Opinião

Do Flamengo ao Lula, a estranha relação dos brasileiros com o Poder Judiciário

“Reunião é a junção de várias pessoas que, individualmente, não tem poder para decidir nada mas, em conjunto, conseguem decidir que tudo será decidido na próxima reunião” (Anônimo)

Nas jovens tardes de domingo dos anos 1980 (velhos tempos, belos dias, como cantava a inigualável Gal Costa), Silvio Santos, o mago da comunicação, apresentava os jurados do seu programa de calouros cantando e dançando uma música em que colocava o nome deles seguido da expressão “é coisa nossa” (ver https://www.youtube.com/watch?v=tGaduoLPmC4 ). “Coisa nossa”, poderia ser traduzido como algo do tipo; tudo aqui é uma grande gozação, não levem nossas brigas (normalmente iniciadas pelo histriônico Pedro de Lara) a sério, a coisa é mais ou menos como as lutas encenadas do Ted Boy Marino no Telecatch (nossa, eu hoje acordei nostálgico!). Enfim, todo mundo aqui é “coisa nossa”, tutti buona gente, divirta-se conosco no domingo que amanhã a vida segue.

Acima do VAR, só o STF – ou não

Há alguns dias, movido apenas pelo nobre intuito de causar confusão na internet, fiz um post sobre o controverso título brasileiro de 1987, até hoje objeto de discussões intermináveis entre flamenguistas e o resto do mundo. Chamei a atenção para o fato que a nossa mais alta corte de Justiça, o STF, já se manifestou sobre o assunto em 2017 (ver https://www.lance.com.br/futebol-nacional/nada-feito-para-flamengo-stf-confirma-sport-como-unico-campeao-brasileiro-1987.html ). Na ocasião, por três votos contra um, o Sport foi declarado campeão. Marco Aurélio Mello, Alexandre Morais e Rosa Weber votaram a favor do clube pernambucano e Luis Roberto Barroso entendeu que os dois poderiam ser considerados campeões (que era a reivindicação do Flamengo). Luis Fux se considerou impedido de votar porque o representante do clube carioca era o seu filho, Rodrigo Fux. Na minha visão, acima do STF só Deus (e há controvérsias!), portanto os flamenguistas tinham mais é que acatar a decisão e fim de papo. Afora isto é choro e, conforme as imortais palavras da apresentadora e filósofa ocasional Maju Coutinho, o choro é livre.

Achei engraçado quando alguns flamenguistas meus amigos responderam que eu, na qualidade de torcedor quase septuagenário (gremista, para quem não sabe), certamente tinha acompanhado a história e sabia “que não era bem assim”. Fiquei pasmo ao ouvir que alguém considerava que a mais alta corte de justiça do Brasil “não entendeu bem o caso”, e teria julgado de forma incorreta. E o mais incrível é que o Flamengo, numa atitude de flagrante desrespeito à autoridade, mantém no seu site oficial o título de 87 como sendo seu. E, pelo menos até onde estou informado, nunca foi punido por isto. Segue o jogo.

O Febeapá nunca termina…

Stanislaw Ponte Preta (1923 – 1968), um dos maiores cronistas de humor que já pisou as terras de Pindorama, crítico feroz da ditadura militar e criador da expressão “Febeapá” (Festival de Besteira que Assola o País), costumava dizer que nada poderia ser mais difícil do que tentar explicar para um americano, em inglês, o que significava a expressão “ponto facultativo”. Acho que acabei de encontrar alguma coisa bem mais complicada; tentar explicar este imbróglio todo para o mesmo americano. Resumindo, a nossa Suprema Corte se reuniu para decidir o resultado de um campeonato de futebol (o que, cá prá nós, já é um absurdo). E o pior é que o clube derrotado desacata sistematicamente a decisão, e nunca foi punido por isto. Talvez fosse melhor dizer prá ele que o STF… é coisa nossa. E como o Flamengo também é coisa nossa, fica tudo por isto mesmo. “Flamengo is our thing” seria uma tradução ao estilo Google Translator, que eu chamo de “at the foot of the letter”, ou seja, ao pé da letra. Tem que arrumar coisa melhor que isto. Vai ser difícil o americano entender.

“Eu quero dizer, agora o oposto do que eu disse antes” (Raul Seixas – Metamorfose ambulante)

Dentro deste contexto, não chega a ser muito surpreendente que o mesmo STF tenha se inspirado no grande Raul para tomar uma decisão psicodélica (para usar o linguajar da época); agora, desdizendo tudo o que foi dito até hoje, concluíram (não de forma definitiva e irreversível, é claro), que o verdadeiro e único culpado por tudo de ruim que aconteceu no Brasil durante os anos PT é o ex-juiz Sérgio Moro. Como explicar para o americano que nossa Suprema Corte se reuniu para julgar pela enésima vez o caso do ex-Presidente Lula e, ao contrário das ”n-1” vezes anteriores, ao longo de mais de cinco anos, resolveu agora considerar que Lula é inocente e o juiz Moro “suspeito”? Certamente o americano se surpreenderia, mas em seguida ia perguntar se o juiz seria punido. Pior ainda; já que não houve corrupção, os pobres e inocentes empresários que devolveram dinheiro à União, certamente chantageados pelo malvado juiz Moro, tinham direito a ser ressarcidos, e ainda mover um bom processo por danos morais. Aí você é obrigado a explicar que não é bem assim, o julgamento não é definitivo, a coisa ainda pode ir ao Pleno do STF, foi só 3×2 (decisão no “tie-break”), enfim, tudo ainda pode mudar, há espaço para mais “n’ recursos de parte a parte. Resumindo; o STF apenas decidiu que “Lula da Silva… é coisa nossa”. E Sérgio Moro, pelo menos por enquanto, não é. Bem a propósito, a performance apoplética do Ministro Gilmar Mendes, vociferando contra Moro e chorando ao apoiar a defesa de Lula, foi ao melhor estilo Pedro de Lara (sem o talento e o carisma do original, é claro). Enfim, a conclusão é que muita agua ainda vai passar por baixo da ponte até termos um decisão final – que poderá ou não ser obedecida, é claro. Para o americano eu diria que “there is a lot of water to run under the bridge before things get finished”. Or something like that.

Desorientado, o americano provavelmente perguntaria; e o povo? Não vai se revoltar, sair pelas ruas? Aí eu teria que explicar para ele que, conforme Lima Barreto já dizia há mais de um século, “o Brasil não tem povo, tem plateia”. E o auditório… é coisa nossa!

Por estas e por outras é que Silvio Santos quase virou Presidente da República – teve o bom senso de não aceitar o convite para concorrer em 1989. Já imaginaram uma coletiva de imprensa dele encerrada com o tradicional bordão; Lombardi, é você Lombardi?

Pelo menos seria divertido. A farsa virando história, na República de Bananas. Ou não.

Marcio Hervé

Márcio Hervé, 71 anos, engenheiro aposentado da Petrobras, gaúcho radicado no Rio desde 1976 mas gremista até hoje. Especializado em Gestão de Projetos, é palestrante, professor, tem um livro publicado (Surfando a Terceira Onda no Gerenciamento de Projetos) e escreve artigos sobre qualquer assunto desde os tempos do jornal mural do colégio; hoje, mais moderno, usa o LinkedIn, o Facebook, o Boteco ou qualquer lugar que aceite publicá-lo. Tem um casal de filhos e um casal de netos., mas não é dono de ninguém; só vale se for por amor.

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2 Comentários

  1. Hervér, quanto ao FLAMENGO, (ao título de 1987), nada a ver! No título do brasileirão de 2020, a CBF deu os parabéns ao FLAMENGO pelo seu octacampeonato. Então, com base nisto, a própria CBF reconhece o FLAMENGO como campeão brasileiro de 1987! Mas, como nós FLAMENGUISTAS sabemos, todos os outros clubes, e suas (re)torcidas sempre irão contra O MAIS QUERIDO DO BRASIL, E QUIÇA DO MUNDO. Engole de uma vez isto e continue vivendo. CINCUMMMMMM

    1. Prezado Geraldo, obrigado por ler e comentar. Talvez eu tenha me expressado mal, mas meu texto não foi para contestar seu querido Mengo, mas sim para dizer que temos neste caso duas situações ridículas; uma, um título de futebol ocupar a pauta da Suprema Corte do País (que certamente, não devia se ocupar com isto), e duas, a decisão da Suprema Corte do País ser desmoralizada por um monte de gente, inclusive você. A ideia foi esta. Abraço direto da série B.

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