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O 7 a 1 do Racismo Brasileiro

A boa notícia de 2020: a consciência de que passou da hora do racismo ser enfrentado

Vou tocar num assunto que acho que foi uma das únicas boas notícia no mundo, em 2020: o combate ao racismo mudou de patamar.

Esse primeiro artigo era para ser sobre Londres. E tinha que ser leve, porque era a proposta que fiz para mim mesma quando aceitei o convite do Victor Loyola para ser uma das colaboradoras do blog.

A dúvida brasileira… Que racismo?

Mas uma morte no caminho “atrapalhando o sábado” de muitos, a do Beto  Freitas, mudou meus planos (você se lembra dele? o nosso George Floyd do Carrefour). Enquanto o mundo todo desfruta de uma das poucas coisas boas que aconteceram em 2020 – a consciência de que o racismo precisa ser combatido pra valer – o Brasil ainda parece ainda ter dúvida... A dúvida que essa morte gerou se existe racismo ou não no Brasil,  as opiniões  que vi na minha TL ecoando a visão governamental de que importamos algo que não existe foram me dando um incômodo…

E depois de algumas semanas, quase nada mais se fala. Decidi continuar falando. Um tema mais sério pra inaugurar minha participação aqui que, prometo, será mais leve daqui pra frente.

Nesse, vou usar metáforas e números e fingir que estamos assistindo a  um jogo de futebol nesse grande campo verde e amarelo que é o Brasil. Já me antecipando às críticas, não, não estou estimulando o confronto de raças, nem de brincadeira. É só prá facilitar entender os percentuais como se fosse um placar de jogo (às vezes com gol contra…).  Usarei como fontes principais o IBGE, o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e o fantástico livro “Escravidão” do Laurentino Gomes (LG)

Alguns números prá começar a conversa…

Vou começar contando uma novidade e EM VOZ ALTA: se você ainda não percebeu (porque olhando aqui em volta não parece mesmo) os  BRANCOS NÃO SÃO MAIORIA no Brasil. Embora relevante, são em menor número: 43%  ou 90 milhões.   Os NEGROS E PARDOS são 56% ou  116 milhões (IBGE 2018), portanto, o segmento preponderante, a MAIORIA. Como isso é auto denominação, não é um critério perfeito, pode ter inclusive pardos que se auto definiram brancos ou vice-versa. Mas é o que temos no cardápio prá hoje:  os números do nosso competente IBGE. Interessante também é ver que o Brasil tem a segunda população negra do mundo, só atrás  da Nigéria. Dá prá entender, até porque 44% dos escravos africanos foram para o Brasil e o resto se dividiu entre o mundo todo. 

 E quando falamos de racismo  nos EUA  onde o justo movimento #BLM eclodiu (Vidas negras importam), é  bom colocar a coisa em perspectiva. Em outros países, o problema de racismo é grave, mas, em geral, afrodescendentes não são maioria. Nos EUA, por exemplo, 13% são negros (60% brancos e 30% hispânicos). No Reino Unido, só 3% são negros. Não dá mesmo prá importar o problema de fora. No Brasil o problema é de outra escala e portanto, exige enfrentamento ainda mais urgente e, talvez, com ações diferentes.

Pedindo licença

Sim, preciso pedir licença à comunidade negra para falar sobre o tema. Primeiro, porque não sou especialista no assunto. Tanta gente boa fala e estuda sobre isso há tanto tempo… Segundo, embora nas minhas veias corra sangue de todas as cores – africano,  índio e europeu, (segundo meu relatório 23&Me), nunca sofri racismo pela minha cor da pele.

E um pouco mais de números … a ‘matemática’ da escravidão

Supondo que tenha conseguido a licença prá falar sobre o assunto, volto à história para nos ajudar a entender ainda mais o presente e, quem sabe, com esse aprendizado, dar-nos ainda mais força e motivação para mudar o futuro. Olhe a tabela e rabisque essa matemática num post-it: 23 milhões de sequestrados, 12 milhões morrendo no meio do caminho pela violência e condições sub-humanas no transporte da “mercadoria” e 11  milhões restando. (23-12=11)

Só que isso aconteceu há séculos atrás.  Se fosse em números de hoje, poderíamos multiplicar por 10 pra facilitar.  A média da população mundial nos 1700 era em torno de 700 milhões. Hoje é superior a 7 bilhões.   Então imagine que essa escravidão fosse hoje.

A imaginação pode ajudar a entender ainda melhor o problema. Sem nenhum exagero ou drama, mas com empatia. Feche os olhos e imagine que 230 milhões de pessoas do mundo estão sendo sequestradas. Imagine se fosse você, deixando sua terra e seus amores, prá sempre e isso acontecendo à força. Metade deles, morrendo no trajeto ate o litoral. E aí,  após uma longa viagem de navio  em condições sub-humanas e onde 15% dos seus amigos morreram (estatística confirmada).

Nota: [A morte nos navios negreiros até mudou a trajetória migratórias dos tubarões (em torno 14 cadáveres por dia jogados ao mar nos 350 anos de escravidão – LG, p.49 – se fosse hoje, 140 pessoas).]

E, finalmente você chega no destino, sabe-se lá onde. Sua mãe , seu filho , seu marido são comprados por senhores diferentes e vocês jamais se veem novamente.  Essa dor doída, o “Banzo” –  “ é uma paixão da alma a q se entregam q só é extinta com a morte” (Luís A. Oliveira) . Deu prá imaginar? Se foi difícil , sugiro o filme Amistad do Steven Spielperg, uma história real que mostra o tráfico do seu trajeto desde as tribos africanas até o destino.  

E, finalmente, a estatística do “jogo”. A desigualdade racial ganhou. Perdemos todos.

Voltando aos números.  Como assim os brancos são minoria? Você olha pro lado no shopping, na escola, na padaria Colonial, na feira, no Insper, na Vértice, na Móbile, no Santo Agostinho, no Pinheiros, nos políticos, os presidentes, no corpo diplomático e só vê branco?  Pois é. Aí  que começa o aquecimento pro jogo.

Um jogo que você vai decidir quem ganhou. Quem ganhou e quem fez mais gol ou teve mais posse de bola, não é?  Não pode ter mimimi. É ou não é.

Na verdade, o ‘mimimi’ do racismo brasileiro e algo que só os brancos enxergam porque não é mimimi. Um dos motivos pode ser melhor entendido com uma fábula. Alguém perguntou para o  peixe como estava a água. E ele responde:  “O que é água? Voce que vive dentro desse áquario não nem fazer idéia que existe água. Pois é, voce não faz idéia que existe racismo porque ele está por toda a parte. Você aprendeu a reconhecer no inferno, a normalidade do fogo.  Se o Beto morreu por racismo? Nessa água, se nadasse um loiro de olhos azuis talvez ele nao tivesse sido pescado…. Melhor colocar assim?  

Bom, passado ao aquecimento, vamos ao jogo. Para facilitar a matemática vamos supor que esse jogo, de partida, deveria dar 50% de posse de bola para cada lado. Empate, porque segue a distribuição da população, meio a meio.  

Você ainda tem dúvida? No placar acima os brancos estão em vantagem absoluta (foto principal – números traduzidos em ‘metáfora de placar’ mas baseados em estatísticas reconhecidas – escrevam-me se quiserem: [email protected]) ). É mais do que um 7 a 1. Por coincidência, segundo as  estatísticas do jogo  deu 17 a 1. Poderia fácil chegar a 170…    Se colocarmos as estatísticas do Covid a situação não é diferente. A Puc do Rio (CTC/NOIS) usando dados disponíveis até maio, concluiu que “Quase 55% dos pretos e pardos faleceram enquanto que, entre os brancos, esse valor ficou em 38%”. Um 6 a 4. Se cruzar nível educacional então nem se fala.. Não por causa da cor da pele, por conta de anos e anos e camadas e camadas de privação de todo o tipo – a social e a racial, que se confundem e o problema se multiplica. O Covid é só o golpe mais recente.

Então, voltando à pergunta inicial. O racismo existe ou não? Essa conversa de dúvida sobre o racismo  brasileiro é  como uma conversa com uma mãe de um aluno que tem média 3 o ano todo. Ela fica fica indignada  quando a professora fala  que o menino é um mau aluno. Acho que e a mãe que precisas provar que ele é  bom aluno, não acha? 

A mesma coisa com o racismo brasileiro. Com esse placar, como provar que não tem?

E agora?

Depois de perder de lavada, que tal  contratar um  Guardiola para tentar resolver?

Na restruturação desse time precisa entrar conversas duras, quem fica e quem sai. O nosso Guardiola do racismo tem que tocar na ferida e pensar em algo que não seja o ‘gerúndio’ de sempre. aquele mesmo do “estamos PREPARANDO o país do futuro’.   Cotas mais prá valer? Óbvio. Ou alguém acha que esse vexame vai ser resolvido com uma substituição aqui ou acolá? Tem que ser uma mudança na estratégia do time.  Políticas afirmativas que fazem diferença? Parcerias com o setor privado, tais como o exemplo Magalu de trainees ou programas institucionais de inclusão com escolas privadas? E, nessa conversa, aparecerão temas difíceis como como a da reparação da dívida.

Nos EUA,  por exemplo, o resgate da dívida com os negros vira e mexe volta ao assunto. A nova vice presidente e a favor de alguma reparação. Quando  fizeram a libertação dos escravos nos EUA prometiam uma mula e 40 acres de indenização para cada negro livre. Aqui na Inglaterra, o pais que mais traficou escravos,  pagou a reparação para os proprietários de escravos até 2015 de tão alta que era a dívida (The Guardian, 9/7/20) e o movimento negro está discutindo o porque a mesma lógica não se aplica na mão contrária. Por exemplo, imaginem,  só imaginem,  se os negros, segundo o IBGE,  que ganham em média por hora R$ 7 a menos que os brancos pedissem uma indenização de 132 anos de prejuízo. 132×252 dias uteis x 8 horas. Um pra um. Sem juros. Imaginem o tamanho da conta. Ou quem sabe um pagamento por 350 anos de trabalho de graça que construiu nossa nação e enriqueceu os colonizadores? Não vou nem fazê-la porque não é uma proposta, óbvio.  Não necessariamente o resgate da dívida é o justo (ou possível) a fazer e será monetário como vem sendo discutido em muitos países. Foi só prá ilustrar o que vem sendo falado por aqui. (veja um link interessante da Bloomberg mostrando que a discussão está quente lá fora e como há diferentes formas de reparação possíveis na mesa – incluindo as não monetárias individuais, mais viáveis. como fundos de educação ou investimentos. O assunto voltará após a posse do Biden).

Aí você vai falar, ah, mas desse jeito a gente vai até que pagar indenização à Eva pela subordinação ao Adão. Não se trata disso.

Trata-se de ter a conversa, reconhecer que o problema não foi enfrentando como deveria e propor soluções aceleradas e, de fato, efetivas que quebrem a inércia. Precisa transformar a solução em pontos no campeonato de algum jeito mais concreto.

No entanto, a discussão da solução é tema para outra conversa e, além do mais,  o movimento negro vem, há anos, travando uma luta sem trégua e sabe mais do que todos nós juntos a saída dessa tristeza (por exemplo, acesse o link prá falar com quem entende do assunto: https://coalizaonegrapordireitos.org.br.)  O ponto é que a reparação e ações efetivas sem mais atraso é uma conversa séria que precisa entrar na pauta já. E sim, é um problema dos brancos também. Só que tem que atacar sem amarelar.

Julieda Puig

Julieda ... é a Julieda. Mãe de 2, companheira de 1, filha, irmã, amiga e, nas horas vagas, trabalha e é responsável por Compliance em um banco na terra da Rainha. Graduada e mestre em Economia pela USP e GV. Vive em Londres, “fisicamente” e, no Brasil, “virtualmente”, já que seu coração não se separa de lá. A ideia é visitar o boteco de vez em quando, como uma “correspondente 🗺” contar um pouco como é a vida por essas bandas do planeta. Às vezes vai falar séria e apaixonadamente (porque, afinal é boteco e porque senão não seria ela!) sobre ética, compliance, sustentabilidade, políticas públicas, corrupção e inclusão, seus temas preferidos. Mas a verdade é que a maior parte das vezes não pretende falar muito sério não... Já deixa claro que é bem livre na opinião, prá desespero dos carimbadores de plantão..

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4 Comentários

  1. Excelente artigo! Tabela compreensível até para quem é ruim nisso. Parabéns Julieda!

  2. Excelente artigo! Agora, só não verá o racismo quem for terraplanista em fase avançada: a da negação da matemática.

  3. Se todas as injustiças historicamente praticadas fossem passíveis de reparação, inclusive pecuniária, meu Deus, teríamos que rescrever a história da civilização e dos países. Essa ideia utópica e inexequível será muito mais clara e evidente qdo seu autores tivessem que colaborar com algum. Serão os primeiros a “sartar de banda”.
    Números são inquestionáveis, mas são facilmente manipulaveis.

    Em 1872 foi feito um censo cujo o resultado dizia que a população do Brasil era de 10 milhões de habitantes, sendo que desse total 15,24% era escrava. Esse recenseamento é considerado bastante completo por trazer o único registro oficial da população escrava nacional, dos imigrantes separados por nacionalidade e faz, ainda, um inventário inédito das etnias indígenas. De acordo com esse levantamento, 58% dos residentes no país se declaravam pardos ou pretos, contra 38% que se diziam brancos. Os estrangeiros somavam 3,8%, entre portugueses, alemães, africanos livres e franceses. Os indígenas perfaziam 4% do total dos habitantes. (ref: Fundação Cultura Palmares)
    Da abolição dos escravos ao começo da industrialização no Brasil, no governo de Getúlio Vargas, passam-se quase 40 anos de reprodução dessa população parda e preta (os pobres) sem nenhum tipo de política de inserção por parte dos Repúblicanos, dessa população abandonada à própria sorte. Portanto, durante muito tempo não existiu mercado para assimilar toda essa mão de obra desqualificada e analfabeta disponível e nem qualquer tipo de reforma agrária. Mais que o racismo, o problema sempre foi a pobreza, o total descaso na qualificação, na educação de base dessa massa, apesar, de nunca ter havido por parte dos governos qualquer política de dificultação ou impedimento de ingresso dessa população nas escolas. Já que a mão de obra gratuita tinha acabado e que teríamos que remunerar a mão de obra, por que não importar uma mais qualificada? É lógico que nessa decisão havia um componente discriminatório, mas querer atribuir só ao racismo as diferenças sociais e o analfabetismo entre brancos e negros é, no mínimo, ignorância histórica.
    Foi só com a subida ao poder dos socialistas no Brasi, a algumas décadas, que se impôs uma nova narrativa histórica de que o racismo brasileiro, que existe, mas se dilui com o tempo, é tão ou pior que o racismo Americano ou Sul Africano.
    Até então, o Brasil era um exemplo de miscigenação da qual nós nos orgulhávamos muito, afinal, a miscigenação não poderia ser um plano racial maquiavélico de vingança; pelo contrário, era a nossa maneira particular de resolver nossas idiossincrasias sociais sem nenhuma intervenção governamental.
    Éramos considerados um país de mestiços, referência para o mundo até aparecer esse modismo “Mede in USA” para nós dividir, definir e disseminar o ódio racial deles, com pura finalidade politico ideológica.
    “Como no Brasil não existe ninguém verdadeiramente negro ou branco, o que se tenta é avaliar, no fundo, a sua ideologia, obrigando o mestiço a se definir, assumido a sua negritude.” (Demétrio Magnoli)
    Existe racismo no Brasil? Claro que existe, mas é particular, difuso e sem ódio. Portanto, não podemos definir genericamente o país todo como racista sem nunca ter havido conflitos raciais de rua, uma escola de pensamento racista, um partido racista – nem os nossos integralistas (nossos fascistas) eram racistas – não temos grupos de combate racistas, não temos gueto racistas, não temos biografias racistas, imprensa, livros racistas e muito menos perseguições ou passeatas. O que temos é muita gente pobre e insatisfeita com sua própria sorte. Então, criaram um fantoche racista imaginário para dividir a sociedade e obrigá-la a se definir racialmente, criar lideranças, ampliar bases eleitorais ideológicas com a justificativa de um combate a um racismo subjetivo, mas reivindicatório de uma dívida social pretérita inexistente, utópica e inexequível.
    Costuma-se muito confundir o fato estatístico com a explicação causal. Se quisermos estabelecer uma discussão séria sobre o assunto precisamos separar ambas.
    Se por um lado existe o fato estatísco inquestionável das diferenças sociais entre brancos e negros; por outro podemos ter duas explicações: A primeira (que é a que acredito) é que existe uma diferença residual decrescente com o tempo que já acontece lentamente, mas que podemos acelerar com uma maior atenção ao ensino de base e fundamental, até, com possíveis “cotas”. Sociais! O segundo, que querem nos impor goela à baixo, é um racismo intencional e subjetivo que seria o responsável por tais diferenças, que na minha opinião é um absurdo, porque não existe nenhuma ideologia racista que possa se propagar sem ações concretas como: panfletos, filmes, livros discursos ou movimentos organizados; mas, os insatisfeitos, sempre irão existir. Como disse antes não existe nenhum indício de atividades racista concreta no país; e, ideologia não se propaga por magia. O que fazem é usar o fato estatístico embutindo, de forma sub-reptícia, todas as insatisfações mais aquilo que querem que nós acreditemos: racismo estrutural. Enquanto não provarem de forma inequívoca o elo causal entre ideologia racista e o fato estatístico, para mim, o racismo brasileiro, que não tem ações de fato, é uma fraude. Mero resmungos (mimimi) de insatisfeitos querendo culpar sua indolência e falta de vontade na cor de sua pele.
    Tratar as pessoas pardas e pretas ou aqueles que se auto ititulam como negros, como pessoas incapazes de conseguirem o sucesso pelos seus próprios talentos e sem nenhuma caridade é seguir num novo tipo de escravidão. Só que desta vez mental, que os encarcera nos fundões dos navios negreiros e das senzalas ideológicas da ignorância e dos maus valores; da violência real, verbal e de pensamento oportunista; que serve unicamente a manipulação; ao fracasso; ao totalitarismo e nunca a uma verdadeira afirmação de quem se sente discriminado pela cor da sua pele.

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