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Uber e 99: a modernidade em choque com a realidade

O combustível está com o preço nas alturas, fora a inflação acumulada nos últimos anos. Mesmo assim, a Uber e a 99 não estão reajustando as tarifas para fazer face à carestia: a Uber não reajusta o preço para os motoristas há uns 6 anos. Já a 99, tem uma situação semelhante, uma ver que concorre diretamente com a Uber.

Não existe organização dos motoristas para enfrentar isso, pelas próprias características da classe. As empresas precisam, de algum modo, fazer alguma coisa para sair desse impasse.

Alguns motoristas chegam a trabalhar 16 e até 18 horas por dia para garantir uma renda mínima. É uma jornada desumana!

Dessa forma, pelo encolhimento dos ganhos, agravado pelos efeitos da pandemia, os motoristas estão saindo dos aplicativos em grande quantidade, sendo assim o serviço tem deteriorado em níveis impressionantes, como tenho presenciado diretamente aqui no Rio.

Por exemplo, a Associação dos Motoristas de Aplicativo do Ceará e outros trabalhadores relatam que o lucro semanal dos motoristas caiu entre 60% e 80% entre janeiro e fevereiro de 2021 ante novembro e dezembro de 2020.

Muitos clientes ou enfrentam um serviço com escassez crescente de motoristas, ou voltam a pegar táxis, com suas mazelas já conhecidas e preços bem mais elevados.

E o problema se agrava, porque a Uber e a 99 não deixam de ser um refúgio da crise em meio a tanto desemprego, só que com a alta reiterada do preço dos combustíveis isso está se tornando cada dia menos viável, e essas empresas ficam numa sinuca de bico entre perder clientes (com o preço elevado) ou perder clientes (pela deterioração do serviço).

A empresa espanhola Cabify saiu do Brasil em 14 de junho dessa ano, sobrando basicamente a chinesa 99 e a norte-americana Uber. Os outros concorrentes, como Lady Driver, com motoristas e passageiros mulheres, são minúsculos e mal podem ser considerados.

Relação dos motoristas com as empresas

Por trás da imagem de modernidade, conversando com motoristas de aplicativos, percebo claramente que a relação entre as empresas e os motoristas é, na sua grande maioria, ruim, conflituosa e injusta.

Antigamente a Uber cobrava 25% dos motorista, que ainda tem que arcar com todo o resto das despesas. Hoje, eles tornaram essa cobrança ainda menos transparente, variando entre 1 e 40%, mas alegadamente dentro da mesma média. Isso se mistura com promoções de preço para passageiro por um lado, e tarifas dinâmicas por outro, em tese por demanda da aumentada naquele momento e local.

Isso tudo parece mais caixa-preta do que jogar em uma máquina caça-níquel, tanto para o passageiro quanto para o motorista.

Quanto à 99, a percentagem que o motorista pagava para o aplicativo era um pouco menor, mas agora está inserido dentro da mesma faixa misteriosa entre 1 e 40% da Uber.

Minha vivência são evidências anedóticas. Não há uma pesquisa formal, mas muitas fontes, como essa, que relatam uma situação similar.

Talvez, quem sabe, exista espaço no mercado para uma empresa diferente, que cobre menos do motorista, e ainda consiga praticar um preço barato, mas mais viável para os passageiros e cultive um relacionamento mais transparente e menos predatório com sua “equipe”.

No entanto, há de se perguntar se, no final, o negócio ainda seria viável, o que pode ser um problema, como veremos abaixo.

Algumas questões com os aplicativos em si

Como usuário, noto que há algumas falhas surpreendentes, tratando se de aplicativos tão populares. No entanto, o mesmo ocorre em vários outros apps populares.

Primeiro, o aplicativo da Uber é superior em termos de qualidade e mapeamento ao 99.

Destaco aqui alguns dos principais pontos que observei nos apps:

  • O Uber e o 99, por vezes, conduzem para o destino por caminhos perigosos e até ilógicos. Já aconteceu várias vezes comigo e os motoristas relatam que isso é bastante comum;
  • Várias vezes, o aplicativo (principalmente o 99) erra a localização do passageiro, especialmente referente ao lado da rua. Assim, muitas vezes é recomendável entrar com o ponto de partida exato;
  • Quando o usuário pede uma corrida, deveria haver um processo especial nesses aplicativos para o motorista que se afasta do local onde está o passageiro. Muitas vezes, ele está terminando uma corrida no aplicativo concorrente e o passageiro paga o pato. Já ocorreu comigo diversas vezes, e aconteceu até, quando eu cancelei, do Uber tentar cobrar de mim uma multa. Reclamei e fui ressarcido;
  • O processo de encerrar a corrida se o motorista esqueceu de encerrar a corrida não é tão direto, o que é estranho porque o app, em geral, sabe que o passageiro e o motorista estão em posições diferentes;
  • O cancelamento de corrida se tornou algo tão corriqueiro, que a Uber e a 99 deveriam trabalhar melhor essa situação, para evitar a prestação de um serviço ruim para os passageiros. Hoje isso inclui no ranking do motorista, mas, pelo visto, não de forma suficiente;
  • O Uber, como o 99 já fazia, passaram a mostrar o destino da viagem para os motoristas DEPOIS que a corrida é aceita. Isso também gera muitos cancelamentos, apesar dessa métrica ser gerida na avaliação de desempenho do motorista. No meu entender, o passageiro que optasse por isso, poderia permitir que uma certa corrida (ou todas) mostrasse o destino ANTES do passageiro aceitar. Isso eliminaria grande parte dos cancelamentos, que causa muitos dissabores. Por outro lado, se o destino fosse muito perto, poderia ser difícil arrumar motorista, mas, nesse caso, ele poderia ocultar o destino, o que poderia aumentar o percentual de cancelamento desse tipo de corrida;
  • A interface tem suas imperfeições. Muita gente não sabe que o Uber permite selecionar o destino da corrida em um mapa, porque isso está no final das opções do histórico;
  • Uma boa sugestão, que hoje existe apenas no Google Maps nos EUA, seria permitir achar uma origem ou destino apenas pela intersecção de 2 ruas.

Uber tem um modelo de negócio “complicado”

Tudo isso e a Uber, fundada em 2010, ainda é uma empresa em busca do lucro no final do arco-íris, apesar de ter ultrapassado o valor de 100 bilhões de dólares (100 vezes mais do que um unicórnio).

Vários artigos foram escritos a respeito, mas acho que um artigo já antigo da Forbes, do final de 2017, é o que dá o melhor enfoque ao problema.

Abaixo um traduzo e adapto um trecho do artigo, que é longo, mas muito bom.

Por que a Uber não pode fazer dinheiro? – Len Sheman

Embora o modelo de negócios da Uber tenha criado um valor enorme para os consumidores, impulsionando o rápido crescimento da empresa, o suas tarifas bem baixas para os clientes termina não gerando receita suficiente para oferecer uma remuneração atraente aos motoristas e lucros consideráveis ​​aos acionistas.

Não há nada no modelo de negócios da Uber que prometa reduzir os custos dos fatores de seu serviço de compartilhamento de viagens, nem há economias de escala inerentes que reduziriam os custos operacionais unitários com o crescimento contínuo.

Isso leva a um conflito inerente entre os objetivos de negócios da Uber e seus motoristas. As receitas da Uber são diretamente proporcionais ao número de viagens que ele gera e, portanto, a empresa tem fortes incentivos para expandir continuamente seus negócios. É claro que os motoristas desejam maximizar sua receita por hora trabalhada.

No entanto, à medida que o Uber continua a recrutar motoristas, o potencial de receita por motorista inevitavelmente diminui. À medida que os bairros que mais geram receita ficam cada vez mais saturados, os novos motoristas são forçados a buscar territórios de serviços menos atraentes para encontrar clientes.

Essa dinâmica do modelo de negócios ressalta a perspectiva sombria de ganhos para os motoristas da Uber.  Os salários baixos e decrescentes da Uber têm sido uma das principais causas da Uber baixa satisfação do motorista e rotatividade crescente, tanto em termos absolutos quanto em relação ao seu principal concorrente, a Lyft (obs: a Lyft não opera no Brasil).

Existem duas soluções possíveis para melhorar a remuneração do motorista, mas ambas as alternativas sem dúvida prejudicariam a contabilidade já frágil da Uber. 

A Uber poderia aumentar as tarifas a partir da divisão de sua receita atual ou aumentar a participação do motorista na receita bruta.

Dadas as características estruturais da indústria de caronas – diferenciação de produto percebida limitada, transparência de tarifas, baixos custos de troca e lealdade do consumidor e intensa competição – a Uber tem relutado em aumentar unilateralmente as tarifas. 

Na verdade, a Uber e a Lyft estão envolvidos em uma corrida para o fundo do poço em cortes de tarifas e promoções de preços, uma reminiscência da indústria de táxis pré-regulatória de outrora. 

No entanto, a demanda por transporte urbano não é elástica, então os cortes de preços no compartilhamento de viagens prejudicaram a remuneração do motorista.

Quanto ao aumento da participação dos motoristas na receita, a Uber e seus motoristas estão imersos em um jogo de soma zero que deixa pouco espaço para generosidade de ambos os lados. 

Desde o seu início, a Uber tem favorecido consistentemente a satisfação do consumidor em relação ao bem-estar do motorista – por exemplo, evidenciado por sua relutância de longa data em permitir gorjetas no aplicativo, que até agora são mal executadas – o que teve um grande impacto na satisfação e retenção do motorista.

Estudos recentes indicaram que a rotatividade de motoristas da Uber nos EUA aumentou drasticamente em 2017, para taxas de até 96%. Desnecessário dizer que é difícil (e caro) manter taxas de crescimento de dois dígitos, quando apenas 4% dos funcionários de missão crítica permanecem no trabalho por mais de um ano. 

Como resultado, a Uber foi forçada a fazer esforços de recrutamento perenemente agressivos, oferecendo bônus de inscrição que podem ultrapassar US $ 1.000 (além da remuneração normal) para novos motoristas.

Há poucos motivos para esperar alívio a curto prazo nos custos crescentes de recrutamento de motoristas da Uber nos próximos anos, especialmente porque a Uber enfrenta uma concorrência vigorosa de outras empresas que também estão recrutando motoristas de meio período.

Vários erros de gestão prejudicaram ainda mais o desempenho da Uber, alimentando a crescente desconfiança de clientes, motoristas e agências regulatórias. 

No entanto, o desafio existencial da Uber continua sendo seu modelo de negócios quebrado, que está testando cada vez mais a paciência e a confiança de seus investidores.

Obs: Uber quando se refere à empresa pede artigo definido feminino, mas quando se refere ao aplicativo, pede artigo definido masculino.

Paulo Buchsbaum

Fui geofísico da Petrobras, depois fiz mestrado em Tecnologia na PUC-RJ, fui professor universitário da PUC e UFF, hoje sou consultor de negócios e já escrevi 3 livros: "Frases Geniais", "Do Bestial ao Genial" e um livro de administração: "Negócios S/A". Tenho o lance de exatas, mas me interesso e leio sobre quase tudo e tenho paixão por escrever, atirando em muitas direções.

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