência entre pastores e o crime foi o surgimento dos “traficantes evangélicos”, que travam o que eles consideram uma espécie de “guerra santa” (que, na verdade, não passa de uma guerra muito suja) contra os terreiros de umbanda, antes característicos dos bairros mais pobres. A esquerda poderia adotar esta bandeira e ir lá combater a situação, mas eles preferem não sair do ar condicionado e ficar escrevendo teses sobre o racismo estrutural que se esconde por trás desta perseguição a religiões de raízes africanas, tudo isto dentro de um contexto em que é preciso ressignificar o histórico de desigualdade proposto pela sociedade machista e homofóbica. Ou algo parecido.

Fazendo (mais uma!) concessão ao meu lado malvado, eu diria que a esquerda só procura os traficantes quando precisa renovar o estoque de… bem, vocês entenderam. Desculpem, escorreu um pouquinho de veneno da minha boca. Vou limpar e volto já.

“O povo gosta de luxo. Quem gosta de miséria é intelectual” (Joãosinho Trinta)

Certamente o maior de todos os carnavalescos entendia melhor o gosto do povo do que qualquer professor-doutor das nossas universidades, mas a esquerda não quer saber disto. E, no carnaval, preocupa-se em proibir a execução de marchinhas tradicionais como “Mulata Bossa Nova” e “Olha a cabeleira do Zezé” que, na visão deles, acabam por ajudar a criação, no imaginário do povo, de arquétipos fenotipicamente distorcidos sob o ponto de vista racial e/ou sexual, que impedem que a sociedade faça a necessária transição no sentido de empoderar os menos favorecidos e assim ressignificar contextualmente as injustiças históricas. Ou algo parecido. Para os pobres, o bloco segue alegre e democrático (e vai voltar assim que acabar a pandemia, se Deus quiser).

“A mais sórdida pelada é de uma complexidade Shakespeariana” (Nélson Rodrigues)

Os maiores aprendizados que tive sobre a natureza humana foram em campos de pelada. Joguei bola até quase sessenta anos (enquanto o joelho aguentou), e posso dizer que a frase de Nélson Rodrigues é, como sempre, muito verdadeira. Só que não consigo nem imaginar os “Golden Boys” da esquerda brasileira batendo uma peladinha de fim de semana. Se algum dia fizessem isto, iam entender que pelada de subúrbio não tem “injúria racial” ou “ofensa homofóbica” – tem mesmo é “convocação prá porrada” (fala esta porra na minha frente, seu babaca!). E, mais importante que tudo, no final tudo acaba na velha e boa resenha onde, ao som de um pagode desafinado e com uma boa cerveja para reidratação, todo mundo volta a ser irmão, até os brigões. Só que perdão não é o forte dos que entendem que um xingamento dentro do campo deve ser considerado crime inafiançável, porque reflete um comportamento típico de uma sociedade estruturalmente racista, homofóbica, excludente e violenta, que precisa ressignificar os seus arquétipos e reparar o contexto das injustiças escravagistas históricas do futebol (não no seu aspecto lúdico, é claro, mas como instrumento de opressão e alienação da massa trabalhadora). Ou algo parecido.

Quando a alienação passa do ponto

Pra quem acha que eu estou sendo propositalmente simplista ou irônico demais, vale lembrar um marco histórico neste distanciamento social adotado desde sempre pela esquerda brasileira com relação ao povo e à realidade dos fatos. Há dois anos, numa entrevista com o então recém-empossado governador Witzel, a competente jornalista Maria Beltrão afirmou para milhões de espectadores da Globo News, que, na visão dela, “um homem andando pela rua armado com um fuzil não representa ameaça alguma”. Se você não acredita, segue o link para o vídeo (ver www.youtube.com/watch?v=IbqGn6tiNXE ). Ou seja, a moça entende que todo aquele que se sente ameaçado apenas porque vê um desfavorecido da sorte andando pela rua armado com um fuzil deve ser um burguês escroto, preconceituoso e fascista, no mínimo. Certamente ela nunca viu um tipo destes próximo da sua casa. Enfim, mais uma vez a culpa é da burguesia fascista, que vê o mundo através de seus arquétipos fenotípicos característicos de uma classe média branca, racista e homofóbica, incapaz de ressignificar a contextualização das injustiças históricas. Ou algo parecido.

E aí, quando perdem a eleição, perdem a pose…

Poderia alinhar outras bandeiras totalmente sem sentido que a esquerda insiste em desfraldar, como o uso de artigos neutros para combater o machismo histórico, ou a luta para tentar provar que mulheres trans podem competir no esporte em igualdade com as mulheres “cis” (acreditem, isto existe!). Totalmente alienados do contexto social e da vida real, eles não conseguem entender que estes temas despertam “interesse zero” em pessoas que estão realmente ocupadas pegando ônibus lotados e suando para ganhar o pão de cada dia. Falta total de conhecimento e empatia.

Quando enfim vem a eleição e eles perdem de novo, a mesma galera que adora o linguajar rebuscado das grandes intelectualidades desce do salto e, histérica, chama o eleitorado de gado burro, preconceituoso, ignorante, negacionista, fascista e mais não sei o que. Mas são arrogantes demais para admitir os seus erros, fazer um estudo de campo e uma boa reunião de lições aprendidas para entender como conseguem perder para adversários que, muitas vezes, têm pouquíssima qualificação. O problema é que, para entender isto, vão ter que pegar ônibus, jogar pelada no subúrbio, enfim, se misturar com esta gentalha que eles não suportam. E, convenhamos, é muito mais agradável fazer discursos para a elite universitária, numa salinha com ar condicionado, e ganhar aplausos entusiásticos do seleto grupo que é capaz de entender que o fato das peças brancas terem sempre a preferência para o primeiro movimento no jogo de xadrez é uma típica demonstração do racismo estruturado que permeia todo o tecido social e, através da repetição distorcida de arquétipos fenotípicos, perpetua a dominação ressignificada no contexto da sociedade.

Ou algo parecido.

Marcio Hervé

Márcio Hervé, 71 anos, engenheiro aposentado da Petrobras, gaúcho radicado no Rio desde 1976 mas gremista até hoje. Especializado em Gestão de Projetos, é palestrante, professor, tem um livro publicado (Surfando a Terceira Onda no Gerenciamento de Projetos) e escreve artigos sobre qualquer assunto desde os tempos do jornal mural do colégio; hoje, mais moderno, usa o LinkedIn, o Facebook, o Boteco ou qualquer lugar que aceite publicá-lo. Tem um casal de filhos e um casal de netos., mas não é dono de ninguém; só vale se for por amor.

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3 Comentários

  1. Posso concordar que alguns intelectuais da esquerda dão uma bola fora, às vezes. Mas eles não estão aí prá defender execuções sumárias (preventivas), excludente de ilicitude, pena de morte. Apesar de respeitarem a minoria de evangélicos progressistas, não deixam de serem vigilantes contra os pastores que fazem lavagem cerebral, roubam o máximo dos fiéis e fazem campanha política dentro das “igrejas”. Intelectuais da direita se ocupam de combater o “politicamente correto” e o “marxismo cultural”. Mas pessoas de esquerda tem na periferia sim, porém, quando ganham destaque ou se elegem, acabam com a boca cheia de formiga, vide Marielle. Apesar de recolhidos à uma certa distância do calor, os intelectuais de esquerda tem feito sim um bom trabalho, documentando a ascensão do fascismo no Brasil.

  2. Muito bom. E o Sagan, fala, fala, fala… mais só reforça o que o Hervé escreveu.
    O fato é que, aculturar nas escolas e universidades, sem falar dos meios de comunicação, ficou sempre mais fácil, do que ir sentir o verdadeiro cheiro do povo. Eu, que fui doutrinado por PCdoB e PT em minhas épocas estudantis, participei de campanha política para amigo, que depois tornou-se deputado e até governador… se tornando parte da elite, gananciosa e odiosa que sempre fomos doutrinados a criticar, me vejo obrigado a reconhecer que nossa esquerda prefere o ar-condicionado, o rolex no pulso, uma platéia de convertidos manipuláveis e, denunciar e acusar tudo e a todos, que vá de encontro às suas perspectivas, sem RESPEITO ALGUM, àqueles que pensam diferentemente.
    Com isso, passaram 35 anos, machucando, ofendendo, ferindo, mexendo com a fé alheia (oras não é porque 5 pastores televisivos sejam vagabundos, salafrários, que 100% os são, e falo disso, só porque a fé é assunto que me toca, obviamente), destruindo instituições que para outros tem valores para sustentação da sociedade e etc… etc…. e etc… E sabem o que surgiu disso? Bolsonaro. Poderia ser algo melhor? Claro e merecíamos algo melhor. Mas, surgiu Bolsonaro. Mas ele não é o fim, é só um começo de contrabalanço social que se inicia. Nada de facismo. Nada de autoritarismo. Apenas um grito diante dos 35 anos de sufoco e ofensas sofridas. Talvez o grito seja alto demais. Talvez o grito seja errado (Bolsonaro para mim é um enorme erro). Mas é um grito e, se a esquerda souber ouvi-lo, pode ser que tenha um papel positivo em nosso futuro.

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