Opinião

Vivemos outra pandemia… a do culto à ignorância

Quando eu era criança pequena lá em Barbacena, digo, Registro, interior de São Paulo, às margens do Rio Ribeira de Iguape, Vale do Ribeira, eu estudei da 5ª a 8ª série em escola pública: E.E.P.S.G. Dr. Fábio Barreto.

Naquela época, anos 80, a qualidade de ensino da escola pública não tinha tanta diferença da escola particular, ao menos não no interior, e tínhamos professores muito bons. A família da minha mãe era toda de professoras e uma delas, minha querida finada tia Margarete, Ete para os íntimos, me dava aula de Desenho e Educação Artística. Ela por vezes usava de certas ironias quando dava aula, principalmente para chamar atenção de certos alunos que viviam ou no mundo da lua ou faziam tudo, menos prestar atenção na aula.

Lembro-me um dia quando ela soltou uma frase que virou clássica nas aulas, a qual nunca mais esqueci e por vezes a uso. “Para os que ignoram, vou explicar xyz…”. Um colega virou para o outro e perguntou, ‘ué, ela tá chamando a gente de ignorante?” 😊

Acho a palavra ignorância interessante, pois pode significar duas coisas bem diferentes. Ou algo que desconhecemos, não sabemos, não fomos ensinados, não temos prática. Ou ainda, atitude grosseira, incivilidade, grosseria.

Não deve ter uma só pessoa no mundo que não saiba que vivemos uma pandemia da doença COVID-19, causada pelo coronavírus chamado de SARS-CoV-2. Infelizmente também vivemos outra pandemia, a qual chamo de Pandemia do culto à ignorância.

Você sabia que 7 em cada 10 brasileiros apenas leem os títulos das matérias? Você sabia que o brasileiro lê, em média, apenas dois livros por ano e 30% nunca compraram um livro?

A grande maioria se informa e forma suas opiniões pelos títulos de matéria, por WhatsApp, sem nem ao menos verificar as fontes e veracidade, e replicam o que é que entenderam, muitas vezes ignorando por completo o tema, os detalhes, especulando, elucubrando, e afirmando coisas que não tem qualquer respaldo seja científico, técnico, etc.

Bom, já tivemos um presidente que exaltava a sua falta de estudos. Que achava bonito lembrar que a mãe morreu analfabeta, inventava dados como não sei quantas milhões de crianças que moravam na rua (incompatível com a situação demográfica brasileira).

Já tivemos uma “presidenta”, que também fazia afirmações desde estocagem de vento, frases desconexas e errava cálculos básicos de matemática (tá bem, nos rendia boas risadas ao menos. Memes então… 😂😂 ).

E hoje temos um presidente que adora fazer afirmações sem qualquer base, influenciando milhares, milhões de pessoas a replicar informações desde não haver estudos que indiquem eficácia do uso de máscara; de que mesmo aprovadas para uso emergencial pela ANVISA, as vacinas ainda não tem comprovada sua eficácia; de acreditar que o uso de máscara afeta a oxigenação do sangue e tantas outras afirmações sem a devida comprovação científica, como a eficácia da hidroxicloroquina para tratar a COVID-19. Enquanto isso, a autoridade máxima no assunto no Brasil, a ANVISA, fora outras associações, deixou claro na sua apresentação que a situação é de “ausência de alternativas terapêuticas”.

Em tempo, em nenhum momento estou aqui fazendo julgamento da condução de cada caso pelos médicos, tratamentos e usos off-label de qualquer medicação, mas sim dessa propaganda descabida pela autoridade máxima do país de uma medicação sem comprovação científica aceita pelas autoridades sanitárias e associações médicas para tal indicação, levando à automedicação, por exemplo.

O que dizer dessa semana da fala do nosso presidente mandando a mídia enfiar as latas de leite condensado no c$%? Me lembrou a fala de uma certa ex-primeira dama que mandou os manifestantes enfiarem as panelas na mesma localização.

Sim, meus amigos, o presidente é um líder… e deveria portar-se como tal. Dando o exemplo, mas infelizmente nosso histórico de presidentes não tem ajudado. Decoro? Que nada, não só o presidente, como também muitos brasileiros decoram memes, frases prontas e afirmações sem base e saem repetindo como papagaio.

A impressão que fica navegando pelas redes sociais é que a ignorância está em alta. É bonito, é desejável ser ignorante. Para que estudar, para que informar-se, para que verificar um dado, para que ficar calado diante de temas que desconhecemos? Por que não procurar ler, informar-se? Ah não, é necessário posicionar-se de maneira imediata. É necessário passar a imagem que estamos sempre informados e sabemos de tudo, ao invés de ficarmos em silêncio e procurar nos informar com quem entende do tema. Teorias da conspiração então, estão super em alta.

Há um viés cognitivo conhecido hoje como Efeito Dunning-Kruger que é o verdadeiro paradoxo da ignorância: pessoas com menos habilidade e conhecimento pensam que sabem mais do que as outras. Finalmente, quem sabe menos, acredita que sabe mais do que as outras. Vale as reflexões abaixo de Sófocles:

Ou ainda a de Bertrand Russel:

Sobre o tema economia, por exemplo, como temos vários membros do Papo de Boteco que são economistas, eu fico ali, quietinha, lendo os debates, as publicações e procurando aprender um pouquinho 😉.

Já a outra ignorância, aquela também conhecida por grosseria, também vive em alta. Caso não tenhamos a mesma opinião, que por vezes trata-se de informação esclarecida, muitas vezes temos sido atacados de maneira chula, grosseira, ignorante, com dois pés no peito. Por vezes sinto que não é que a pessoa quer estar bem informada, ou trocar ideias, mas, sim, apenas ser a dona da verdade, como se vivêssemos numa competição de quem ganha uma discussão, nem que a tal “verdade” defendida não tenha base alguma.

Falta de empatia virou regra, não exceção. A entropia está alta, nervos à flor da pele. Ironias e piadas não são entendidas e são levadas ao pé da letra. Interpretação de texto, então, praticamente inexistente. Nunca se escreveu tão errado e se interpretou tão mal como atualmente…

Já somos uma pátria que pouco educa, que pouco cultiva o estudo, que forma milhares de estudantes que são analfabetos funcionais.

Fico imaginando como minha tia ficaria perplexa com o tanto de gente “ignorante e ignorante” que adora verbalizar a sua ignorância como verdade. Fico imaginando se ela soltasse suas frases clássicas hoje em dia numa sala de aula, cheias de ironias e duplo-sentido… melhor não imaginar a ‘resposta’ que poderia receber 😰.

Fica aqui uma reflexão… cultue o estudo, a educação. Combata a ignorância com conhecimento e educação. Não seja mais um que repete memes, recortes, manchetes e que faz do telefone sem fio seu meio de comunicação via redes sociais. Tenha opinião própria.

Fuja dos monólogos, do estilo “palestrinha”… ouça. Informe-se e aí tudo bem discordar, debater, trocar ideias, mas que seja de maneira fundamentada, educada, esclarecida e livre de vícios que essas bolhas das redes sociais criam. Até porque toda unanimidade é burra e que chato seria esse mundo se todos pensássemos iguais.

Informe-se na fonte, pois quem conta um conto, colega, aumenta um ponto… 😉

crianças fofocando

Anna Paula Más

Anna Paula Más, farmacêutica e bioquímica (USP-SP), fez carreira trabalhando quase 20 anos na área de pesquisa clínica e desenvolvimentos de novos medicamentos, focada na área ética e regulatória. Caixeira viajante (morou nos EUA, França e hoje fica entre Alemanha e Brasil). É extrovertida, social, costuma ‘unir’ turmas e pessoas de turmas diferentes. Dizem as más línguas que conversa até com o poste, adora palpitar, não tem receio de se posicionar e, por vezes, criar polêmicas. A pedidos, veio fazer parte do time Papo de Boteco com o propósito de trazer um olhar feminino, mas não por isso menos crítico, sobre assuntos diversos.

Artigos relacionados

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Verifique também
Fechar
Botão Voltar ao topo
Send this to a friend