Atualidades

AIDS | COVID19

É melhor viver dez anos a mil
do que mil anos a dez

Decadence Avec Elegance (Lobão/1985 )

AIDS. HIV. AZT. ELISA. COVID19. SARS-COV-2. IgM/IgG. RT-PCR
Sopas de letrinhas que surgiram abruptamente como tsunamis virando de ponta-cabeça o mundo em suas épocas.
Vivi essas 2 pandemias que provocaram revoluções de comportamento no mundo todo, e vejo muitas, mas muitas similaridades entre ambas, no modo como a sociedade reagiu, provisoriamente durante cada momento ao longo das etapas de cada uma, e o que permaneceu como mudanças definitivas de hábitos na população.
A diferença é que a mais recente, neste mundo digital, está acontecendo numa velocidade estonteante: em apenas 17 meses ultrapassou todo o ciclo de eventos que a sua antecessora analógica levou décadas.
Eu gostaria de ter o talento do meu colega Marcelo Guterman ( dica do dia: não perca nenhuma de suas postagens) para conseguir montar uma narrativa na sequência perfeita, com pesquisa apurada, mas vai ser no meu estilo mesmo, tentando ser fiel ao que me lembro, mas talvez invertendo sequências de acontecimentos, ou exagerando em alguns eventos desimportantes e esquecendo fatos marcantes, mas vou tentar transmitir o mais realisticamente possível a minha memória, de quem viveu os fatos e como isto marcou as minhas lembranças.
Vêm, te convido a me acompanhar nesta linha do tempo, com as minhas impressões pessoais dos anos da AIDS, principalmente nas décadas de 80 e 90, comparadas com tudo que vêm rolando com a Covid19 desde que surgiu, em dezembro de 2019.

Prólogo – 30 de outubro de 1938:

A Guerra dos Mundos foi um programa de rádio transmitido na noite de Halloween de 30 de outubro de 1938, que fez a fama de seu criador e narrador, o futuro cineasta Orson Welles, baseado no romance de H. G. Wells. Ficou famoso por causar pânico na população americana. Para quem não conhece o livro, trata-se de uma invasão do planeta por forças marcianas, imbatíveis, mas que no final são derrotadas pelo mais banal dos habitantes terráqueos: um vírus, contra o qual os homenzinhos verdes não tinham defesas imunológicas.

1981:

No começo da década de 80, médicos americanos começam a notar um súbito aumento no número de pacientes homossexuais masculinos que apresentavam sintomas de infecções oportunistas e raros tipo de câncer, em que se destacava o Sarcoma de Kaposi. Gaëtan Dugas, um comissário de bordo canadense, foi identificado (e posteriormente desmentido) como sendo o Paciente Ø nos Estados Unidos. Apesar de avisado que sua doença possivelmente fosse sexualmente transmissível, ele manteve um comportamento negacionista nos anos seguintes, com ativa vida sexual sem uso de preservativos, com centenas de parceiros nas comunidades gays das diversas cidades do globo que tinha acesso pela sua profissão, alegando que “poderia fazer o que quisesse com seu corpo“.

Dezembro de 2019:

Li Wenliang, oftalmologista do Hospital Central de Wuhan, China, envia mensagem para colegas de trabalho recomendando que usassem equipamentos de segurança para evitar infecção devido a um surto de uma nova doença respiratória com sintomas semelhantes aos da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), em pacientes ligados ao mercado de alimentos da metrópole chinesa. Quatro dias depois do alerta que fez aos colegas, recebeu em sua casa a visita de agentes do Escritório de Segurança Pública, que o obrigaram a assinar uma carta. No documento, era acusado de “divulgar informações falsas” que “causaram distúrbios graves à ordem social”.

1982:

Os casos de pacientes com seu sistema imunológico comprometido e perdendo a capacidade de combater infecções oportunistas e certos tipos de câncer aumentam em um número cada vez maior de países, sempre com prevalência em pacientes homossexuais masculinos. O apelido “Câncer Gay” começa a ser difundido pela imprensa, apesar de que, no meio médico, a condição recebe o nome de Síndrome da Imunodeficiência Adquirida – AIDS. Casos semelhantes também começam a ser diagnosticados em usuários de drogas injetáveis, pacientes hemofílicos e em imigrantes haitianos nos Estados Unidos.

Janeiro de 2020:

A epidemia em Wuhan aumenta rapidamente, com centenas de casos e número cada vez maior de mortes. Apesar da quarentena rigorosa na cidade, casos de infectados começam a ser identificados em diversos países do mundo. A própria doença recebe o nome de Covid19. O vírus causador da doença é sequenciado e recebe o nome de SARS-CoV-2. Ele teria sua origem em um vírus de morcegos que sofreu mutação e passou a infectar o ser humano, com contágio através de vias respiratórias. Popularmente, o apelido “China Virus” também começa a ser difundido.

AP Photo/Health Protection Agency

1983:

Dois grupos de pesquisa independentes, liderados pelo americano Robert Gallo e o francês Luc Montagnier, descobrem que um vírus originado em primatas no centro-oeste africano e sofreu mutação para conseguir contaminar seres humanos seria o responsável pela síndrome. Ele foi chamado de HIV.  Entre humanos, seria transmitido por três vias principais: contato sexual, exposição a fluidos ou tecidos corporais (principalmente sangue) infectados e de mãe para filho durante a gravidez, o parto ou a amamentação.

Cynthia Goldsmith/Centers for Disease Control and Prevention via AP

Fevereiro 2020:

As grandes metrópoles chinesas entram em quarentena rigorosa para conter a epidemia. Hospitais de campanha são montados. Os casos começam a aumentar rapidamente em vários países do mundo, sendo a região da Lombardia, no norte da Itália, a mais atingida, com número de casos e índice de óbitos muito superiores aos da China. Observa-se que a grande maioria das vítimas era formada por idosos, ou pessoas que estavam compartilhando um mesmo ambiente fechado, como asilos na Itália ou o navio de cruzeiro Diamond Princess, que ficou em quarentena no porto de Yokohama, com centenas de casos. A partir da análise dos contágios neste navio, descobriu-se que o contágio pelo ar era o maior responsável pela transmissão entre pessoa. Diversos países do mundo começam a impor restrições e controle na chegada de viajantes do exterior. Alguns, mais radicais, cancelam os vôos internacionais e proíbem a entrada de pessoas vindas do exterior, mesmo cidadãos do próprio país, como a Austrália.

1984:

A divulgação das formas de contágio pelo HIV causa pânico pelo mundo. Previsões de especialistas indicam para um número incalculável de vítimas da doença ao longo do tempo. As pessoas batem cabeça, por desinformação ou preconceito, sobre quais as formas de contágio possível. Membros dos grupos de risco e diagnosticados com HIV positivo passam a receber tratamento discriminatório, por conta do receio da população se contaminar, até mesmo com contato físico inofensivo, como um aperto de mãos. Crianças, cujos pais foram diagnosticados com a doença , são proibidas de frequentar escolas. Cai abruptamente o número de doadores de sangue, porque as pessoas por ignorância acham que a doação também poderia causar AIDS e não o apenas o recebimento do sangue. Homossexuais são proibidos de serem doadores. Serviços como manicures, e profissionais de saúde como dentistas, redobram os cuidados com a esterilização de materiais utilizados.
Mas, a principal mudança comportamental foi na vida sexual: o sexo casual e sem compromisso , conquista dos anos anteriores de liberação, é visto como a principal forma de contágio. O uso de preservativos passa a ser o comum e obrigatório. E a prática do celibatismo, da abstinência sexual e preservação da virgindade até o casamento é incentivada pelas autoridades e formadores de opinião mais conservadores , líderes religiosos e grande parte da comunidade médica.

Março 2020:

Os números de casos e óbitos por covid pelo mundo começam a crescer em progressão geométrica, principalmente na Europa Ocidental. Na falta de certeza sob as forma de contágio e prevenção, gravidade da doença, índice de mortalidade e tratamentos indicados, países do mundo inteiro implantam medidas de restrição, variando de quarentenas menos rigorosas até lockdowns com uso de forças policiais para garantir o cumprimento. Escolas suspendem aulas, empresas enviam o máximo possível de funcionários para regime de home-office, locais de lazer fecham e as compras por delivery tornam-se o padrão, com uma super higienização com o já inesquecível alcool 70º, por medo de que até superfícies contaminadas possam transmitir o vírus . Autoridades da área de saúde batem cabeça sobre quais indicações de comportamento em casos de sintomas, o uso ou não das melhores máscaras, qual o melhor momento para se dirigir até um hospital, logo no inicio dos sintomas ou apenas quando tiverem o quadro agravado. Pessoas isolam-se em casa, evitando ao máximo principalmente o contato com os parentes de mais idade. Especialistas prevêem milhões de mortos pela pandemia. OMS finalmente a declara uma pandemia.

2ª Metade da década de 80:

Criado o primeiro teste sorológico para detectar o vírus HIV em suspeitos de contaminação. Presidente Reagan finalmente declara o combate à AIDS uma prioridade no país. O ator Rock Hudson é a primeira vitima mundialmente famosa a falecer de AIDS. É lançado o AZT, primeiro medicamento para combater a AIDS. Princesa Diana faz sua histórica visita a um hospital de tratamento e cumprimenta e abraça crianças e adultos contaminados, sem o uso de luvas ou EPIs (equipamentos de proteção individual), que mudou o paradigma de relacionamento com pessoas infectados, quebrando o estigma e preconceito inicial. Freddie Mercury, Cazuza e Renato Russo são outras vitimas famosas da doença.

2ª Metade do primeiro semestre de 2020:

As medidas de restrição de circulação de pessoas, testagem maciça de suspeitos com o exame RT-PCR e monitoramento dos casos positivos, evolução dos tratamentos médicos com novos procedimentos e uso de medicamentos diminui drasticamente os números da pandemia na Europa e EUA. No Brasil, pelo contrário, é demitido o ministro da saúde e os números entram numa curva exponencial de crescimento. A necessidade do uso de máscaras, apesar de óbvia, finalmente foi adotada como algo padrão no mundo inteiro. As pessoas, gradualmente , saem do isolamento restritivo e começam a retomar atividades fora de casa, mantendo o distanciamento social e uso do famoso alcool-gel. O Brasil se divide entre os pró e os anti Cloroquina. O segundo ministro da saúde do governo Bolsonaro é demitido.

1ª Metade da Década de 90:

Primeiros coqueteis antiretrovirais são lançados, com efetivo resultado na redução da mortalidade entre os infectados pelo HIV. Brasil implanta distribuição gratuita destes medicamentos pelo SUS e campanhas de conscientização para a importância do sexo seguro e distribuição maciça de preservativos. Magic Johnson, testado HIV positivo, disputa a olimpíada de Barcelona com o Dream Team americano de basquete. Tom Hanks ganha o Oscar de melhor ator, interpretando um advogado com AIDS no filme Philadelphia.

1ª Metade do segundo semestre de 2020:

Os números de casos e óbitos praticamente zera nos países europeus, sugerindo o final da epidemia, que permitiu uma temporada de férias de verão quase normal. No Brasil , após atingir o pico de número de casos e óbitos em julho, e com a morte do apresentador esportivo Rodrigo Rodrigues, os números também começam a baixar, alcançando os menores índices desde o inicio da pandemia, hospitais provisórios são descontinuados , por falta de pacientes. Vacinas contra o SARS-CoV-2 são desenvolvidas em tempo recorde, com ao menos 6 laboratórios conseguindo chegar com estudos promissores até a Fase 3, a última pré-lançamento.

2ª Metade da década de 90:

A partir de 1995, o índice de mortalidade entre infectados pelo HIV despencou em mais de 80% no mundo, graças ao aprimoramento dos coquetéis antiretrovirais e do lançamento dos medicamentos de profilaxia pré-exposição (PrEP) e Pós-Exposição (PEP) ao HIV. Estes medicamentos reduziram em mais de 90% o índice de infecção por HIV. Da mesma maneira que é praticamente zero o risco de sangue infectado graças ao rígido controle e testagem nos bancos de sangue.

2ª metade do segundo semestre de 2020:

Uma segunda onda da pandemia começa a ocorrer em diversos países. Alemanha, Portugal, Reino Unido, Argentina, Chile e outros, que passaram mais ilesos pela 1ª onda, apresentam números mais elevados neste segundo momento. Os laboratórios concluem o processo de testagem na Fase 3 das vacinas com índices satisfatórios de eficácia e são aprovadas para uso na população em geral. Os países mais ricos do planeta encomendam a maior parte da produção prevista, em volume de doses acima do necessário para suas populações. No Brasil, a briga agora é pela vacinação, com o governo federal não se interessando em fazer encomendas e entrando em conflito com os governadores estaduais. Destaca-se a atuação do governador de São Paulo João Dória, que através de parceria do Instituto Butantan com o laboratório chinês SinoVac desenvolve uma vacina que será a primeira a ser distribuida no país.

Século 21:

Pode-se dizer que a AIDS tornou-se uma doença crônica em muitas áreas do mundo, ao invés de uma doença aguda e fatal. Atualmente, a África subsaariana é a região mais afetada pela doença. Estima-se que tenha em torno de 70% de todas os infectados com HIV e 75% dos óbitos por AIDS do mundo. Em 2019, no mundo inteiro, 38 milhões de pessoas vivem contaminadas com o vírus HIV e destas, 23 milhões tem acesso à terapia antiretroviral. Naquele ano ocorreram, 1,7 milhão de novas infecções e 770 mil óbitos. Isso implica numa taxa de mortalidade de 2%, sendo que 40% dos infectados não tem acesso ao tratamento padrão-ouro . Considerando toda a história da doença , desde sua identificação em 1981 até 2019, os números são de 75 milhões de infectados no mundo, com 32 milhões de mortes. Um índice de mortalidade de 42%.

2021:

Mais do que nunca, desde o início da pandemia, o mundo está dividido. Com o início da vacinação em massa em diversos países, aqueles que estavam enfrentando uma 2ª onda violenta viram o número de casos e óbitos despencarem. Outros , passaram pelo mesmo processo de queda, mas provavelmente devido à própria característica do vírus, de propagar-se em “ondas”: países que tiveram picos muito agudos de crescimento , naturalmente tem na sequencia uma queda vertiginosa no número de casos e óbitos. Israel, Estados Unidos e Reino Unido se destacam como exemplos de vacinação eficiente. Porém, a maioria dos países do mundo não está bem na foto. Os laboratórios não estão conseguindo cumprir as previsões de entrega de vacinas e insumos contratados, problemas de logística e rejeição da população a determinadas marcas de vacinas atrasam o processo necessário de volume de população vacinada para se obter a esperada imunidade de rebanho. As boas notícias vem da Europa Ocidental e América do Norte, com números baixos, que permite a esses países gradualmente irem retomando a normalidade das atividades. As más notícias vêm da América do Sul, com ainda altos índices de casos e óbitos, incluindo a do ator Paulo Gustavo, e baixa cobertura vacinal. E, a péssima notícia, vêm da Índia, país que desde o início da pandemia em 2020 temia-se que pudesse se tornar o caso mais grave do mundo, por conta de sua demografia e situação econômica, mas tinha atravessado 2020 relativamente ilesa, porém em 2021 tornou-se o principal foco de crescimento da doença no mundo.

Epílogo – 22 de maio de 2021

AIDS e COVID 19.
Para uma, em 40 anos, não conseguiu ser criada uma vacina, mas criaram-se medicamentos eficazes, que a tornaram uma doença praticamente não-letal, ao contrário de seu início, em que um diagnóstico de HIV positivo equivalia a uma sentença de morte. Muitos de procedimentos corriqueiros atualmente, como o uso de insumos descartáveis, vestir máscaras e luvas por profissionais de saúde no trato direto com pacientes e o meticuloso cuidado com esterilização, são heranças positivas daqueles anos que foram incorporadas. O efeito negativo é que muito da mudança comportamental para sexo seguro vêm sendo perdida, justamente porque a população não mais a enxerga como tão perigosa, e isso implica no aumento de outras DST e gravidez indesejadas.

Para a outra, em 17 meses, não conseguiu ser criado ou descoberto um medicamento eficaz, mas criou-se vacinas que funcionam. Se serão de validade permanente ou reaplicadas periodicamente, apenas o tempo dirá. Mas, abriu-se a possibilidade de ser uma doença evitável, permitindo através da vacinação, o retorno a tudo aquilo de nossa vida anterior que tivemos que suspender por estes meses. O efeito positivo é que muitas das mudanças comportamentais benéficas, que normalmente demorariam anos para serem adotadas, e tivemos que fazer em poucos meses, provavelmente serão mantidas. Trabalho e educação híbridos, com dias presenciais combinados a outros em Home-office ou educação à distância , tele-conferências que substituem viagens de negócios supérfluas, tele-consultas médicas para casos mais simples, aumento do comércio eletrônico, dentre outras, vieram pra ficar.

Hoje, 22 de maio de 2021, os números acumulados da covid19 pelo mundo são de 166 milhões de casos e 3,44 milhões de óbitos, um índice de mortalidade de 2%.

No Brasil, em 40 anos,
350 mil pessoas morreram de AIDS.
Em 17 meses,
446 mil morreram de Covid19.

Gui

Sou o Gui. Fiz arquitetura, pós em marketing, MBA em comércio eletrônico. Desde criança , quando adorava ler Julio Verne, eu gosto de explorar, descobrir novidades. Aqui no Papodeboteco vou conversar contigo sobre descobrir como podemos explorar nosso tempo livre.

Artigos relacionados

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo
Send this to a friend