Cinema

Som da Liberdade

Ontem assisti ao filme Som da Liberdade. Por algum motivo que a mim me escapa, esse filme está cercado de polêmica, sendo pomo de discórdia entre os dois lados do espectro político. Vou aqui analisar o que vi e tentar entender porque existe a polêmica.

O filme em si é realmente muito bom. Um thriller de tirar o fôlego, salpicado com momentos de emoção. Confesso que foi difícil segurar as lágrimas em uma cena. Na fila do toilette feminino depois do filme, ouvi uma mulher dizendo: “chorei em várias partes do filme”. As atuações são convincentes, com destaque para as duas crianças que protagonizam a história.

O filme é competente também em como revela o mundo interior de Tim Ballard, o policial interpretado por Jim Caviezel. Sua religiosidade sólida (falaremos mais sobre isso adiante) aparece somente em uma única frase dita em um diálogo, e depois repetida no final do filme: “God’s children are not for sale”, que foi erroneamente traduzida como “as crianças de Deus não estão à venda”, quando, na verdade, em inglês, essa frase se refere a “filhos de Deus”, o que a torna muito mais ampla. Esta frase levanta levemente o véu da alma de Tim, o porquê ele fez o que fez.

O filme, portanto, é bom, mas sua qualidade não explica sozinha porque está em primeiro lugar nas bilheterias do Brasil. No post sobre cotas para filmes nacionais, mencionei que o diretor do Cinemark afirmou que um filme, para bombar, precisa ser promovido. As verbas de marketing dos grandes blockbusters são gigantescas. Ocorre que Som da Liberdade foi produzido pela Angel Studios, um pequeno estúdio Mórmon de Utah que, com certeza, tem verba limitada de marketing. Vale a pena falar um pouco sobre essa Angel.

Nascida como VidAngel, a empresa se dedicava a comercializar um filtro de controle de conteúdo de streaming para pais. Foi processada pelos estúdios por uso não autorizado de direitos autorais, o que a fez mudar de ramo, produzindo seus próprios conteúdos para famílias conservadoras. O estúdio se financia através de crowdfunding, o que funciona muito bem em nichos em torno de temas que mexem com convicções profundas, como é o caso dos valores conservadores. As pessoas colaboram porque estão convencidas de que estão fazendo um bem para o mundo. No final do filme, o ator Jim Caviezel aparece pedindo doações para o estúdio, para que ingressos possam ser doados. Um código QR na tela redireciona para uma página de doações. Vi vários no cinema apontando suas câmeras. Essa é a promoção possível para quem não tem verba de marketing. E tem funcionado.

A Angel comprou os direitos de Som Da Liberdade por US$ 5 milhões (dinheiro de crowdfunding) da Disney, que havia engavetado o projeto quando comprou a 20th Century Fox, estúdio que havia produzido grande parte do filme. Dando uma olhada na bilheteria até o momento (mais de US$ 200 milhões and counting), parece que a Disney, no mínimo, tomou uma decisão comercial errada. Se é que a decisão foi tomada somente por motivos comerciais, mas aí já estaríamos no campo das teorias da conspiração.

E por falar em teorias da conspiração, tente googlar “Sound of Freedom” e “QAnon”. Em largas pinceladas, QAnon é um movimento underground surgido em 2017, que defende que o mundo estaria dominado por adoradores de Satanás, que operariam uma grande rede de pedofilia no mundo. Trump seria o presidente que iria desmantelar essa rede, por isso a perseguição que a grande mídia, atores de Hollywood e grandes bilionários como George Soros (sim, sempre ele) travaram contra o ex-presidente.

Bem, essa é a teoria. Como o filme foca no tráfico de crianças e tem uma pegada conservadora, foi o suficiente para que se visse uma “mensagem subliminar” em apoio à teoria do QAnon. A ligação do filme com o QAnon parece, em si, uma teoria da conspiração. Claro, cada um vê o que quer, e é por isso que as teorias da conspiração existem. O ser humano é um animal em busca de sentido, e teorias da conspiração são o hipersentido da realidade, histórias que fazem encaixar fatos que, de outra forma, pareceriam insuportavelmente aleatórios. O filme retrata uma realidade dura de uma maneira heróica e delicada, e precisa ter muita má vontade para ligá-lo a algo remotamente semelhante à teoria doidivanas do QAnon. Mesmo porque, o filme começou a ser produzido em 2015, portanto, dois anos antes do surgimento do QAnon. Um discurso de Jim Caviezel em uma convenção cristã em Las Vegas em 2021 é citada como evidência de sua ligação com o QAnon, porque ele usou a palavra “storm”, que seria a descrição, segundo o QAnon, do que Trump faria com a rede pedófila global. É ou não é teoria da conspiração na veia?

O fato é que o filme foca no drama das crianças, e só. Fala muito pouco, quase nada, sobre os responsáveis por isso. As críticas ao filme parecem antes estar ligadas à sua pegada conservadora. Em um dos diálogos, um dos personagens conta como evitou o suicídio após transar com uma menina por ter ouvido a voz de Deus. Aquilo o fez mudar de vida. O diálogo é bom, bem escrito, não é piegas, mas revela um perfil que não cai no gosto de todos. Ok, justo. Mas daí a fazer o salto triplo mortal carpado de que haveria uma ligação com o QAnon, é muita vontade de polemizar.

De qualquer forma, os produtores agradecem. As críticas que o filme vem recebendo só atiçam a curiosidade pra ver o que a baiana tem. Foi por isso que fui ao cinema. Não me arrependi, o filme é bom mesmo, valeu o ingresso.

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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