Opinião

Síria, 08.12.2024.

Síria. Texto longo. Assunto difícil, antigo e sensível.

Não faço distinção entre ditaduras.

Todas as ditaduras merecem democraticamente o meu desprezo e horror. Portanto, a queda de uma ditadura, e das mais sangrentas, a do clã Assad – segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH) com o deslocamento de metade da população (a Síria é o país com a maior crise de deslocamento mundial segundo a ONU), um rastro calculado de aproximadamente meio milhão de mortos, na conta de Bashar al-Assad, que somada à ditadura do seu pai, Hafez al-Assad, vai para aproximadamente 800.000 mil mortos -, é uma boa notícia, sim, pelo simples fato óbvio de ambos serem isso: ditadores que se voltaram contra o próprio povo, incluindo o fato de o regime de Bashar al-Assad ter sido acusado de repetidas violações dos direitos humanos e do uso de armas químicas. Logo, o consequente sentido de justiça vem do que causa e efeito, ação e reação produzem, e é capaz de compreender o sentimento de alegria expresso por muitos da comunidade síria, desde a madrugada do dia 08.12.2024, um dia histórico.

Isto dito, me preocupa o que virá.

Acompanho há algum tempo o que se passa na Síria, o bisavô do meu marido é sírio-libanês, veio para o Brasil na onda migratória com muitos cristãos, como ele, fugindo de conflitos. Empreendedor, em busca de paz, fundou a Casa Syria.

De lá para cá, quantos conflitos!

As complexidades da região, em um território que reúne curdos, drusos, sunitas e xiitas são evidentes. Bashar Al-Assad é islâmico de uma corrente minoritária xiita alauíta, com seguidores de Ali.

Para os que tiverem curiosidade de saber sobre a formação do país, a leitura do capítulo sobre o Oriente Médio, do livro Prisioneiros da Geografia, de Tim Marshall, oferece um bom panorama sobre as consequências do polêmico acordo Sykes-Picot, idealizado pelos diplomatas britânicos e franceses, após a Queda do Império Otomano:

 “Em 1916 o diplomata britânico coronel sir Mark Sykes pegou um lápis colorido e traçou uma linha tosca através de um mapa do Oriente Médio. (…) Antes do acordo Sykes-Picot (em seu sentido amplo), não havia nenhum Estado da Síria, nenhum Líbano, nem Jordânia, Iraque, Arábia Saudita, Kuwait, Israel ou Palestina. Mapas modernos mostram as fronteiras e os nomes de Estados-nação, mas eles são jovens e frágeis. (…) A Síria é mais um Estado de múltiplos credos, múltiplas religiões, múltiplas tribos que se desintegram ao primeiro exame. No que é típico da região, o país é majoritariamente muçulmano sunita – cerca de 70% -, mas ele tem minorias substanciais de outras fés. (…) Quando governavam a região, os franceses seguiam o exemplo britânico de dividir para reinar. Nessa época os alauítas eram conhecidos como nusairis. Muitos sunitas não os consideram muçulmanos, e a hostilidade contra eles era tamanha que eles mudaram seu nome para alauítas (como “seguidores de Ali”) para reforçar suas credenciais islâmicas. Eram um povo montanhês atrasado, no mais inferior dos estratos sociais da sociedade síria. Os franceses os pegaram e puseram na força policial e nas Forças Armadas, a partir de onde, ao longo dos anos, eles se estabeleceram como um grande poder no país. Fundamentalmente, todos estavam cientes da tensão advinda do fato de haver líderes de uma pequena minoria da população governando a maioria. O clã Assad, do qual provém o presidente Bashar al-Assad, é alauíta, grupo que compreende aproximadamente 12% da população. A família governa o país desde que o pai de Bashar, Hafez, tomou o poder num golpe de Estado em 1970. (…)”.

Para além dessas sabidas complexidades, há os jogos de poder que envolvem alianças que incluem a Rússia de Putin, contemporâneo de Bashar na chegada ao poder, no ano 2000, e o regime iraniano (muçulmano xiita), com um dos seus “braços”, recém enfraquecido, o Hezbolah. Nenhum deles, todavia, foi capaz de se manter “segurando a mão” de Bashar. Quem será o próximo (a cair) é o que muitos se perguntam agora.

Com a Rússia envolvida na guerra que iniciou contra a Ucrânia e o atual regime iraniano pagando o preço da guerra iniciada contra Israel, através de seus procuradores cada vez mais enfraquecidos, o tabuleiro se moveu. A recente eleição americana adicionou um ingrediente a mais. Ontem, no X, Trump afirmou que esse é um problema dos sírios para o povo sírio resolver. Animal político que é, não perdeu a chance de lembrar o polêmico e marcante episódio da “red line” de Obama, que evidenciou bem no seu estilo: em CAPS LOCK.

https://x.com/realdonaldtrump/status/1865434273953509462?s=46&t=_avN8F2bOjR6AsAt50B5nA

Os Estados Unidos, sob Trump, se manterão assim? O tempo dirá. O mesmo serve para a Rússia, que tem a única base militar com saída para o mar na região, em Tartus. Abrirão mão? A Turquia, que recebeu em torno de 3 milhões de refugiados sírios e tem uma rixa antiga com os curdos, é outro capítulo dessa complexa equação. A própria análise da participação da Turquia neste levante é um dos aspectos mais relevantes e está em andamento.

Acrescente-se que, ainda no dia 08.12.2024, o exército americano, sob Biden, anunciou um ataque lançado contra alvos do Estado Islâmico (EI) na Síria:

“As forças do Comando Central dos EUA (Centcom) conduziram dezenas de ataques aéreos de precisão visando campos e agentes conhecidos do EI na Síria central, em 8 de dezembro”, relatou um comunicado publicado pelo comando militar na rede social X. “A operação atingiu mais de 75 alvos usando vários ativos da Força Aérea dos EUA, incluindo B-52s, F-15s e A-10s”

https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2024/12/08/eua-bombardeiam-alvos-do-estado-islamico-na-siria-em-meio-a-troca-de-poder-e-queda-de-assad.ghtml

Em 10.12.2024, foi a vez de Naftali Bennett, ex-Primeiro Ministro de Israel, defender em postagem no X, as ações militares do país:

https://x.com/naftalibennett/status/1866414824957055169?s=46&t=_avN8F2bOjR6AsAt50B5nA

Tudo isto posto, Bashar Al-Assad é uma figura indefensável. A perda de poder é pouco para o que ele fez contra o seu próprio povo. Houvesse um Tribunal Penal Internacional como o que eu imaginava, ele deveria estar no banco do réus. O mais provável é que esteja mesmo em Moscou, como divulgado, com “asilo humanitário”. Que ironia. Li que o nome de Bashar Al-Assad significa ‘aquele que causa/desperta alegria’. Assad significa leão. E o que ele, um médico, que não é o primeiro que apesar dessa formação está na lista de tiranos, causou? Seus modos finos e civilizados não são uma defesa, são um escudo, um disfarce, inútil, diga-se. Ficará conhecido como o “açougueiro de Damasco”. Como esquecer as imagens dos ataques com o gás sarin? Depois com o cloro? Eu não esqueci. Fiz uma postagem na época.

Conforme noticiado pela BBC, “sabe-se que as forças leais a Bashar al-Assad usaram gás sarin em um ataque a um subúrbio da capital síria, chamado Ghouta, em 2013, que teria matado mais de mil pessoas. Eles também são acusados de usar armas químicas, como gás sarin e gás cloro, em outros ataques mais recentes”.

https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4g20jezy0go

Muitas daquelas imagens com crianças (!), e a destruição causada pelos implacáveis bombardeios russos ainda circulam na internet com algumas delas sendo imputadas aos israelenses, em Gaza. Já tive muita vontade de corrigir. Mas aprendi que vontade é coisa que dá e passa. No ambiente de torcida das redes, é algo para se manter em mente.

Em sua página no X, Kareem Rifai (@kareemRifai), ao compartilhar matéria de sua autoria publicada no Telegraph, disse:

“Há um década atrás, um tanque do regime de Assad explodiu a casa dos meus avós enquanto eles ainda estavam lá dentro. O uso indevido de vídeos da Síria na guerra de informação entre Israel e Palestina fere a memória deles. Tem que parar. Minhas palavras para @Telegraph”

https://www.telegraph.co.uk/news/2023/10/17/israel-gaza-syria-misinformation-propaganda/?fbclid=IwY2xjawHG90ZleHRuA2FlbQIxMAABHWpwC3iPz4ngvaNI7Jnl8kRgwSWkEfacg8SZSzvn0Pg97wPm1UClIV5RaQ_aem_ZmFrZWR1bW15MTZieXRlcw

Em sendo assim, na madrugada do dia 08.12.2024, eu fui dormir dividida, após saber da queda de Bashar Al-Assad. Uma parte sabia que aquilo era justo, inevitável, e havia um, melhor dizendo, milhares de motivos para aquilo estar acontecendo. Outra parte lembrou da Primavera Árabe, das expectativas quebradas. É realista admitir que o sofrimento pode continuar a seguir na Síria por outras vias até que, um dia, finalmente, a paz seja uma escolha coletiva verdadeiramente internalizada. Nesse ponto, admito, comecei a sonhar acordada.

Antes, contudo, após acompanhamos as notícias, eu resolvi celebrar assim mesmo, dividida, ouvindo “Ecos de Ugarit”, uma canção que compartilhei em 2013, quando os apelos por uma intervenção americana aumentavam bastante, de um lado, após os ataques com armas químicas, enquanto eram fortemente repelidas, por outro lado.

Ecos de Ugarit nos remete a 3.400 A.C., dizem ser a 1ª música transcrita p/ uma partitura, gravada em tablitas encontradas numa antiga cidade síria, onde surgiu o 1º alfabeto. É uma das músicas mais lindas q/ já ouvi. ❤️

Não tenho palpites sobre quem é menos ou mais terrível, melhor dizendo, quem assim será considerado com o julgamento que o tempo fará. Por ora, deixo essa análise do momento atual, de turbulência e transição, para os especialistas e, especialmente, dou esse maior direito aos próprios sírios que não precisam de ninguém que fale por eles. O primeiro ato, a constar dos autos, deverá ser a exposição dos horrores da prisão de Saydnaya enquanto famílias buscam vestígios dos desaparecidos. Não ousei trazer nenhuma das imagens para cá.

Um relatório de 2017 da Anistia Internacional chamou Saydnaya de “matadouro”, documentando abusos no que chamou de escala industrial, incluindo estupro, tortura e execuções. Pessoas eram frequentemente desaparecidas por serem manifestantes, dissidentes políticos, jornalistas, trabalhadores humanitários ou estudantes. Suspeita-se que a prisão tenha seu próprio crematório”.

https://www.cbc.ca/news/world/saydnaya-prison-assad-syria-1.7406668

Nada, todavia, foi feito a respeito por parte do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Nada, por ora, indica que fará. Hillel Neuer (@HillelNeur), Doutor em Direito, advogado internacional de direitos humanos, e diretor-executivo da United Nations Watch não deixou de lembrar em sua conta no X, há dois dias, à @amnesty  que:

 “A história registrará que entre agosto de 2023 e ontem, você tuitou sobre as vítimas da Síria apenas 2 vezes. (Nós da UN Watch mencionamos a Síria 29 vezes.) Tão obcecado em promover as mentiras do Hamas no ano passado, você simplesmente não teve tempo para as vítimas desesperadas de Assad”.

https://x.com/hillelneuer/status/1866057383094690225?s=46&t=_avN8F2bOjR6AsAt50B5nA

📍Simon Sebag Montefiore, escritor, autor de Jerusalém e World (que pretendo adquirir em breve), fez um bom fio no X.

Alguns trechos:

“É impossível assistir à queda da tirania brutal e bruta da casa de Assad sem alegria. Em Qardaha, nas terras alauitas de Latakia, fica o suntuoso e imaculado mausoléu digno de um monarca árabe: aqui, o fundador da dinastia Assad, Hafez al-Assad, está enterrado em magnificência ao lado de seu arrogante filho mais velho e herdeiro escolhido, Bassel, sempre promovido como o “cavaleiro árabe” retratado a cavalo, que morreu jovem em um acidente de carro, deixando a sucessão para o cirurgião ocular desajeitado e sem queixo que acabou sendo tão assassino quanto o pai. (…)

Por 53 anos, essa dinastia governou a Síria com cada vez mais selvageria até que o massacre bárbaro e niilista dos anos desde a Primavera Árabe, apoiado por uma aliança assassina do Irã, Rússia e Hezbollah, transformou o país em um estado vassalo iraniano. Cerca de 600.000 sírios foram mortos quando Assad e os iranianos, russos e o Hezbollah perpetraram de longe a pior carnificina no Oriente Médio nos tempos modernos, simbolizada pelo slogan: “Assad ou o país queima!” (…) É sensato deixar a análise e as previsões do que está acontecendo e acontecerá na Síria para especialistas sírios ou especialistas veteranos como @charles_Lister e seria sensato para muitos dos generalistas regionais oniscientes da TV deixar os sírios falarem por si mesmos. Um segue o exemplo deles, mas compartilhamos sua alegria. Que isso leve a uma Síria e um Líbano livres e tolerantes que estejam em paz com seus vizinhos, incluindo Israel, e que isso seja um dominó que leve à queda do ameaçador ditador iraniano Khamenei e seu regime que exportou e impôs seu império, matança e miséria na Síria e no Líbano por décadas.

Cabe aos especialistas nos dizer se o antigo grupo al-Qaeda, al-Nusra, agora conhecido como HTS e seu líder camaleônico al-Jolani estão falando sério quando anunciaram tolerância para todas as seitas, incluindo cristãos, alauítas e curdos, e se eles realmente desejam criar uma democracia que esteja em paz com Israel – ou se esta é simplesmente a última reviravolta em sua longa história de reformulação de marca, renomeação e engano no caminho para criar um estado islâmico no qual a Turquia pode exercer grande influência. (…)

Mesmo que a ofensiva do HTS tenha sido planejada há muito tempo, a derrota israelense do Hezbollah e do Irã enfraqueceu irremediavelmente o já frágil e vazio regime assadista; nenhum dos dois era forte o suficiente para ajudar Assad. A maldição de Sinwar destruiu todo o Eixo de seus apoiadores.

A história de Assad acompanha a história da Síria e eu abordo sua dinastia no meu livro World. Eles eram alauitas da província de Latakia, no Mediterrâneo: o avô de Bashar era um personagem poderoso conhecido como Ali Sulayman al-Wahhish, o al-Wahhish significando A Besta Selvagem) por sua força – ele teve onze filhos. Hafez foi seu nono filho. Seu apelido era al-Assad – o Leão – e ele adotou esse nome de família. Como líder local, ele apoiou o plano do Mandato Francês para uma partição da Grande Síria e sua promessa de uma pátria alauita. Quando os franceses não entregaram, ele se opôs a eles, mas depois cooperou. Seu filho Hafez se juntou à força aérea e ao partido nacionalista-socialista Baath e emergiu de suas rixas fissíparas, golpes e contragolpes como Ministro da Defesa (durante a derrota da Síria por Israel em 1967) e depois como Presidente a partir de 1969, governando implacavelmente com a ajuda de seu irmão Rifaat, que aspirava ao trono.

Assad aliou a Síria de perto com a União Soviética e em oposição ferrenha a Israel, embora na velhice, ele chegou perto de um acordo de paz com Israel que teria restaurado as Colinas de Golã. Diante de uma rebelião jihadista da Irmandade Muçulmana em Hama em 1982, Assad ordenou que seu irmão Rifaat destruísse a cidade e seus habitantes civis, matando cerca de 40.000 civis em poucos dias – um massacre que ainda é classificado como o maior assassinato de civis nos tempos modernos, sem paralelo. (…)

A política da dinastia Assad parecia um cruzamento entre uma família da Máfia e as intrigas da corte de uma monarquia medieval combinadas com um culto stalinista à personalidade e polícia secreta soviética e economia rigidamente controlada: quando Hafez teve um ataque cardíaco, seu irmão Rifaat tentou tomar o poder e foi exilado; Hafez preparou seu filho Bassel como sucessor, mas sua morte abriu caminho para a sucessão de Bashar, que tinha ido para Londres para treinar como cirurgião ocular. Sua formação médica não era tão excepcional: muitos médicos se tornaram ditadores implacáveis ​​– ‘os médicos’ e terroristas (muitos dos líderes da FPLP e do Hamas eram médicos) e ele acabou se tornando tão implacável quanto o resto da família. Como seu pai com Rifaat, ele promoveu e lutou para controlar um irmão mais selvagem, Mahar, que se tornou o executor assassino do regime. O paralelo com a Máfia se tornou ainda mais marcante quando a dinastia se degradou em uma família do crime organizado se envolvendo em rixas e sobrevivendo como um cartel de drogas vendendo Captagon através do Hezbollah e por toda a região.

Vale lembrar que por cinquenta anos, um longo tempo, Hafez al-Assad foi elogiado pelos “especialistas árabes” ocidentais, especialmente britânicos e americanos, como a sábia Esfinge de Damasco, assim como seu filho Bashar o foi depois dele, elogiado por progressistas antiliberais, anticolonialistas, anti-israelenses, antiocidentais, falsos “ativistas de direitos humanos” e fashionistas tolos (o famoso artigo da Vogue Desert Rose sobre a Sra. Assad, formada na Grã-Bretanha e especialista em moda, continua sendo um clássico) como humanitários astutos, modernizadores árabes e líderes da resistência contra os perversos EUA e Israel. Essa bajulação e elogios continuaram até hoje — uma hipocrisia espantosamente antiliberal, salpicada no sangue de 600.000 sírios que não contavam, e ainda abraçada ATÉ NESTA SEMANA por um certo relator desacreditado da ONU…

A tragédia da Síria pode estar chegando ao fim em um maravilhoso florescimento de democracia tolerante com o fim da repressão, do islamismo e do fechamento da história recente da Síria como o brinquedo de potências externas OU este pode ser apenas o último ato de um fracasso do estado sírio e sua tragédia como um campo de batalha de contendores locais, Irã, Israel, Turquia e grandes potências, América e Rússia.”

https://x.com/simonmontefiore/status/1865755943083835825?s=46&t=_avN8F2bOjR6AsAt50B5nA

https://x.com/simonmontefiore/status/1865754119060717846?s=46&t=_avN8F2bOjR6AsAt50B5nA

https://x.com/simonmontefiore/status/1865755208837447820?s=46&t=_avN8F2bOjR6AsAt50B5nA

Ainda, aos que estão, como eu, tentando entender “o que vem a seguir na Síria”, seguem trechos da entrevista publicada no The Free Press, em 08/12/2024, por Adam Rubenstein, segundo o qual “não há ninguém melhor para respondê-las do que Dexter Filkins, da The New Yorker . Filkins relatou da Síria, Líbano, Iraque, Iêmen e praticamente de todos os outros lugares do mapa. Ele é o autor de the Forever War.”

Adam Rubenstein: Você poderia descrever a queda de Assad?

Dexter Filkins : O colapso do regime de Bashar al-Assad foi de tirar o fôlego, decisivo e rápido. Primeiro, os rebeldes tomaram Aleppo, depois Homs, agora Damasco. No terreno, em muitos lugares, há caos: os conselheiros iranianos e russos, e os combatentes do Hezbollah, que resgataram o regime de Assad em 2016 , estão fugindo. Os mercenários afegãos e paquistaneses, importados pelos iranianos para ajudar, estão presos. O momento crucial veio sexta-feira e sábado, quando o regime — um dos mais assassinos do mundo — recuou dos subúrbios de Damasco. Pareceu por um momento que o exército de Assad estava recuando para uma última resistência, mas, na verdade, estava apenas se desintegrando. Assad fugiu do palácio e, segundo consta, até da própria Síria. Os rebeldes e seu comandante, Abu Mohammad al-Jolani, tomaram a capital. Ninguém poderia prever que os eventos se moveriam tão rápido.

AR: Qual o significado da queda de Assad?

DF : A queda de Assad é um evento crucial na história do Oriente Médio moderno, por dois motivos. Primeiro, embora ainda não saibamos o que o futuro imediato trará, é um grande momento para o povo sírio. O império de Assad, que começou com a ascensão do pai de Bashar, Hafez al-Assad , um ex-oficial do exército, em 1971, durou 53 anos. (Bashar assumiu em 2000.) Desde o início, os Assads foram brutais, corruptos e ruinosos, não tolerando dissidência; eles empobreceram o povo sírio. O segundo motivo pelo qual a queda de Assad é tão importante é que representa o colapso da longa campanha iraniana para dominar o Oriente Médio. Há apenas 18 meses, o poder iraniano estava no auge, com seus aliados locais dominando uma ampla faixa da região e quase completando o cerco de Israel: Assad na Síria, o Hezbollah no Líbano, as milícias xiitas no Iraque, os houthis no Iêmen e o Hamas em Gaza. Os iranianos o chamavam de “Eixo da Resistência”. Ele era voltado principalmente para Israel; a ameaça clara era que qualquer tentativa israelense de atacar o Irã, particularmente seu programa de armas nucleares, seria recebida por uma resposta rápida e devastadora dos aliados do Irã. Ao mesmo tempo, o Eixo da Resistência era um vasto exercício de pilhagem; Assad, as milícias xiitas no Iraque e o Hezbollah no Líbano eram parasitas, sugando e drenando a riqueza dos países em que habitavam e paralisando os estados e governos onde viviam. E agora, depois de apenas alguns meses, o projeto iraniano está em ruínas. O Hamas foi destruído, o Hezbollah está paralisado, Assad se foi e o próprio regime iraniano está severamente enfraquecido.

Deve ser dito: A maior parte do crédito vai para Israel, que, ao destruir o Hamas, decapitar a liderança do Hezbollah e deixar os líderes do Irã expostos, chutou para longe os suportes de apoio do regime de Assad. O exército ucraniano também merece um aceno. Foram os militares russos que lideraram o esforço para salvar Assad quando ele estava cambaleando em 2015; eles bombardearam rebeldes e civis indiscriminadamente. E agora, oito anos depois, os russos estão amarrados e ensanguentados na Ucrânia, onde sofreram cerca de 600.000 baixas . Os ucranianos também desempenharam um papel importante na queda de Assad.

AR: O que sabemos sobre aqueles que provavelmente governarão a Síria?

DF : O líder da revolta atende pelo nome de guerra Mohammad al-Jolani , um sírio. Ele é inteligente, jovem e ambicioso. O “Jolani” em seu nome é derivado das Colinas de Golã, de onde sua família foi forçada a recuar em 1967, quando Israel capturou a região na Guerra dos Seis Dias . Al-Jolani começou sua carreira como um fanático de olhos frios, viajando para o Iraque em 2003, onde foi capturado e colocado em uma prisão americana quando tinha acabado de sair da adolescência. O centro de detenção, Camp Bucca , era uma notória incubadora de jihadistas; se você não era um radical quando entrou, você era quando saiu. Al-Jolani foi libertado em 2008 e prontamente se juntou à Al-Qaeda no Iraque, a gangue supremamente assassina que liderou a insurgência contra os americanos no Iraque. Quando a revolta síria começou em 2011, al-Jolani voltou para casa, onde fundou uma afiliada da al-Qaeda, a Jabhat al-Nusra , que se tornou um dos principais grupos lutando na longa, brutal e multifacetada guerra civil da Síria. Em sua fundação, a Frente al-Nusra, como era conhecida, agia como qualquer outra afiliada da al-Qaeda: era sanguinária e sectária. Os EUA colocaram uma recompensa de US$ 10 milhões por sua cabeça, e ela ainda está lá. Mas depois de anos de luta sectária, al-Jolani rompeu com a al-Qaeda e formou a Hayat Tahrir al-Sham, com sede na cidade de Idlib, no noroeste da Síria. Como líder do HTS, al-Jolani, pelo menos na superfície, mudou; enquanto marchava pela Síria, ele ordenou que suas tropas notavelmente bem disciplinadas deixassem as minorias cristã e xiita em paz — os mesmos grupos que a al-Qaeda passou tantos anos matando. Al-Jolani também disse aos jihadistas não sírios para ficarem longe, indicando que ele é mais um nacionalista sírio do que um fanático islâmico. A transformação de al-Jolani é real ou meramente tática? Ninguém sabe. Mas é interessante que em todos os anos em que os EUA tiveram uma recompensa por al-Jolani, eles não tentaram matá-lo. Talvez os oficiais da inteligência americana pensem que ele é real.

AR: Existe risco de um colapso mais amplo na região, uma nova Primavera Árabe?

DF : Não vejo muita chance de que a Primavera Árabe volte. A Primavera Árabe foi uma série de revoltas internas contra regimes decrépitos; a revolta síria também foi. Mas acho que os eventos dos últimos seis meses são muito mais bem compreendidos como um afastamento da dominação estrangeira — iraniana. Disso, a Síria finalmente parece livre.

(…)

AR: Israel acaba de tomar um território crítico no topo do Monte Hermon; há uma imagem circulando de soldados da IDF segurando uma bandeira israelense no lado sírio do Hermon. Nosso Matti Friedman disse que este é “provavelmente o desenvolvimento mais dramático na fronteira Israel-Síria em 50 anos”.

DF : Acho que o desenvolvimento mais significativo foi o anúncio de Israel de que havia atacado as fábricas de armas químicas da Síria . Todos deveriam estar aterrorizados com a perspectiva de que elas caíssem em mãos erradas.

AR: Quais são os próximos movimentos e contra-movimentos? Um vácuo no leste da Síria? Turquia massacrando os curdos no norte?

DF : Há uma boa chance de a Síria cair no caos. É um país artificial, criado por alguns traços de caneta mal pensados ​​após a Primeira Guerra Mundial. Ele contém multidões de seitas e tribos, que agora terão que descobrir como viver juntas, e não terão instituições, como uma imprensa livre ou sociedade civil, para ajudá-las, pois foram destruídas há muito tempo pelos Assads. E então há os vizinhos da Síria — Israel, Turquia, Arábia Saudita, Catar — competindo pelo domínio. Esperarei o melhor e temerei o pior.

AR: O que os iranianos estão pensando agora? É “Será que somos os próximos?”

DF : A queda de Assad é um golpe mortal para o regime iraniano. Eles foram expostos pelos israelenses (e americanos) como sendo muito mais vulneráveis ​​do que qualquer um sabia. E a perda de Assad, Hezbollah e Hamas os revela como covardes e impotentes. A obra da vida do [Aiatolá] Ali Khamenei — o Eixo da Resistência — está em cinzas. Ele tem 85 anos. Ele, e todos ao seu redor, devem estar realmente preocupados.”

https://www.thefp.com/p/dexter-filkins-on-the-fall-of-assad-syria-israel?fbclid=IwY2xjawHHrnBleHRuA2FlbQIxMAABHXfQHTeIrIkkB63vhAcjFIt4HEtLqnvjXSDxTIrFXRZKuf6O7iVbZOn7vg_aem_H2rxfz3nlZ3ZN9twu8BxLQ

Encerro com trechos (especialmente dedicados aos realistas esperançosos como eu) do artigo publicado, em 08.12.2024, no The Atlantic, pela escritora Anne Applebaum, autora, entre outros, de A Fome Vermelha: a Guerra de Stalin na Ucrânia e O Crepúsculo da Democracia (li ambos), além do recente Autocracia S.A.: Os ditadores que querem dominar o mundo (que pretendo ler em breve):

“… As cenas que se seguiram hoje em Damasco — a derrubada de estátuas, as selfies tiradas no palácio do ditador — são as mesmas que se desenrolarão em Caracas, Teerã ou Moscou no dia em que os soldados desses regimes perderem a fé na liderança, e o público perder o medo desses soldados também.

(…) Não sei se os eventos de hoje trarão paz e estabilidade à Síria, muito menos liberdade e democracia. Um grupo que se autodenomina Governo Nacional de Transição teria emitido uma declaração pedindo aos sírios que “se unissem e permanecessem juntos”, para “reconstruir o estado e suas instituições” e para começar uma “reconciliação nacional abrangente”, incluindo o retorno de todos os refugiados. Os líderes dos exércitos rebeldes incluem extremistas islâmicos; em uma entrevista à CNN, Abu Mohammed al-Jolani, o líder do maior grupo, Hayat Tahrir al-Sham, descreveu sua antiga afiliação à Al-Qaeda como um tipo de erro juvenil. Isso pode ser linguagem tática, propaganda ou sem importância. Enquanto escrevo, os sírios em Damasco estão saqueando o palácio presidencial.

No entanto, o fim do regime de Assad cria algo novo, e não apenas na Síria. Não há nada pior do que a desesperança, nada mais destruidor de almas do que o pessimismo, a tristeza e o desespero. A queda de um regime apoiado pela Rússia e pelo Irã oferece, de repente, a possibilidade de mudança. O futuro pode ser diferente. E essa possibilidade inspirará esperança em todo o mundo.”

https://www.theatlantic.com/international/archive/2024/12/sudden-collapse-bashar-assad/680917/?fbclid=IwY2xjawHHAppleHRuA2FlbQIxMAABHQtSB-Rst_LQXvlSY_hFp0HSLDYvXiYhbGXM-sNBRs_CD3o-Dau1rGzYfQ_aem_Dna14SD4-LGdRTwtzZ1ATg

Daniela Meneses

Sou carioca, “naturalizada” no nordeste e lotada no Paraíso das Águas, com a família que formei, e é o meu maior patrimônio. O Rio segue em mim. Acredito no uso terapêutico do contato com a Natureza (especialmente o Mar), a Yoga, a Dança, a Corrida, e a Escrita, sendo esta última a razão pela qual mantenho o hábito de “pensar em voz alta” no Facebook. Graduada em Direito há 26 anos e especialista em Direito Constitucional, atuo na área. Humanista e reformista, acredito na efetividade de reformas cíclicas que conduzam ao aperfeiçoamento institucional, assegurando o exercício do conjunto de liberdades e das garantias fundamentais e individuais. A bem da verdade, na minha 1ª postagem no PDB há o suficiente para sintetizar meu “enquadramento”: me alinho aos valores do Iluminismo, da Revolução Gloriosa, das liberdades de crença, expressão, de pensamento, do direito de ir e vir e de propriedade. Por consequência, defendo o Regime Democrático, a Separação dos Poderes, o Estado laico, a Imprensa Livre, os valores humanistas, e o Due Process of Law. No mais, a pretensão adolescente de ser agente secreta (rs) talvez explique um dos meus temas prediletos: geopolítica. O gosto por história, literatura, e filosofia vem da época da escola. Provavelmente, minhas publicações, que representam minha posição pessoal, sem qualquer vinculação institucional, estarão associadas a esse mix. Até agora, estavam restritas para amigos, entre os quais estão muitos dos que fazem parte desse espaço descontraído de troca de ideias, o Papodeboteco.

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2 Comentários

  1. Daniela,
    Excelente texto informativo e opinativo com opiniões de peso. O melhor dele é a queda do ditador Assad que trouxe esperança a todos os sírios. Pelo menos , nesse momento, eles merecem esse vento bom de alegria e esperança. Que outros ditadores caiam também e sejam julgados e punidos pelos crimes contra seus povos.

  2. Parabens pelo texto, ha informação importante e esclarecedora para quem vive e respira em um pais muito distante desta realidade e, que nem em imaginação sabe sobre os horrores deste conflito. Toda ditadura, seja ela velada, seja explicita seja extinta e seus algozes devidamente punidos.

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