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Prisão em flagrante sem motivo fere a democracia

Leis não deveriam depender de pessoas

Obviamente não concordo nem com o teor nem com a forma que o advogado e deputado bolsonarista Daniel Silveira se expressou, nem simpatizo remotamente com a figura dele ou com o bolsonarismo.

No entanto, leis precisam de impessoalidade para funcionarem a contento e esse não é o caso da Lei de Segurança Nacional do tempo da ditadura, que será comentada abaixo.

Quem é Daniel Silveira?

A história começa em 2007, quando o então cobrador de ônibus Daniel Lúcio da Silveira  pediu um atestado a um “homem que estava sempre de branco no corredor da unidade”. Por outras duas vezes, Silveira voltaria ao hospital para pedir atestados à mesma pessoa. Depois a polícia descobriria que ele era um faxineiro do hospital.

Mais tarde, Daniel Silveira se elegeu em 2018 pelo PSL-RJ na ala bolsonarista raiz. Ele foi policial militar, professor de muay thai e assumidamente matou 12 pessoas em serviço. Segundo ele, “dentro da legalidade, sempre em confronto”.

Daniel ganhou as manchetes com o episódio da quebra da placa de rua em homenagem à Marielle Franco.

A ironia é que de um lado ele emprega no seu gabinete uma pessoa que foi condenada na justiça por receptação de carro roubado e é amigo pessoal dele; embora por 9 vezes ele já declarou que “bandido bom é bandido morto”.

Incitação é crime?

É preciso ser imparcial e reconhecer que não há nada na fala do Daniel que configure incitação à crime, a ponto dele ser preso em flagrante. O máximo que ele disse foi: “Quantas vezes eu imaginei você, na rua, levando uma surra. O que você vai falar? Que eu tô fomentando a violência? Não. Eu só imaginei. Ainda que eu premeditasse, ainda sim não seria crime. Você sabe que não seria crime.”.

Ele, como advogado, sabe o limite da lei. Essa fala é muito vaga para ser considerada incitação à crime, a meu ver.

O código penal diz vagamente no seu artigo 286: “Incitar, publicamente, a prática de crime”

A meu ver, também é muito forçação invocar os artigos 17, 18, 22 ou 23 da Lei de Segurança Nacional. Basta ler a íntegra da fala do Daniel e comparar com os artigos abaixo, para não reconhecer que se trata de um exagero:

Artigo 17:  Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito.

Artigo 18:  Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados.

Artigo 22: Fazer, em público, propaganda: I – de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social…

Artigo 23: Incitar: à subversão da ordem política ou social.

Nesse caso, há centenas de posts, inclusive de influencers, que se enquadrariam fácil nessa lei da ditadura.

Opiniões são livres, mesmo que não gostemos delas

Mesmo declarações antidemocráticas, ainda que não concordemos; não constituem crime porque não existe crime sem que o mesmo esteja expresso por algum dispositivo legal.

Injúria e calúnia cabem, mas é outro rito

Dentro do ordenamento jurídico brasileiro, caberia até um processo de calúnia (falsa imputação a um crime, como no trecho que diz “Toda hora, vende um habeas corpus vende sentenças”) e injúria (” Fachin, é que todo mundo já está cansado dessa sua cara de filho da puta que tu tem”), como muitos que tem aí, mas jamais prisão em flagrante, ainda mais sendo ele deputado, que exerce mais essa tal liberdade de expressão, como vemos nas sessões legislativas.

O motivo da prisão alegado, segundo o ministro Alexandre Moraes, forem artigos da Lei de Segurança Nacional, como o artigo 26, que versa o seguinte:

Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação. Pena: reclusão, de 1 a 4 anos.

Por ironia, essa lei foi promulgada em 1983, em plena vigência da ditadura militar de 1964.

Trata-se de um abuso, porque essa lei fere totalmente o princípio da impessoalidade, uma vez que o Código Penal já prevê os mesmos crimes para os meros mortais nos artigos 138 e 140.

A prisão em flagrante é aplicável nesse caso?

Em tese sim, pelo que versa o artigo 302 do CPP: “Considera-se em flagrante delito quem: I – está cometendo a infração penal”

No entanto, é óbvio que isso se constitui um crime de menor potencial ofensivo, que jamais deveria levar a uma prisão, porque dificilmente esse crime termina de fato em prisão.

Teoricamente, seria possível uma pessoa chamar a outra de FDP na rua, e, caso isso fosse assistido por um policial, ele poderia dar voz de prisão na hora para o autor do insulto. Em teoria, até a própria vítima poderia dar voz de prisão, mas isso dificilmente “colaria” na prática.

Claramente isso não seria considerado razoável por ninguém com um mínimo de bom-senso.

O artigo 33 da Lei de Segurança Nacional prevê a hipótese de prisão por 15 dias durante o inquérito, renovável por mais 15 dias; mas não foi oficialmente instaurado nenhum inquérito, após o vídeo publicado no dia 16 de fevereiro. Não deu tempo: a prisão foi decretada no mesmo dia.

Além disso, devido à imunidade parlamentar, parlamentar só pode ser preso se for pego em flagrante de crime inafiançável (O artigo 5 do Constituição cita racismo, terrorismo, tráfico de drogas, tortura, crimes hediondos e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático), a partir de decisões dos ministros Celso de Mello e Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e Felix Fischer, Superior Tribunal de Justiça.

Prisão é pelo calibre das vítimas e mais nada

Essa prisão acontece APENAS porque o alvo são ministros do STF, que se julgam estar acima da lei dos homens, usando uma lei oriunda da ditadura, sendo que nenhuma lei deveria fazer distinção do alvo!

STF é passível de críticas?

Não tem como negar que existem problemas com as posturas de alguns dos ministros do STF, mas não todos, em vários julgamentos e decisões do Supremo.

Em um caso recente, vale a pena lembrar a decisão apertada (6 a 5) contra a reeleição de Maia e Alcolumbre no Congresso.

Essa reeleição seria claramente uma afronta ao parágrafo quarto do artigo 57 da Constituição.:

Art. 57. § 4º Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente.

Ou seja, ficou claro nessa votação que 5 ministros, que deveriam ser os guardiões da Constituição de 1988, não a respeitaram!

E se a “vítima” fosse anônima?

Se a vítima fosse o seu Manuel da padaria, eu poderia escrever coisas similares ao que o Daniel Silveira escreveu online, que nada remotamente aconteceria comigo.

Se o seu Manuel entrasse com um processo e eu fosse condenado em primeira instância; eu recorreria e o crime prescreveria, porque a prescrição conta por crime e a pena por cada crime é baixa.

Pau que bate em Chico bate em Francisco

Hoje tirou-se a liberdade de quem eu não gosto, mas amanhã a vítima pode ser eu ou alguém que eu goste!

Assim, é preciso a mesma régua para todos.

No tempo da ditadura de 1964, por vezes, se prendia sem qualquer motivo. Um desses presos, em 4 de abril de 1964, foi o livreiro João Roth, já falecido. Ele foi solto logo, mas perdeu seu cargo público. Nem os tais livros subversivos eles acharam na casa dele.

Não importa que a vítima “mereça” ficar presa

Não se prende uma pessoa porque ela é ruim ou desprezível, uma pessoa deveria ser presa porque a sociedade concluiu que ela cometeu um crime.

A prisão lavrada pelo STF é um ato político

Não sou ingênuo.

Sei que para o STF não importa se Daniel deveria legalmente estar preso ou não, essa apenas é uma peça de uma demonstração explícita que o STF está fazendo para marcar uma posição.

Paulo Buchsbaum

Fui geofísico da Petrobras, depois fiz mestrado em Tecnologia na PUC-RJ, fui professor universitário da PUC e UFF, hoje sou consultor de negócios e já escrevi 3 livros: "Frases Geniais", "Do Bestial ao Genial" e um livro de administração: "Negócios S/A". Tenho o lance de exatas, mas me interesso e leio sobre quase tudo e tenho paixão por escrever, atirando em muitas direções.

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