Opinião

In “centrão” we trust

Tenho bons amigos que realmente acham que, se não estamos em uma ditadura, ao menos estamos caminhando firmemente para nos tornarmos uma, e a inelegibilidade de Bolsonaro seria mais um tijolo dessa construção. Será que é o caso?

Ninguém gosta de ser chamado de ditador. Outro dia, Joe Biden, na sua trocentésima gafe, deixou escorregar que a China é uma ditadura. Foi um Deus nos acuda, com o governo chinês pedindo explicações. Lula diz que Maduro não é ditador, que a Venezuela é até democrática demais. A ditadura militar teria sido uma “ditabranda”, com Supremo e Congresso funcionando normalmente (a não ser por “breves períodos”), rodízio de poder e até eleições! E, claro, as pessoas que acamparam em frente aos quarteis até outro dia estavam implorando intervenção militar de modo a evitar que uma ditadura assumisse o país…

Mas afinal, o que caracteriza uma ditadura? Talvez pudéssemos caracterizá-la como o oposto da democracia, mas daí teríamos que definir o que vem a ser democracia, o que nos deixa com um problema circular nas mãos.

Para fugir das impressões e vieses pessoais, talvez a forma mais objetiva de classificar um regime como mais ou menos demcorático seja através de métricas bem definidas na literatura da ciência política. A Economist Inteligence Unit procura fazer justamente isso, com o seu Democracy Index.

O Democracy Index é calculado anualmente, e se baseia em 5 pilares: 1) Processo eleitoral e pluralismo, 2) Funcionamento do governo, 3) Participação política, 4) Cultura política e 5) Liberdades civis. Cada um desses pilares recebe uma nota de 0 a 10, formando o índice total de cada país. Na última edição, de 2022, os 5 países mais democráticos foram Noruega, Nova Zelândia, Islândia, Suécia e Finlândia. Já os 5 menos democráticos foram Afeganistão, Myanmar, Coreia do Norte, Rep. Centro Africana e Síria. O Brasil ficou em 51o lugar (em um ranking de 167 países), com um score de 6,78 pontos (entre um máximo de 9,81 e um mínimo de 0,32 pontos). O Brasil, segundo este índice, não parece ser uma ditadura, ainda que não seja uma democracia perfeita.

Onde o Brasil perde mais pontos? Vejamos:

– Processo eleitoral e pluralismo: 9,58 pontos (equivalente à Suécia)

– Funcionamento do governo: 5,00 pontos

– Participação política: 6,67 pontos

– Cultura política: 5,00 pontos

– Liberdades Civis: 7,65 pontos

Podemos observar que nossos maiores problemas estão no “funcionamento do governo” e na “cultura política”. O que vem a ser isso?

Para medir o “funcionamento do governo”, a Economist mede coisas como o poder de lobbies sobre o funcionamento do governo, se há “accountability” do governo em relação aos cidadãos, nível de corrupção e a confiança da população nos políticos e nos partidos. Bem, não é à toa que não nos saímos tão bem nesse quesito.

Já a “cultura política” é medida principalmente através de pesquisas de percepção da população em relação a quesitos como “desejo de um líder forte ou militar que se sobreponha às instituições”, ou “desejo de um governo de tecnocratas”, ou a percepção da democracia como insuficiente para manter a ordem. Em países onde governos democraticamente eleitos têm falhado em fazer entregas à população, é natural que desejos desse tipo aflorem na população.

De qualquer modo, parece claro que, de acordo com o índice, em quesitos como “eleições livres” e “liberdades civis” estamos longe de sermos uma ditadura. E é justamente a esses dois quesitos que esses meus amigos se apegam ao afirmar que estamos caminhando para uma ditadura. Essa percepção não encontra respaldo em uma medição imparcial.

Mas o problema não seria o estado atual da coisa, mas a tendência. Como esse índice tem se comportado no tempo? É o que podemos observar no gráfico abaixo.

De fato, houve uma deterioração do índice brasileiro a partir de 2015, com todos os eventos que se seguiram à Lava-Jato. Provavelmente tivemos uma piora significativa sobre a visão que a população tem sobre a classe política e a democracia em geral. Mas note como o índice cai de um pico de 7,4 para o atual 6,8, uma queda de 0,6 pontos. Muito diferente do que um país como a Venezuela (gráfico abaixo) sofreu, de aproximadamente 5 pontos para 2 pontos no mesmo período. Uma queda de 3 pontos, em um movimento de clara deterioração das condições democráticas.

Claro, nada garante que não sigamos o mesmo caminho da Venezuela, mas a magnitude da deterioração é de outra ordem de grandeza.

Minha particular percepção é a seguinte: o Brasil é uma roda-gigante, em que os que estão por baixo estarão por cima em algum momento, e vice-versa. Em cada fase, o lado que está por baixo acusa o lado que está por cima de “anti-democrático”. Foi assim durante o processo de impeachment, e está sendo assim agora, no inelegibilidade de Bolsonaro. Em ambos os casos, as instâncias competentes tomaram decisões que desagradaram uma parcela da população, minando a confiança nas instituições democráticas. Mas, bem ou mal, as instituições mambembes do Brasil estão aí, fazendo a roda gigante girar. O chavismo comanda a Venezuela há 24 anos, e não há a mínima perspectiva de que a coisa vai mudar. Aqui, o “centrão” da política acaba por cortar as asas de quem tem um projeto chavista para o país, seja à esquerda, seja à direita. O Brasil nunca será o suprassumo da democracia, mas é bem difícil que uma força política se torne hegemônica na geleia real que é a nossa democracia. In “centrão” we trust.

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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