Atualidades

Contexto e desafios do novo consignado

Uma explicação despolitizada sobre o produto reformulado lançado na semana passada

O governo lançou essa semana o novo consignado para trabalhadores do setor privado  e como tudo no Brasil descamba para a polarização, uma boa quantidade de informação errada já circula por aí. Como o assunto é razoavelmente técnico, muita gente está incorrendo em erros de avaliação somente por conta de sua preferência política.

O objetivo desse artigo é tentar explicar de forma didática e desapaixonada do que se trata esse produto ‘remodelado”.

Remodelado é o termo correto, pois ele já existe desde o começo do século, quando foi criada a modalidade “consignado”, que garante ao credor o recebimento das parcelas do empréstimo com a dedução das mesmas diretamente da fonte pagadora do salário.

Acontece que das modalidades do consignado, o oferecido ao setor público (funcionários públicos estaduais, federais e INSS) tem um portfólio aproximadamente 10 vezes superior ao oferecido aos funcionários da iniciativa privada (os chamados CLTs). Algo na ordem de grandeza de R$ 400  x R$ 40 bilhões.. Essa diferença sempre existiu. Para começar, o consignado público é operacionalmente mais simples, uma vez que a instituição faz o convênio com um órgão público e já agrega centenas de milhares ou milhões de potenciais clientes para oferecer crédito. No caso do consignando privado, até então sempre foi necessário fechar um convênio com a empresa para acessar os seus funcionários, ou seja, um trabalho comercial e operacional enorme, dada a quantidade de CNPJs existentes no país. Por essa razão, os grandes bancos geralmente ofereciam o produto somente dentro das  empresas em que os mesmos tinham a folha de pagamento.

Outra explicação para a diferença nos volumes está no risco de crédito. No caso do consignado público, ele é praticamente inexistente, dada a estabilidade do funcionalismo (pode ocorrer em situações de exceção como morte, etc), já no privado ele existe e pode ser significativo, pois no momento em que o cliente deixa a empresa, perde-se a consignação e o empréstimo passa a ser completamente sem garantia. Há um atenuante, como a possibilidade de reter até 30% da rescisão para abatimento da dívida, mas isso nem de longe elimina o risco.

Outra característica que adiciona incerteza ao produto para CLTs é a possibilidade de insolvência da empresa, que nesse caso funcionava como ‘intermediadora dos pagamentos”. Não é incomum experimentar problemas de repasse em empresas com dificuldades financeiras, mesmo quando elas deduzem a parcela do salário do funcionário. Trata-se de crime de apropriação indébita, mas pode acontecer. Isso obriga os bancos a avaliarem as empresas antes de efetivamente iniciarem um convênio de crédito consignado privado, tornando o processo mais restrito.

Por conta desses fatores, o produto nunca cresceu como o consignado público e os grandes bancos nunca o trataram como prioridade, sempre preferindo investir energia no empréstimo pessoal sem garantia, com spreads maiores, fazendo o débito na conta salário do cliente sem  todo o trabalho operacional descrito acima. Também por conta do risco da ‘Pessoa Jurídica’ ser uma realidade, na prática ele era oferecido normalmente dentro de empresas maiores, com mais de 200-300 funcionários, pela lógica natural de maior ‘probabilidade de quebra’ e ‘turnover dos funcionários nas pequenas e médias. Com isso, cerca metade da população ‘CLT’ não tinha acesso ao consignado.

É importante dizer que do ponto de vista do consumidor, o consignado é a melhor modalidade de empréstimo sem garantia possível, uma vez que ele proporciona acesso a condições mais atraentes do que em qualquer produto sem consignação (taxa, prazo e valor).

Também vale o registro de que pelo fato de haver risco de crédito envolvido, as taxas oferecidas no “privado’ nunca serão  niveladas àquelas aplicadas aos funcionários do setor público.

Durante o governo Bolsonaro, foi lançado o produto de antecipação do FGTS, uma espécie liberação de parte do saldo que o trabalhador tinha bloqueado no FGTS, com a garantia do próprio saldo. Uma jabuticaba brasileira, já que os bancos ‘emprestavam’ o dinheiro que era do próprio cliente, mas que ele não poderia usar, e cobravam juros por isso. Aqui também não havia risco de crédito e os termos e condições se assemelhavam ao do consignando público. Foi um sucesso absoluto, ‘bombou’.

Não deve haver surpresa em relação à demanda por crédito no Brasil, a populacao de baixa renda geralmente tem acesso a produtos financeiros muito caros e não raro vão parar na mão de agiotas. Quando surge uma oportunidade mais barata no horizonte, a aceitação é grande, isso é absolutamente normal e esperado.

Também é importante ressaltar que o sujeito que precisa de crédito encontrará sempre alguém que o empreste, o problema são as condições em que isso acontece, particularmente se ele não tiver um bom histórico de pagamento. Não custa lembrar que aproximadamente 40% da população economicamente ativa brasileira está negativada e muitas vezes esse  novo crédito é utilizado para trocar uma dívida por outra ou mesmo para ganhar fôlego, na eterna luta do cidadão comum contra a limitação do seu orçamento.

Qual a ideia por trás desse novo consignado privado? O governo Lula quer alavancar a modalidade, provendo acesso a todos os trabalhadores CLT. Para isso, precisava remover um obstáculo, que é a presença da empresa como intermediária, uma dificuldade grande na escalabilidade do produto. Como solução, os empréstimos serão feitos pela plataforma do ‘e-social’ e as empresas deixam de participar do processo de aquisição.

A antecipação do saque FGTS será descontinuada (no meu entendimento somente por que foi concebida no governo anterior) e agora até 10% do seu saldo poderá ser usado como garantia em caso de inadimplência. Outro atenuante para o risco seria a possibilidade de voltar a descontar o empréstimo assim que o cliente encontrar outro emprego, situação que hoje é operacionalmente inviável.

O produto seria oferecido em uma plataforma onde o trabalhador optaria entre várias ofertas de diferentes instituições, além dos ambientes próprios que cada banco já possui.

De fato, existe uma oportunidade de expandir essa modalidade, a comparação entre os volumes de consignando público e privado deixa isso muito claro. A ideia e as intenções são boas, milhões de clientes que hoje não tem acesso a uma possibilidade de crédito mais barato passarão a ter. Do ponto de vista do consumidor, não há como negar que trata-se de uma boa notícia.

O efeito colateral indesejado pode se dar sob o ponto de vista do contribuinte. Crédito é um daqueles assuntos em que a conclusão sobre qualidade de uma decisão se dá muito tempo depois do evento, as consequências não são imediatas. Em várias ocasiões celebram-se volumes hoje que gerarão perdas estratosféricas lá na frente. E o governo já deu o recado aos bancos públicos, ‘acelerem no produto com as menores taxas do mercado’.

Tanto Banco do Brasil quanto Caixa não tem muita experiência com o consignado privado atual, irrelevante em seus portfólios. Não é difícil imaginar que ambas instituições  possam ser usadas como “catalisadores” da economia, com o intuito de gerar volumes gigantescos de crédito a taxas que não cubram as perdas por inadimplência. Nesse caso, como dito, a consequência não seria percebida logo, muito provavelmente somente na próxima gestão. Aparentemente o preço médio com a qual a Caixa começou a operar  está em 2.59% ao mês, e no meu entendimento, dificilmente vai “parar de pé”, por que o novo público tomador será naturalmente mais arriscado, trabalha em empresas menores, com maior turnover e provavelmente um maior índice de negativação. A perda deve ser mais alta do que essa taxa média pode suportar.

As informações equivocadas que mais tem se propagado dizem respeito ao FGTS, muita gente confundido com o produto anterior. Esse empréstimo não é do saldo que o cliente tem no FGTS, ele poderá usá-lo como garantia. Isso é bom, garantias sempre barateiam o crédito.

Outra lenda é de que a população estaria exposta a mais endividamento… Ora bolas, se você pode dar acesso a credito mais barato a um segmento que não tem esse privilégio, por que não fazê-lo? Quem precisa de crédito vai encontrar, e quando não consegue acessar fontes convenientes, bate na porta de agiotas.

O que eu vejo como risco nesse caso é o uso político dos bancos públicos para inflar a volumetria, sem compromisso com o resultado final. Um banco privado, via de regra, não adotará políticas que deteriorem a sua ‘última linha’, pois tem que prestar contas aos seus acionistas. Isso restringe a atuação de aventureiros. Nos bancos públicos, em especial a Caixa, que não está listada em bolsa, não existe essa obrigação, ou seja, pode haver uma prática  equivocada de preços muito baixos incapazes de absorver a inadimpllêncua futura.. Nesse caso, o contribuinte pagaria a conta lá na frente.

Conceitualmente, é bastante interessante o uso de mecanismos similares à colateralização para diminuir o risco de crédito e aumentar a oferta de empréstimos em condições mais atrativas aos consumidores, é possível que os desdobramentos desse movimento gerem outras modalidades similares mais adiante, como cartão de credito consignando, parcelamento de pix com garantia de consignado, entre outros. De um modo geral, boa parte da população brasileira apresenta risco de crédito elevado e paga caro pelo dinheiro, a expansão da modalidade consignada
é uma alternativa interessante para ampliar a oferta de dentro de níveis de inadimplência toleráveis.

Há ainda o risco de execução, a operacionalização do produto, da maneira como está proposto, não é simples e ainda haverá uma longa jornada até que os processos estejam maduros e estáveis.

Resumo da ópera: de um lado temos a possibilidade de expansão de crédito em melhores condições para uma população que hoje não tem acesso a esse tipo de oferta, do outro a possibilidade da utilização dos bancos públicos subsidiando taxas incompatíveis com o risco do cliente, o que pode custar caro ao “contribuinte” no futuro..

Sabemos que diferença entre remédio e veneno é a dose, eis um dilema que continuamente acompanhará esse assunto. Em termos de geração de volume, acredito que o produto passará por uma expansão substancial. Não me surpreenderia se em um horizonte de 24-36 meses, a carteira (hoje de R$ 40 Bilhões) chegar perto dos R$ 200 Bilhões, metade do consignando público atual. Se isso de fato se materializar, o impacto potencial no crescimento do PIB poderia ser de  0.4-0.6% em um ano (tomando-se em conta R$ 80 bilhões / R$ 12 trilhões). Considerando a desaceleração iminente da economia para os próximos meses, o crescimento desse produto passa a ser extremamente prioritário para o governo, por isso eu particularmente dou como certa a utilização da Caixa e do Banco do Brasil como  promotores “intensivos”, alheios a questões como rentabilidade. O tempo nos trará respostas.

O alcance dessa modalidade é restrito à modalidade dos funcionários CLTs. O micro e pequeno empresário e profissionais sem carteira assinada seguem expostos aos produtos existentes sem consignação, e notadamente mais caros.

Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

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