Cultura

Allan Kardec, o cientista que explicou o cristianismo – Artigo 2

O Evangelho Segundo o Espiritismo e a “fé raciocinada”

Em meu primeiro artigo (ver https://papodeboteco.net/cultura-princ/allan-kardec-o-cientista-que-explicou-o-cristianismo-artigo-1/ ) fiz uma abordagem genérica de alguns pontos da doutrina espírita. Algumas pessoas fizeram comentários contestando a teoria Kardecista e a reencarnação baseando-se, às vezes, em citações bíblicas. Faço questão de dizer que agradeço a todos os que leram e comentaram, mesmo discordando do que foi exposto por mim, afinal o debate de ideias é sempre bem-vindo e o próprio Mestre Jesus nunca se furtou a ele. Usando meu direito democrático à tréplica, começo dizendo que a Bíblia é um livro maravilhoso, mas foi escrito por seres humanos e, mais do que isto, traduzido por seres humanos ao longo de muitos séculos. Desta forma, entendo que tomar palavras e frases da Bíblia no seu sentido literal e dizer que “aqui está a palavra de Deus” é, no mínimo, precipitado. Tudo isto me levou a escolher como tema deste segundo artigo uma análise breve sobre a obra de Kardec que mais me agrada; “O Evangelho Segundo o Espiritismo”.

Abrindo um parêntese, gostaria de citar um artigo anterior que publiquei aqui mesmo neste espaço democrático, há uns quatro anos, intitulado “Quem pode falar em nome de Deus?” (ver https://papodeboteco.net/opiniao-princ/quem-pode-falar-em-nome-de-deus/ ).  O texto foi motivado justamente por uma conversa em que meu interlocutor, a certa altura, garantiu que “o homossexualismo era contra a Lei de Deus”. E, diante da minha reação de surpresa, citou um versículo onde está dito que “Deus nos criou homens e mulheres”. Ora, ninguém vai duvidar do fato de que fomos criados homens e mulheres (e vale dizer que a ciência de hoje já consegue identificar algumas pessoas com características menos definidas, assunto que veio à tona nas Olimpiadas). Resumindo, o versículo não diz que homens devem obrigatoriamente sentir atração por mulheres e vice-versa. Trata-se de uma interpretação. Que pode ser contestada sem que estejamos em pecado, afinal Deus nos deu o raciocínio para ser usado. Assim caminha a humanidade, conforme afirmou, com razão, o poeta Lulu Santos.

Acho o exemplo bastante ilustrativo para a tese geral, que é; devemos entender e respeitar o texto bíblico, sem dúvidas, mas com direito a uma interpretação racional, nunca como imposição dogmática. Sem esquecer jamais da lei maior, que é a do amor, do perdão e da evolução. Sob este aspecto vale ressaltar que segregar os homossexuais e colocá-los como “desobedientes à Lei de Deus”, como fez o meu amigo, fere o princípio maior da igualdade entre os seres humanos, deixado claro pelo Mestre Jesus na máxima “Ama teu próximo como a ti mesmo’.

Começando pelo começo, o próprio Kardec, na introdução do “Evangelho Segundo o Espiritismo”, reconhece a força do texto bíblico, ressaltando o princípio da inclusão, que deve reger toda a boa crença. Abre aspas;

 “Diante desse código divino, a própria incredulidade se curva. É terreno onde todos os cultos podem reunir-se, estandarte sob o qual podem todos colocar-se, quaisquer que sejam suas crenças, porquanto jamais ele constituiu matéria das disputas religiosas, que sempre e por toda a parte se originaram das questões dogmáticas”.

Ou seja, a ciência acende a luz no quarto escuro. Já comentei sobre a diferença entre seitas e religiões em meu artigo anterior. Seitas são dogmáticas e dividem as pessoas (os “nossos” e os “infiéis”, por exemplo), religiões são acolhedoras e esclarecedoras (ou, pelo menos, deviam ser). Não se mede a grandeza de uma crença pelo número de pessoas que ela exclui, mas sim pela sua capacidade de perdoar e incluir. Boa parte do sangue derramado ao longo da história começou com dogmas. Eu mesmo gosto de dizer que alguns dos problemas que nos afligem até hoje começaram quando acreditamos que as mulheres estigmatizadas como bruxas na Idade Média eram “do mal” e os piedosos sacerdotes que as queimavam vivas eram “do bem” (deixo claro que é apenas uma opinião pessoal).

Falando mais especificamente sobre a moral evangélica, Kardec afirma, em outro trecho da introdução do livro;

“Toda a gente admira a moral evangélica; todos lhe proclamam a sublimidade e a necessidade; muitos, porém, assim se pronunciam por fé, confiados no que ouviram dizer, ou firmados em certas máximas que se tornaram proverbiais. Poucos, no entanto, a conhecem a fundo e menos ainda são os que a compreendem e lhe sabem deduzir as consequências”.

Esta é a razão pela qual muita gente se refere ao Kardecismo como “a fé raciocinada”. Ou seja, é preciso estudar os livros e entender as preces. Todo aquele que se propõe a ser um portador desta boa nova (e qualquer um pode se candidatar a isto, o Kardecismo não tem sacerdotes), tem que se preparar para a missão. E entender, antes de qualquer coisa, que o aprendizado não acaba nunca. Digo isto até em minhas aulas e palestras sobre gerenciamento de projetos, a atividade profissional que ainda exerço hoje em dia; mesmo aos 72 anos, com décadas de estrada e cursos, sempre acabo descobrindo alguma coisa nova em cada aula ou em cada artigo que leio. E posso garantir que isto é muito bom.

Voltando ao texto bíblico e seu estudo, nunca devemos esquecer que a sabedoria nada vale sem a prática das virtudes e da moral cristã; conforme diz Paulo, em sua epístola os Coríntios, “Ainda que eu fale todas as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver o amor, serei como o bronze que soa ou como o címbalo que retine”. Repetir os ensinamentos bíblicos mecanicamente, sem entendê-los e, pior ainda, sem praticá-los, não é exatamente aquilo que a moral cristã prega.

Já ao final deste capítulo de introdução, Kardec complementa com muita propriedade;

“Esta obra é para uso de todos. Dela podem todos haurir os meios de confortar com a moral do Cristo o respectivo proceder”,

Talvez a palavra mais associada à visão Kardecista seja “conforto”. O conhecimento da ideia da reencarnação nos traz conforto, e é notável como muitas pessoas procuram grupos espíritas quando sofrem baques, como doenças ou perdas. E este não é apenas um consolo temporário (que já seria bom); quem se propõe a estudar a doutrina, e aprende que toda e qualquer prova que passamos nesta vida é uma oportunidade de crescimento moral e espiritual, vai entender como lidar não só com a perda, mas também com as “vitórias” materiais. Explicando melhor; assim como existem as provações da doença e da miséria, por exemplo, também a riqueza material pode ser um perigo para a evolução espiritual. A avareza, a obsessão pelo acúmulo de bens, a exploração dos outros, a arrogância e o orgulho são tentações que podem custar caro (sem trocadilho) em termos de avanço espiritual. Ninguém está exigindo de quem quer que seja uma vida franciscana; quem consegue obter a riqueza material por meio de trabalho honesto e talento próprio tem todo o direito de desfrutar de tudo o que o dinheiro possa comprar, só que precisa tomar cuidado para não deixar de lado a fé, o amor e a caridade. E é fácil entender que as tentações para um rico são muito maiores do que para a maioria das pessoas. Entendo que a visão da passagem pela Terra como apenas uma etapa de uma vida espiritual maior ajuda muito a explicar e conviver com as diferenças de sorte entre os habitantes do planeta. É a fé raciocinada que consola e orienta.

Para fechar com bom humor, vale contar uma historinha divertida envolvendo o velho e bom Chico Xavier. Dizem que, certa vez, uma senhora o procurou para dizer que o marido dela era um homem maravilhoso, e só tinha um defeito; não era espírita. Brincalhão, Chico respondeu; “Meus parabéns, a senhora encontrou o homem perfeito. Porque não ser espírita nunca foi defeito. Deixa ele ser o que quiser!”. Que fique mais uma vez esclarecido que não é nosso objetivo a “conversão” das almas e mentes para a doutrina espírita; afinal, nas palavras do próprio Kardec, estamos apenas propondo uma explicação lógica, uma hipótese diferente das convencionais, que pode, algum dia, ser comprovada ou contestada pela ciência. No fim das contas, sempre, o que vale é a lei do amor ao próximo. Só isto.

Até o próximo artigo.

Marcio Hervé

Márcio Hervé, 71 anos, engenheiro aposentado da Petrobras, gaúcho radicado no Rio desde 1976 mas gremista até hoje. Especializado em Gestão de Projetos, é palestrante, professor, tem um livro publicado (Surfando a Terceira Onda no Gerenciamento de Projetos) e escreve artigos sobre qualquer assunto desde os tempos do jornal mural do colégio; hoje, mais moderno, usa o LinkedIn, o Facebook, o Boteco ou qualquer lugar que aceite publicá-lo. Tem um casal de filhos e um casal de netos., mas não é dono de ninguém; só vale se for por amor.

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