Opinião

O que importa é a estatística, o resto é narrativa

Duas histórias opostas me chamaram a atenção para a questão da vacinação infantil. A primeira refere-se à morte por parada cardíaca de uma criança, supostamente causada pela vacina contra Covid-19.

A segunda, em matéria do Estadão do dia 04/02, apresenta a história de uma criança supostamente vítima da Covid-19.

Notem que coloquei a palavra “supostamente” nas duas causas de morte, o que já nos serve como porta de entrada para este artigo.

A palavra “supostamente” admite que um determinado fato seja possível, mas não se compromete com ele. Admite a possibilidade, mas relativamente remota, colocando uma sombra de suspeição sobre o fato. E cada um, desde o seu particular ponto de vista, ficará ou não revoltado com o uso da palavra. No exemplo acima, aqueles que acham que a vacina é um perigo, verão como um absurdo o uso da palavra “supostamente” para o óbvio fato de que a criança de Lençóis Paulistas morreu por causa da vacina, ao passo que avaliarão como adequado o uso da palavra ao qualificar a morte por Covid. Afinal, muitos morrem COM Covid e não DE Covid. E vice-versa, os que são favoráveis à vacina verão o “supostamente” bem colocado ao se referir à morte da criança de Lençóis Paulistas, pois o laudo médico garantiu que esta não foi a causa, ao passo que não aceitarão a palavra ao se referir à morte por Covid, pois esta também foi atestada pelo médico.

Não quero aqui, propositalmente, entrar na discussão científica deste ou daquele caso particular. Meu ponto é outro: essa discussão é irrelevante, ainda que ocupe o lugar principal no debate público. O que verdadeiramente importa é a estatística.

Os economistas geralmente são taxados de insensíveis e pouco empáticos, por teoricamente focarem-se somente nos grandes agregados e modelos gerais, e desprezarem as pessoas, suas histórias e sofrimentos particulares. E é verdade, ainda que isso não tenha nada a ver com empatia, mas somente com metodologia de trabalho.

É relativamente comum, em reportagens sobre grandes tragédias ou crimes, as vítimas reclamarem que não são cuidadas pelo governo, que viraram apenas uma estatística. Verdade. Cada ser humano importa e não deveria ser tratado como uma estatística fria. Mas a dura realidade é que se CADA ser humano é especial, segue-se que TODOS os seres humanos são especiais. E como não há recursos suficientes para tratar CADA ser humano de maneira especial, o que resta aos governos é tratar o CONJUNTO dos seres humanos da melhor maneira possível. E, para isso, não há outra maneira, a não ser tratar cada ser humano em particular como uma estatística. Quando isso não acontece, ocorre o que nós chamamos de PRIVILÉGIO. Como não há recursos para tratar a todos como especiais, alguns são escolhidos da multidão por critérios nem sempre transparentes.

Mas acredito que a aplicação de estatísticas para a elaboração de políticas públicas seja algo bem aceito, de bom senso. O que eu gostaria de demonstrar neste artigo é que a estatística é também a melhor forma de tomar decisões em nossa vida particular. Deveríamos admitir que não somos assim tão especiais quando se trata de fenômenos aleatórios. Nesse sentido, somos sim uma estatística.

Quando os economistas projetam cenários econômicos, costumam atribuir-lhes probabilidades. O cenário X tem 40% de chance de se concretizar, o Y 35% e o Z, 25%. Ocorre que, passado o tempo, apenas um desses cenários se concretizará, quando então a sua probabilidade passa a ser de 100%, enquanto as probabilidades dos outros cenários tornam-se zero. Aquele cenário que se concretizou “virou estatística”, que vai alimentar a confecção de novos cenários.

É neste ponto que a nossa mente nos trai. Uma história concreta faz com que aquela estatística (a probabilidade que se tornou 100%) ganhe uma chance em nossa mente muito maior do que realmente tem. Não é à toa que qualquer reportagem sempre traz uma história concreta, tornando a tese do repórter muito mais crível. Afinal, estatísticas são frias, histórias são quentes. Ocorre que as histórias magnificam a probabilidade de aquele fenômeno ocorrer conosco.

É bem estabelecido pela literatura acadêmica que a nossa mente lida com probabilidades de acordo com o viés de cada um. Em geral, eventos positivos, como ganhar a Mega Sena, assumem uma probabilidade muito maior na nossa mente do que realmente têm, ao passo que damos a eventos negativos, como ter um ataque do coração ou ser atropelado, probabilidade muito menor do que realmente têm. O viés político também influencia: anti-vacinas darão muito maior peso a estatísticas de mortes por vacinas do que mortes por Covid, ao passo que “coronalovers” farão o inverso.

O que deveríamos fazer para minimizar o erro de avaliação é simplesmente esquecer as histórias concretas e focar nas estatísticas. Se temos um amigo que tomou três doses da vacina e, mesmo assim, morreu de Covid, deveríamos transmitir os nossos mais profundos sentimentos à família, mas esquecer essa história particular para tirar conclusões. A história pode ser tocante, mas qual a estatística por trás? Essa é a questão relevante.

O que a estatística nos diz, por exemplo, sobre a vacinação de crianças, o exemplo usado no início deste artigo? No geral, de acordo com este estudo, publicado na Nature, a chance de uma pessoa qualquer desenvolver miocardite relacionada com a vacina da Pfizer é de 0,3-5,0 por 100.000 pessoas vacinadas (como referência, há 1-10 casos/100.000 de miocardite globalmente por ano). E isso não é morte, somente uma fração desse número vem a óbito. Por outro lado, a incidência de miocardite associada à Covid é cerca de 100 vezes maior, 1.000-1.400 para cada 100 mil pessoas. Ou seja, segundo este estudo, é 100 vezes mais provável desenvolver miocardite por Covid do que pela vacina.

No entanto, para crianças as conclusões não são tão preto no branco, mesmo porque, ainda estamos muito no início da vacinação nesta faixa etária globalmente. Este estudo, por exemplo, conclui que meninos entre 12-15 anos de idade e sem comorbidades, têm mais chance de desenvolver miocardite com a vacina da Pfizer do que com a Covid. Já com comorbidades, a chance é maior com a Covid. Talvez por isso, alguns países (ex.: Reino Unido) tenham indicado a vacinação infantil com vacinas de tecnologia mRNA apenas para crianças com comorbidades. No entanto, outros países (ex.: EUA, Canadá) recomendam a mesma vacina para todas as crianças. Ou seja, não há ainda um consenso científico aqui, talvez por falta de estudos conclusivos. Não encontrei estudo que focasse especificamente em crianças (confesso que não gastei muito tempo procurando).

O fato é que o cenário de óbito ou de sequela grave é muito raro em crianças sem comorbidades, tanto naquelas vacinadas (por causa da vacina) quanto nas não vacinadas (por causa da Covid). Por isso, qualquer evento, em si muito raro, é tratado como “o” caso que demonstra a tese.

Note que não estou negando que existam crianças que morram por causa da vacina ou de Covid. O que estou afirmando é que estes eventos não deveriam importar nada para a nossa decisão. O que importa é a estatística, o resto é narrativa.

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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