Atualidades

A estranha geração que não aceita lidar com números

Dou aula de gerenciamento de riscos em projetos há muitos anos, e acho o assunto fascinante. E uma das primeiras coisas que explico aos alunos é que a expressão “Risco zero” nunca deve ser utilizada, porque representa uma contradição; se há risco, é diferente de zero. Pode ser um milésimo por cento, mas não é zero. Risco zero é para fatos consumados. Usando um triste exemplo recente, costumo dizer que a diferença entre o Brasil e os países civilizados é que nestes, quando um bandido é condenado pela justiça, ele vai em cana e não tem mais risco. Na terra Brasilis, sempre se arranja uma instância a mais, portanto o risco do bandido ficar solto nunca desaparece… Enfim, foi só uma piadinha. Segue o baile.

Desde sempre, viver é colocar-se em risco. E a evolução da civilização pode ser medida pela diminuição dos riscos a que o ser humano está submetido. Nossos ancestrais saiam da caverna para caçar o almoço com boas possibilidades de acabar servindo de almoço para os predadores, ou inimigos canibais. Depois de séculos e séculos diminuímos enormemente os nossos riscos de morte; a pesquisa médica encontrou a cura para muitas doenças, a melhor qualidade de informação fez com que as pessoas adotassem hábitos mais saudáveis, e, da metade do século XX para cá, somou-se a tudo isto um período inédito de mais de 70 anos sem conflitos globais de grande escala. O resultado matemático desta conjunção de fatos é que, entre 1950 e 2020, a expectativa de vida média das pessoas no mundo subiu de 46 para 71 anos (valores aproximados), e, como não foi adotada nenhuma medida global de planejamento familiar, a população do planeta explodiu de 2,5 para quase 8 bilhões de habitantes no mesmo período. Com viés de alta.

Tempos difíceis forjam pessoas fortes; tempos fáceis…

O fato é que nunca o ser humano dispôs de tantas facilidades para viver como hoje em dia, embora, como consequência lógica da expansão populacional descontrolada, exista um contingente enorme de pessoas que não consegue sequer satisfazer suas necessidades mais básicas. E, por uma série de fatores cuja discussão extrapola o escopo deste artigo, hoje temos uma geração que contesta tudo. E, muitas vezes, age de forma totalmente irracional quando o assunto é “riscos”.

O caso das vacinas da COVID talvez seja emblemático. Contando um “causo” pessoal, em 2005 fui à Bolívia para um compromisso profissional. E para entrar na Bolívia era necessário fazer vacina contra a febre amarela. Fui lá, me vacinei e fim de papo. Alguns anos mais tarde, entre 2016 e 2018, ocorreram surtos de febre amarela no interior dos estados de Minas e Rio de Janeiro. Buscando exemplos práticos para ilustrar minhas aulas, descobri que a vacina tinha contraindicações, podendo causar até a morte por doença viscerotrópica aguda (ver detalhes em https://pebmed.com.br/febre-amarela-tudo-o-que-voce-precisa-saber-sobre-a-doenca/ ). Só que a probabilidade estatística do óbito é de um caso a cada 250 mil vacinados. Ora, ninguém precisa ser um gênio em matemática para entender que a probabilidade do cara pegar febre amarela e morrer é muito maior do que isto. A conclusão do “case” em sala de aula era esta; melhor vacinar-se. Simples assim.

Claro que jamais imaginaria que muito pouco tempo depois a vacinação virasse um tema polêmico e político, quase questão de fé, e não de matemática e riscos. Sabe nada, inocente!

O problema é que a geração fraca que os tempos fáceis criaram não aceita trabalhar com probabilidades. E desconfia de tudo. A questão criada em torno das vacinas do COVID seria cômica, se não fosse trágica. Afinal, analisando o problema com frieza matemática, a coisa não é difícil. Primeiro vamos tirar de lado as alternativas grotescas, tipo “introdução de chip que vai fazer o cara virar comunista, gay, ou sei lá o que”, por serem absurdas. Restam dois debates sérios; a vacina pode fazer mal (ou não), e a vacina é eficiente (ou não).

No primeiro caso, podemos usar o mesmo raciocínio aplicado à da febre amarela. O número de óbitos por COVID no Brasil é de mais de 620 mil. Como a população brasileira é de cerca de 213 milhões de habitantes, temos aproximadamente 1 morto a cada 343 habitantes. Ora, se tomarmos como padrão a vacina da febre amarela (1 fatalidade em 250 mil aplicações), temos que a chance de morrer da vacina é mais de setecentas vezes menor do que morrer da doença. Num cassino, você colocaria suas fichas em qual das duas?

Tá bom, você é daqueles que desconfiam da mídia, da internet e de qualquer estatística? Ótimo. Vamos colocar a coisa de outro jeito; quantos conhecidos seus morreram de COVID? Certamente você conhece algum. Eu mesmo perdi pelo menos uma dezena de amigos. Porque, dependendo da sua idade e da vida que você levou, seu ciclo de conhecidos pode chegar à casa das centenas. E como houve um óbito para cada 343 pessoas, a chance de você conhecer alguém que morreu de COVID é muito grande. Agora, quantos você conhece que morreram da vacina? Eu não conheço sequer um.  E olha que o Brasil já vacinou mais de 100 milhões de pessoas. E se houve um ou outro caso fatal, a estatística continua favorável à vacina. Números não mentem.

Assim sendo, o argumento do “não vou me vacinar para proteger a minha saúde” não resiste a uma mínima análise estatística. Mal não faz.

O segundo ponto é quanto à eficiência da vacina. Vejo gente eufórica dizendo que “pessoas vacinadas pegaram a ômicron”, portanto a vacina “não serviu prá nada”. Mais uma falácia. De acordo com o site Worldometers (www.worldometers.info), desde o início da pandemia, foram infectadas 373,5 milhões de pessoas no mundo. Houve 5,7 milhões de óbitos. Isto significa uma letalidade de 1,52%, aproximadamente. É interessante notar que esta letalidade já esteve próxima de 3%, há alguns meses. O fato é que o número de casos estava sob controle até entrar em cena a ômicron, no final do ano passado. Só que a característica desta cepa foi um contágio rapidíssimo e letalidade muito baixa. E, claramente, qualquer que seja a base de dados utilizada, é provado que pessoas com vacina em dia tiveram muito menos problemas do que as não vacinadas. Para ilustrar com números, segundo o mesmo site, na semana de 22 a 29/01 o número de infectados no mundo foi de 22,3 milhões, com pouco mais de 55 mil óbitos, resultando num percentual de letalidade médio de 0,25% (e que é menor ainda entre os vacinados). Repetindo o exercício anterior, eu conheço muita gente que pegou a ômicron, inclusive eu mesmo, mas não sei de ninguém que tenha morrido, ou mesmo sido hospitalizado. Vale dizer que quase todo mundo que conheço se vacinou direitinho.

Resumindo; a vacina ajudou a reduzir a letalidade de 3 para menos de 0,25%. Ou seja, uma redução de mais de 12 vezes no número de mortos. Se isto significa “não servir prá nada”, eu não sei mais o que serve prá alguma coisa…

Enfim, a triste realidade é que temos hoje um grupo de pessoas que se aferra mais às suas narrativas e medos pessoais do que aos números. E a matemática não perdoa.

Conforme diria Asterix, que o céu não caia sobre as nossas cabeças…

Marcio Hervé

Márcio Hervé, 71 anos, engenheiro aposentado da Petrobras, gaúcho radicado no Rio desde 1976 mas gremista até hoje. Especializado em Gestão de Projetos, é palestrante, professor, tem um livro publicado (Surfando a Terceira Onda no Gerenciamento de Projetos) e escreve artigos sobre qualquer assunto desde os tempos do jornal mural do colégio; hoje, mais moderno, usa o LinkedIn, o Facebook, o Boteco ou qualquer lugar que aceite publicá-lo. Tem um casal de filhos e um casal de netos., mas não é dono de ninguém; só vale se for por amor.

Artigos relacionados

4 Comentários

  1. Maravilhoso o seu texto, mestre 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼

    Um pequeno dado que trago da França, país com estatísticas sempre em dia, traz o seguinte hoje:
    1) população de Vacinados até com booster: 9 internações/100 mil habitantes
    2) população de Vacinados com a 1a e segunda dose: 35 internações/100 mil habitantes
    3) população de subvacinados/não Vacinados: 210 internações/100 mil habitantes.

    É, não precisa ser um ás da matemática para entender, não?! E nem estou falando de óbitos. Obrigada pelo texto:

    Ass: fã número 1 do PDB

  2. Marcio
    Na tua equação de avaliação do RISCO de tomar/não tomar a vacina da COVID falta um elemento:
    – mensuração das reações adversas das vacinas da COVID (quantitativo/qualitativo).
    Ao contrario da vacina da febre amarela, entre outras vacinas aplicadas há muitas décadas, os efeitos colaterais e adversos das vacinas da COVID só serão totalmente conhecidos dentro de alguns anos. Sem falar no tabu que este assunto se tornou (um comportamento nada cientifico diga-se de passagem).
    Tal realidade é reconhecida pelos próprios laboratórios e por serem MESTRES EM GESTÃO DE RISCOS, não quiseram segurar a bucha e se ISENTARAM TOTALMENTE do que venha a acontecer com os seus “consumidores”. Oxalá o futuro compre a segurança das vacinas, mas até lá um gestor de riscos faria esta ressalva antes de fechar sua equação.
    Abraço, Cassio

    1. Cássio, que bom te ver por aqui!
      Um dos maiores orgulhos que tenho é saber que venho de uma família onde o debate de ideias sempre foi livre.
      Não vou transformar isto aqui numa inútil “Trova de galpão”, mas tenho a dizer em minha defesa que todas as vacinas e medicamentos da história tiveram uma “primeira vez”. E, obviamente, as circunstâncias em que as vacinas do COVID foram lançadas não davam muita margem prá hesitação.
      De qualquer forma, como diria Paulinho da Viola, tá legal, eu aceito o argumento. Válido, lúcido e inserido no contexto, como não poderia deixar de ser, vindo de um descendente direto dos Hoffmann de Santa Maria.
      Falando de coisas sérias, quando é que tu vais aparecer aqui no Rio para um Boteco ao vivo? Parece que a COVID finalmente deu uma brochada, e tá na hora de conhecer os teus sobrinhos-netos!
      Abração

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Verifique também
Fechar
Botão Voltar ao topo
%d blogueiros gostam disto:
Send this to a friend