Lugares por onde andei

Um roteiro no fim do mundo

Passar dias batendo perna pela Patagônia chilena é um programa fora da normalidade, mas são esses os fortes candidatos a povoarem de boas lembranças as suas memórias futuras. Afinal de contas, nada mais corriqueiro que virar o ano em algum ponto do litoral brasileiro. Então, quando recebi a notícia de minha mulher que havia duas vagas disponíveis para um pacote de final de ano, topei, mesmo com uma pitada inicial de receio.

A viagem é longa. São quatro horas até Santiago, conexão, mais três horas e meia até a cidade de Punta Arenas, maior do fim do mundo, com seus 130 mil habitantes, e dali mais cinco horas de ônibus até o Parque Nacional Torres del Paine, onde caminhantes de todo planeta buscam pelos visuais espetaculares da região.

Há alguns hotéis e pousadas espalhados pelo parque, nada muito luxuoso, mas com boa oferta de acomodações confortáveis. Ficamos em um complexo de ‘dommes’, espécies de iglús com estrutura de metal e tecido, sustentável, chamado ‘Ecocamp’. Staff atencioso, boa comida e equipe de apoio para os diversos ‘hikings’ e passeios. Recomendo.

Diferentemente de outros locais, onde resorts procuram entreter os hóspedes, oferecendo-os as mais variadas opções e atividades, na Patagônia um hotel ou pousada é apenas uma base para passar a noite e de onde os turistas partem diariamente para explorar o parque. O ambiente estimula o convívio com a natureza, e o visual da região, de onde quer que você esteja, é de tirar o fôlego.

Os visitantes vão para caminhar e experimentar os cenários, dos mais exuberantes do planeta. Da mesma maneira que existem comunidades de surfistas, alpinistas, ciclistas, canoistas, esquiadores, que praticam esportes onde a experiência com a natureza é essencial, os ‘hikers’ também se caracterizam pela mesma aspiração: desfrutar ao máximo o que o caminho proporciona e atingir um objetivo, seja ele o cume de uma colina distante ou simplesmente um local com vista privilegiada.

O parque das Torres del Plaine possui inúmeras formações rochosas espetaculares, bem como glaciares que se estendem por dezenas de quilômetros, oferecendo diferentes alternativas de trilhas aos andarilhos, que são brindados com um terreno altamente acidentado e incontáveis subidas e descidas, para joelho nenhum botar defeito.

Os pontos de maior interesse podem ser atingidos em um roteiro que se assemelha à letra ‘W’ ou à letra ‘O’ no mapa. O primeiro pode ser realizado em quatro dias, o segundo em sete, dependendo obviamente da quantidade de apoio logístico.

Fizemos a opção pelo ‘W’, que equivalia a uns 60Km em três dias completos de caminhada. Em nosso caso, tínhamos a presença de guias, mas as trilhas são bem sinalizadas, sendo possível percorrê-las por conta própria. Há refúgios em vários pontos do parque, e sua qualidade é diretamente proporcional à acessibilidade do local. Naqueles onde somente se chega a pé, existe algo bem rudimentar. Se for possível atingí-lo a cavalo, um tanto melhor. De barco, através dos lagos formados pelos glaciares, aí você poderá encontrar até um bom vinho chileno e Red Bull. Todos eles são locais onde é possível acampar, descansar e usar o banheiro.

As caminhadas percorrem colinas e vales, margeiam rios e riachos, defrontam-se com cachoeiras, atravessam campos, florestas e formações rochosas, contornam lagos. Em um momento, você se vê minúsculo no meio de um vale entre montanhas elevadas, em outro você está no topo do mundo, com um horizonte de dezenas de quilômetros à sua frente. Não é apenas o destino final de cada trilha o grande atrativo da Patagônia, mas a qualidade da jornada, com uma diversidade natural inigualável.

Está implícito que o sujeito deve ter um mínimo de preparo físico para abraçar esse programa, do contrário, não passa do primeiro dia. Além disso, um tênis adequado é indispensável, se não quiser sofrer com bolhas e feridas nos pés logo na largada. Tem gente que não usa os conhecidos ‘sticks’ para auxiliar na caminhada, mas eles são de grande utilidade, particularmente nas subidas. Nessa época do ano, a temperatura oscila entre 6 e 9C, bem suportável. Há locais com ventos frios que podem reduzir bastante a sensação térmica, como também há situações onde o esforço físico, combinado com o sol, farão você ficar só de camiseta. Infelizmente, o sujeito alternará entre uma e três camadas de roupa ao longo de qualquer trajeto. Um incômodo ‘tira e põe’ casacos. Passei mais calor que frio.

Fome não será um problema. Antes de sair para sua peregrinação, pelas manhãs, você pode preparar seus lanches do dia, com as diversas opções oferecidas pelos hotéis ou refúgios, que aliados aos snacks, frutas e barras de cereais, irão compor suas refeições. Em vários momentos da caminhada, você terá  tempo para recompor suas energias e comer algo. Água você encontrará pelo caminho, gelada, direto das fontes. Aliás, essa é uma das melhores sensações possíveis, quando você, cansado (a), suado(a) , com sede, encontra uma fonte de água fresca, enche sua garrafa e vira no gargalo. É um instante de felicidade suprema.

Ficar frente a frente a um glaciar, no caso o Grey, terceiro maior do planeta, com 28Km de extensão, é uma experiência e tanto. O visual daqueles imensos e antiquíssimos blocos de gelo cor azulada viva é extraordinario. No refúgio próximo a ele, mais sofisticado, já que é acessível também de barco, há uma agência que oferece a possibilidade de passear de caiaque, muito próximo ao glaciar. Expedições a pé também são possíveis, dependendo das condições climáticas.

Em uma das noites, dormimos em um refúgio, no que se parecia mais com uma expedição ‘raiz’: quartos com três beliches e cada um em seu saco de dormir. Particularmente, não tive uma boa noite de sono, não pelo compartilhamento do quarto com estranhos, mas sim pelo desconforto do saco de dormir para alguém acostumado a fazê-lo com as pernas livres. Me senti uma espécie de defunto colocado naqueles pacotes do IML. O alento é que uma noite passa rápido. O banheiro é comum, estilo vestiário. Simplório, mas com água quente. Atende, portanto, as necessidades básicas.

Falando nelas, eu tinha a preocupação particular de não fazê-las ao ar livre. Ok, se a situação se tornasse insustentável, não faltariam moitas que proporcionam a privacidade adequada para evento tão reflexivo e individual, mas como caminhante de primeira viagem, eu queria evitá-las. Às custas de uma doutrinação intestinal, eu consegui. Mantiverem nesse caso como um sujeito plenamente urbano! Aliás, esse assunto é protagonista de uma história trágica (e um pouco cômica) do parque: há poucos anos, um jovem israelense, após aliviar-se atrás de um arbusto e guardar os papéis higiênicos usados em um saco plástico, como manda a boa etiqueta do ‘hiker’,  resolveu queimá-los. O vento espalhou o fogo por todos os lados, causando um incêndio de proporções gigantescas, queimando uma imensa área de vegetação, que até hoje não se recuperou. Você visualiza árvores secas em todos os caminhos por onde passa. Hoje, é proibido acender fogo no parque e o governo de Israel contribui anualmente para ações de reflorestamento, como reparação ao dano causado pelo seu cidadão, que foi literalmente autor de uma grande cagada.

Vamos falar então do terceiro e último dia desse roteiro, descrito pela operadora como difícil (os dois primeiros foram classificados como de dificuldade mediana). O trajeto, de 22-24 Km (dependendo de onde você começa), inclui uma subida total de 1.300 metros, com um brinde ao final: escalar um paredão de pedregulhos de 300 metros, com inclinação próxima de pelo menos 70 graus, antes de chegar ao local onde estão as três afamadas Torres del Paine, separadas de seus observadores por uma lagoa de cor verde esmeralda.

O início do percurso  já começa exigindo sua resistência, morro acima uns 500 metros. Cumprida essa etapa, você caminha por uma trilha em um desfiladeiro, com um vale e um rio centenas de metros abaixo, uma paisagem espetacular. Após muitas subidas e descidas, finalmente atinge-se o nível do rio, chega-se ao refúgio no meio do caminho e a partir dali você entra em uma floresta. De lá até a montanha de pedregulhos, mais uns 5km. Dispensável dizer que os últimos 300 metros nas rochas levam quase uma hora para serem percorridos. É o único acesso a essa vista das torres, não há nesse caso transporte alternativo. Vencida a derradeira etapa, você experimenta uma sensação de júbilo. Pessoas se comprimentam com o ‘cinco’, gritam ‘uh hu’, celebram essa pequena conquista. Agora é descansar, aproveitar a vista, bater muitas fotos, curtir o momento.

Hora de voltar. Você até havia se esquecido que faltam longos 12km!! Se na ida sua resistência é colocada à prova, no retorno é a vez de você testar suas articulações, exigidas para puxar o freio de mão e evitar a queda. Para complementar o desafio, nesse último trecho, você estará bem mais cansado (a) , pois já terá feito um tremendo esforço para subir. Eu sofri muito mais na volta. Quando cheguei ao refúgio, tomei o melhor Gatorade da minha vida por R$ 30. Os últimos 5Km, após dois tombos, foram percorridos no ritmo de tartaruga nervosa: ‘despacito’, devagar e sempre. Os 500 metros morro acima da ida, agora eram morro abaixo. Meus joelhos, coitados, se falassem estariam gritando, incrédulos pela insanidade de seu dono. Tinham dificuldade de carregar aquela carcaça. Confesso que nos últimos 2km, se tropeçasse e caísse, não levantaria mais. Ficaria ali, esparramado nas pradarias do fim do mundo, incorporado à paisagem. Mas não caí. Só que antes de chegar ao hotel, tive que subir uma última colina, 100 metros acima, não sem antes esbravejar um ‘pqp’.

Consegui. A sensação de vitória é recompensadora: oito horas de caminhada, paisagens incríveis, dores razoáveis, exaustão plena…e finalmente o mais relaxante banho quente da história. Para ficar perfeito, faltou uma massagem profissional nos pés, que depois dos joelhos, foram os que mais sofreram. No dia seguinte, acordei relativamente estropiado, sinal de que havia chegado ao meu limite. Houvesse mais uma caminhada no dia, seria declinada. Pelos joelhos.

Valeu a pena?
Muito. Tenho certeza de que retornarei a esse pedaço do fim do mundo, certamente antes de que os meus joelhos não me permitam mais. Eu ainda mando neles, que obedecem, mesmo que a contragosto. Até breve, Patagônia!!

Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

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4 Comentários

  1. Que você tenha e mantenha a disposição por viagens à lugares como esse, saindo do roteiro rotineiro do turismo, porque há muito mais possibilidades de encontros e reencontros….. FELIZ ANO NOVO com muitas viagens pela frente!!!!

  2. Amei ler sua aventura. Quero conhecer a Patogonia, vou usar suas boas dicas. Achei engraçado a parte da meditação orgânica…lembrei de quando fui para o Peru, caminhei por 4 dias pelas montanhas a caminho de Machu Picchu. O banheiro era organico também, mas garantiram as melhores fotos…risos. O valor que damos a um banho quente e uma cama macia é monstro. Tomei banho com lencinhos umedecidos , esses que usamos para neném. É uma experiência maravilhosa, um presente para alma. Feliz por vocês. Feliz 2018!

  3. Me senti caminhando com voces com a sua descriçao em detalhes. Estou satisfeita. Kkkk. Acho que nao encaro esse desafio. Obrigada por compartilhar essa experiencia fantástica.

  4. Cara, achei muito top, claro que deve ser necessário um mínimo de preparo físico e mental porém acredito ser muito recompensador. Show!!

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