Allan Kardec; o cientista que explicou o cristianismo – Artigo 1
Introdução
Resolvi escrever esta série de artigos em homenagem a meu pai, Ivan Vianna Hervé, que completaria 100 anos no próximo dia 19/08 (fez a passagem em 2020, pouco depois de completar 96). Médico conhecido em Porto Alegre, professor da UFRGS, meu pai foi um profundo estudioso das chamadas “curas espíritas”, tendo escrito cinco livros a respeito. Foi fundador, presidente e mentor da Casa de João Pedro, conhecido grupo espírita de Porto Alegre. Sua formação e longa prática em medicina, especialmente trabalhando com doenças psicossomáticas, fez com que ele tivesse muita propriedade para discernir entre os diagnósticos, tratamentos e curas normais da medicina “terrestre” e os casos em que ficava clara a intervenção dos chamados “espíritos”. Me ensinou, desde cedo, que o espiritismo não era exatamente uma “religião”, mas sim um conjunto de hipóteses científicas que explicava, melhor do que qualquer outro, a imortalidade do espírito, as diferenças entre os destinos das pessoas e a interação entre os desencarnados e as pessoas na Terra.
Saí de Porto Alegre em 1976, quando concluí a faculdade de engenharia e passei num concurso para a Petrobras, vindo para o Rio de Janeiro, onde estou radicado até hoje. Mesmo assim não me afastei da doutrina espírita, frequentei por muito tempo o Lar de Frei Luiz e há poucos anos, já aposentado, fiz quatro anos de cursos sobre a doutrina no Centro Espírita Maria Angélica (CEMA), grupo muito conhecido, sediado na Zona Oeste (Recreio e Barra). Esta consolidação dos conhecimentos foi fundamental para me encorajar a escrever sobre o tema. Agradeço aos instrutores e, em especial, à Sra. Vera Marsillac, diretora e fundadora da casa.
É sob este aspecto que este engenheiro vai desenvolver o trabalho a seguir. Gostaria também de deixar claro que não é minha intenção entrar em detalhes das histórias ou dos livros de Kardec; pretendo apenas, de forma simplificada, ressaltar alguns pontos da teoria e mostrar onde tudo isto começou. Quem pretender se aprofundar no assunto pode consultar toda uma vasta bibliografia existente a respeito.
Histórico
Hippolyte Léon Denizard Rivail era um professor na França de meados do século XIX. Mais tarde ele adotaria o pseudônimo de Allan Kardec, por isto vamos chamá-lo assim neste texto. Embora a influência da Igreja Católica ainda fosse muito grande no mundo, a Inquisição começava a fraquejar, e o Iluminismo prometia dias melhores para a ciência e a filosofia. Neste cenário, começaram a ficar famosas as “mesas girantes”, fenômeno que tornou conhecidas as irmãs Fox, nos Estados Unidos, que diziam se comunicar com os espíritos por meio de uma combinação alfabética pelos sons de ruídos na casa e da mobília se movendo.
A Santa Inquisição certamente gostaria muito de resolver o problema à sua moda, condenando estas “bruxas” à fogueira, mas o mundo de 1850 já era um pouco diferente. Como bom homem de ciência, Kardec considerou duas possibilidades; ou uma farsa, ou um fenômeno ainda não explicável pelo conhecimento da época.
Depois de muito observar, descartou a hipótese de fraude. E, eliminando qualquer preconceito, formulou uma hipótese que mudaria muitos corações e mentes dali por diante; e se esta história de comunicação e interferência física dos “mortos” fosse verdade, mesmo?
Vale lembrar que a reencarnação não foi uma hipótese formulada por Kardec; ela é aceita por diversas religiões tradicionais, como o budismo, por exemplo. Curioso, como convém a um homem de ciências, Kardec resolveu preparar um questionário com centenas de perguntas e encaminhar a diversos “médiuns” (denominação genérica dada a pessoas que teriam a capacidade de se comunicar com os “mortos”) em vários lugares do mundo – mais ou menos como se faz para escrever teses e artigos científicos até hoje. A primeira edição do “Livro dos Espíritos”, lançada em 1857, continha um total de 501 perguntas e respostas. Como todo o bom cientista, Kardec fez alguns desdobramentos em suas pesquisas e, em 1860, lançou a segunda edição do livro, ampliando o total de perguntas e respostas para 1019. Vale ressaltar que todo o trabalho teve a valiosa contribuição de sua esposa, Amélie Gabrielle Boudet.
Convencido de que sua teoria era válida, Kardec publicou mais quatro livros, que contém os fundamentos da chamada “Doutrina Espírita”; “O livro dos médiuns” (1861), “Evangelho segundo o espiritismo” (1863), “Céu e Inferno” (1865) e “Gênesis” (1868).
Vale dizer que Kardec sempre deixou claro que sua teoria era científica, e se algum dia a ciência provasse que ele estava errado, que as pessoas ficassem ao lado da ciência. Certamente, não se pode enquadrá-lo na categoria “dogmático”, muito menos como “negacionista”.
Hoje, mais de um século e meio depois, suas teorias não foram confirmadas, mas também não foram desmentidas. Há diversas universidades do mundo que se dedicam a estudar os fenômenos “espíritas”, médiuns famosos como Divaldo Franco, José Medrado e outros são constantemente convidados para palestrar em muitos países, enfim, o debate científico ainda está longe de uma conclusão. Sem bons argumentos para contestar, algumas religiões tradicionais preferem dizer, genericamente, que tudo isto é “coisa do demônio” o que, pelo menos na minha visão, não contribui em nada para esclarecer as questões levantadas. Chamar de “enviado do demônio” um homem como Chico Xavier, que psicografou centenas de livros que, invariavelmente, falam apenas em amor, fraternidade e glorificam o nome de Jesus, é, no mínimo, uma enorme injustiça.
Neste ponto específico acho importante fazer uma distinção entre os termos “religião” e “seita”. Sem aprofundar muito na questão, sabe-se que o termo “Religião” vem do latim “Religare”, e seria tudo o que religa o ser humano ao seu Criador. Partindo-se do princípio de que Deus é, acima de tudo, um ser de amor e perdão, a proposta da boa religião é tornar o ser humano mais paciente, amoroso, tolerante e caridoso para com o próximo, conforme resumiu o Mestre Jesus na frase “Ama teu próximo como a ti mesmo”. A partir do momento em que uma “religião” (assim mesmo, com letra minúscula), divide os seres humanos entre “os nossos” e “os do demônio”, e autoriza até o uso de violência física contra os “inimigos da fé”, estamos, na verdade, diante de uma “seita”. Lembrando que a palavra seita vem de “Sectare”, ou seja, divisão (mesma origem das palavras “setor” ou “secção”). Resumindo, religião é aquilo que une; seita é o que separa. O sentimento básico de uma religião é o amor, o da seita é o ódio. Religiões buscam a purificação espiritual, seitas flertam com o poder material. Religiões são abertas como a ciência; seitas são dogmáticas. E a visão Kardecista é, conforme dito antes, basicamente cientifica. Fecho o parêntese.
Afinal, como é que funciona esta história de “Reencarnação”, “Karma” e outros?
O principal fundamento da doutrina espírita, e que a diferencia da maioria das chamadas religiões tradicionais, é o conceito da continuidade da vida através das reencarnações. Sempre tentando ser didático e simples, a ideia é que somos todos espíritos que fomos criados por Deus algum dia, e somos imortais. Explicação de engenheiro para a diferença entre “eterno” e “imortal”; é como a diferença entre os conceitos geométricos de “reta” e “semirreta”. Uma reta é infinita, não tem começo nem fim, e representaria a figura de Deus. Já a vida dos espíritos corresponderia a uma semirreta; fomos criados por Deus em algum ponto, e vamos evoluir infinitamente até nos tornarmos perfeitos. A velocidade deste processo de evolução vai depender de nossas escolhas e atitudes (o chamado “livre arbítrio”; você pode tomar os caminhos que quiser, mas sempre vai colher o que plantou). Fechando a metáfora, uma reencarnação seria um “segmento de reta”, com começo, meio e fim. Cada reencarnação seria, portanto, uma oportunidade de evolução. As condições de contorno (a família onde vamos nascer, aptidões e limitações físicas, mentais, financeiras e outras) são acordadas com os nossos guias espirituais, de forma a que nossa passagem seja a mais produtiva possível. Vamos estender um pouco mais este conceito, nos próximos artigos.
Enfim, podemos dizer que, da mesma forma que a evolução, estudada e transformada em teoria científica por Charles Darwin, diz que os primatas se tornaram humanos em algum lugar do passado, nosso espírito evolui em paralelo. Já reencarnamos como homens e mulheres das cavernas, e fomos desenvolvendo qualidades espirituais que nos afastaram, gradativamente, dos seres puramente instintivos que um dia fomos. O que não impede que, mesmo civilizados, estejamos ainda sujeitos aos caprichos dos hormônios e paixões (mais adiante falaremos especificamente sobre isto).
Quando dizemos que as reencarnações funcionam como “oportunidades de crescimento”, a ideia geral é a do aprendizado. As pessoas vêm ao mundo com qualidades, defeitos e restrições, que podem ser fruto de ajustes do passado (o tal “karma”) ou simplesmente provas que, de alguma forma, foram “acertadas” com os espíritos superiores que supervisionam nossa evolução. Assim, quando vemos uma pessoa suplantar uma infância difícil e/ou limitações físicas e se tornar um líder, por exemplo, isto serve de inspiração para muitos. O que precisa ficar claro é que, na visão espírita, não existe o “castigo de Deus”, afinal um pai que é puro amor não castiga seus filhos. Mas também é preciso levar em conta que não se pode tratar da mesma forma o bom aluno e o mau aluno. Assim como no caso das escolas, os alunos que estudam e fazem as lições corretamente passam de ano com facilidade. Mas há os que, por qualquer razão, fraquejam, e precisam fazer prova final, recuperação ou até repetir o ano.
Na grande maioria das religiões tradicionais a vida é vista como uma só, ao fim da qual os espíritos seriam divididos entre “bons” e “maus”, cujo destino, final e irreversível, é o céu ou o inferno. A teoria reencarnacionista fornece uma “segunda chance”, que é muito mais compatível com a visão de um Deus de amor e perdão. Você errou, pecou, fez um monte de bobagens; tudo bem, vai repetir o ano até aprender. Isto pode se refletir em uma próxima vida em condições mais precárias (seja na saúde física, condição financeira ou tudo junto), mas não obrigatoriamente. Tudo depende de decisões e acertos com a espiritualidade superior.
Resumindo tudo, a ideia (bastante simplificada) é de que o ser humano teria três camadas; o corpo físico (que é abandonado ao fim da reencarnação), o espírito, que seria aquilo que vai evoluir até sempre, e, entre os dois, uma camada chamada “perispírito”, que seria o repositório de nossas energias (boas e más). Assim, se você fez o que se esperava, cumpriu sua missão, amou e perdoou, seu perispírito fica mais limpo e seu espírito pode atingir níveis de energia mais altos. Se, por outro lado, resolveu praticar o egoísmo, a maldade, a maledicência ou outras coisas, seu perispírito se “suja”, e sua energia baixa de nível. Isto pode significar uma nova reencarnação em uma condição pior (não como castigo, entenda-se, mas como aprendizado). Nunca esquecendo que você vive em comunidade, portanto os espíritos com quem você interagiu vão responder às suas ações, se tornando amigos ou inimigos. Como acontece na vida terrena, amigos vão querer te ajudar e inimigos vão querer o teu mal. A soma de todas estas energias vai determinar os caminhos que você vai percorrer nas próximas vidas, sempre sob a supervisão da espiritualidade superior. E nunca esquecendo que o destino final de todos nós é a perfeição. Parafraseando a inspirada canção “Saiba”, de Arnaldo Antunes, onde ele diz que todo mundo teve infância, seja Hitler ou Buda, podemos dizer que o destino de todos é a perfeição. Hitler vai demorar um pouco mais, acredito eu. Mas não me cabe julgar.
Até o próximo artigo.
Márcio,
Bom texto, embora, eu ainda tenha certa dificuldade em “acreditar” no Espiritísmo, que respeito, mas sou cartesiano demais. É difícl para eu ver o mundo com tanta violência, inocentes tendo suas vidas interrompidas com tantas guerras, o meio-ambiente sendo degradado e possíveis espíritos do bem não atuem, diretamente, para mudar o curso dos acontecimentos, mesmo considerando que tenhamos o livre-arbítirio, mas esse tem-se tornado perigoso . Jesus dizia: “Pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem”, e acho que ainda não sabemos, e se continuar como caminhamos, não teremos outros lugares para aprendermos em outras reencarnações.
Prezado William, obrigado por ler e comentar.
Por pior que as coisas estejam, temos que reconhecer que houve uma melhora, o mundo já foi muito mais bárbaro. Enfim, entendo que é uma explicação mais lógica do que qulquer outra. Dá um bom debate, sempre. Abraço virtual
Gostei da honestidade. É uma teoria. Mas creio que devenos fazer o bem nesta vida e Deus é misericordioso para passarmos bem. Portanto não aguardar outra chance fazer como se dependesse apenas dessa vida. Vai que a teoria não se confirme….
Obrigado por ler e comentar. Tentei deixar claro que cada reencarnação é uma oportunidade, e não devemos desperdiçar oportunidades. Acelerar o nosso progresso, sempre. Agora, para quem comete erros, existem duas hipóteses; ou o fogo eterno do inferno um uma segunda chance. Qual você acha mais lógica? Abraço virtual.
Prefiro o que Jesus fala sobre o inferno em várias passagens dos Evangelhos. Ele frequentemente usava imagens fortes e vívidas para descrever a realidade do inferno, alertando sobre as consequências espirituais de viver em pecado e rejeitar a graça de Deus.
As referências de Jesus ao inferno geralmente estão associadas ao julgamento final e às consequências eternas que ocorrem após a morte. Ele descreve o inferno como um destino final para aqueles que rejeitam a Deus, vivem em pecado e não se arrependem.Por exemplo, em Mateus 25:31-46, Jesus fala sobre o julgamento final, onde as pessoas serão separadas como ovelhas e cabritos, com os justos entrando na vida eterna e os ímpios sendo lançados no “fogo eterno”. Essa descrição sugere claramente que o inferno é uma realidade que se manifesta após a morte física, no contexto do julgamento de Deus.Outro exemplo é Mateus 10:28, onde Jesus menciona que Deus tem o poder de “fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo”. Isso indica que o inferno é um destino final para a pessoa inteira (alma e corpo), o que também implica uma realidade que se dá após a morte e no contexto do julgamento divino.Portanto, segundo a doutrina cristã, o inferno, conforme descrito por Jesus, é um estado ou lugar de punição eterna que ocorre após a morte, especialmente no contexto do julgamento final.
Entendo o seu ponto de vista, mas sempre é bom lembrar que a Bíblia é um livro escrito há séculos, e traduzido em diversos idiomas, portanto entender literalmente o que está escrito lá pode ser perigoso. Mas tá tudo certo, se você entende assim, tudo bem. Obrigado por ler e comentar.
Parabéns pela iniciativa. Falar sobre o Espiritismo com essa visão não de religião, mas de filosofia com valores morais, já me “ganhou”. Venho buscando trabalhar essa visão e recentemente terminei um curso de graduação em Ciências da Religião onde, várias vezes, acabei por tentar abrir um pouco a visão deturpada que muitos têm do Espiritismo. As religiões, realmente, podem e devem buscar a transformação moral de cada um de nós e, neste sentido, creio que o Espiritismo entra com mais profundidade. Críticas sempre haverão. Sigamos em frente, buscando a paz ensinada pelo Cristo. Grande e fraterno abraço.
Muito obrigado. Espero produzir textos à altura da expectativa. Abraço
Somos todos crianças evoluindo
Perfeito, amigo. Obrigado por ler e comentar