CinemaCulturaLivros

Emma-Emma-Emma, cada versão com seu dilema

Com o ótimo romance Emma, a autora do séc. XIX Jane Austen criou uma protagonista com defeitos até demais, coisa que a recente e bela adaptação homônima - e até uma certa campeã da sessão da tarde - tentaram corrigir. Será que precisava?

Em 1996, depois de eu ficar bem impressionado pela ironia feminina e incrivelmente moderna do filme Razão e Sensibilidade (com Emma Thompson e Kate Winslett), premiado com o Oscar de Roteiro da própria Thompson, coloquei a escritora Jane Austen (1775-1817) na minha lista de leitura. Mas aí acabei assistindo a Orgulho e Preconceito, com a Keira Knightley; e a Northanger Abbey, com a Felicity Jones. E o fato de eu já saber esses enredos me desestimulou a encarar seus respectivos livros. De modo que sobraram poucas obras da autora britânica para eu ler sem ter conhecimento da trama. Agora, quando soube que havia, entre os possíveis indicados ao Oscar 2021, uma adaptação homônima para sua obra Emma, eu resolvi: antes de ver o longa, era hora de eu finalmente ler meu primeiro romance de Jane Austen. E assim, fazer mais uma dobradinha livro-filme, pode ser?

Quando eu já estava nos primeiros capítulos (arrisquei ler no original em inglês, uma das melhores edições do tipo Annotated – ou seja, repleta de notas de rodapé – que já li), fui checar na Wikipedia se eu realmente nunca tinha visto alguma outra adaptação à obra. Algo me parecia familiar. Qual foi minha surpresa que, entre as versões listadas, havia a sessão da tarde adolescente dos anos 90: As Patricinhas de Beverly Hills (Clueless). Isso mesmo, o melhor filme (o único bom?) de Alicia Silverstone foi livremente adaptado da obra de Austen! Lamentei, porque eu lembrava do destino da protagonista no filme, o que poderia ser um spoiler para o livro.

Independente disso, gostei muito do romance, eu me surpreendi! São crônicas bem-humoradas de uma jovem lady, mimada e rica, que acredita ser especialista em juntar casais (matchmaker, ou casamenteira). Como foi escrito em 1815, ainda no início do romantismo, eu esperava que fosse ser mais previsível, mas a obra esconde diversos segredos que vão emergindo em intrigantes reviravoltas. Alguns deles são fáceis de deduzir, ao menos para o leitor atual, outros envolvem uma coleção de pistas falsas e verdadeiras lançadas pela autora, o que me pareceu quase um livro de detetives da Agatha Christie. Depois de terminar o livro, voltei em várias passagens para entender o que realmente se passou. Há densos dramas que acontecem fora da nossa perspectiva fixada em Emma, e com ela, mesmo, pouca coisa efetivamente ocorre (suas motivações, após um movimentado início e antes do desfecho, parecem fracas). Isso, a falta de uma história, foi inclusive uma crítica da época, do renomado Walter Scott (autor de Ivanhoe) que, apesar disso, elogiou a obra. Acho que, no final, Scott pensou o mesmo que eu: esconder uma subtrama intensa nas entrelinhas de uma crônica trivial é uma arte!

O aspecto mais interessante disso tudo é a protagonista. Emma é uma anti-heroína, quase uma vilã, e paira no ar um risco permanente da gente detestá-la. Quase todas as suas ações são guiadas pela discriminação reinante no rígido esquema de classes sociais da época. Pessoas são desqualificadas por serem de classes mais baixas enquanto outras são glorificadas – mesmo antes dela as conhecer – só pela superior posição aristocrática. A autora remedeia esse lado preconceituoso da personagem e seus outros defeitos (mimada, às vezes venenosa…) ao enfocar, como disse, o ponto de vista de Emma, com uso dos primórdios do discurso indireto livre (antecipando inclusive obras ditas pioneiras dessa técnica, também com protagonistas com seu lado desagradável, como o ambicioso Julien Sorel, em O Vermelho e o Negro, de Stendhal, ou a infiel Madame Bovary, de Gustave Flaubert). Dessa maneira, somos capazes de compartilhar, na medida do possível, de sua visão do mundo, e enxergamos suas virtudes: no caso de Emma, principalmente sua capacidade de aprender com os erros. Mesmo assim, definitivamente, ela não é aquela heroína romântica que abre mão de posses e comportamentos por uma paixão ou por códigos de honra. A aristocrata se mantém praticamente sem cruzar determinadas linhas, mesmo sabendo equivocadas, até o fim. O que, no final das contas, a torna mais verossímil, e até mais humana, né? Eu gostei da autora não abrir mão desse aspecto humano falho só para agradar. Uma pena que há um personagem masculino sem a mesma profundidade: plano, nobre, sempre certinho, quase a consciência de Emma, como se a mulher sempre precisasse de um homem assim ao lado. A autora compensa isso com uma história secundária na qual claramente a pessoa sensata do casal, com o papel de dirigir a razão do outro, é a mulher.

Se esse dilema de como tornar interessante para o leitor da época uma protagonista tão errada deve ter sido difícil para Jane Austen desenhar, imagine fazer isso nas adaptações cinematográficas para o público atual. Foi isso que mais prestei atenção no recente filme Emma (2020), disponível no Telecine, estrelado pela talentosa Anya Taylor-Joy (a enxadrista zoiúda de O Gambito da Rainha). Um destaque do filme é o colorido do conjunto de fotografia, figurinos e design de produção, categorias com chances de indicações ao Oscar 2021. E, realmente, é um dos mais belos filmes de época que já vi: se você se liga nisso, já vale a pena em si. Mas também é uma adaptação bem literal do livro, muitos diálogos inclusive sendo ipsis literis. O que tornou o trabalho de decisão do que ia ou não para a tela, do roteiro e da direção (ambos, de mulheres estreantes no ramo) mais admirável. Uma solução foi reduzir o espaço para a subtrama secreta, já que ela não é mostrada mesmo. No entanto, não deixaram de exibir um momento em que Emma atinge o nível mais “baixaria” de suas ações.

O carisma da Anya segura as pontas para não desgostarmos muito da sua Emma. Mais para o final do filme, porém, são notórias pelo menos duas concessões, ausentes no livro, para aliviar o lado da protagonista. Não dá pra contar do que se trata sem dar spoiler, mas digamos que, no livro, um dos principais erros de Emma é corrigido sem a intervenção dela; pelo contrário, ela se limita a tentar mandar o efeito para longe. Já no filme, ela humildemente cruza linhas, antes intransponíveis, de classe, para resolver. Talvez realmente tenha sido necessária essa mudança, porque o público atual é obviamente menos tolerante à discriminação social, mas o script não teve a mesma genialidade de conclusão de outro filme de época recente que, no original, continha um desfecho questionável: Adoráveis Mulheres (2019), adaptação brilhante de Greta Gerwig (com Saoirse Ronan) para o clássico romance Mulherzinhas (1888), de Louisa May Alcott.

Por fim, aproveitei para rever As Patricinhas de Beverly-Hills (disponível no Prime Video), divertido título brasileiro para Clueless, que transpõe o clássico de Austen para o distrito mais famosamente esnobe e engomadinho do mundo. De fato, é bem divertido e até engenhoso ver as soluções dessa versão. Se, no livro, Emma une sua preceptora com um viúvo vizinho, no filme, a protagonista, com o ótimo nome de Cher, une dois professores. Um retrato pintado que gera um mal-entendido no livro se torna uma fotografia no filme. O cunhado da irmã de Emma, que por isso é quase um irmão (só-que-não), se torna filho de uma das ex-mulheres do pai de Cher. Se Emma destrata uma vizinha faladeira, Cher chama uma empregada salvadorenha de mexicana (e ambas levam bronca pela insensibilidade). E o roteiro é um primor em retratar uma patricinha fútil, com gírias, figurinos e tecnologias emergentes da época (como o celular), sem nunca deixar de mostrar que a moça tem inteligência, substância e potencial para evoluir como pessoa. E, assim como no filme Emma, a protagonista de Clueless toma ações de humildade no final; atitudes, como falei, que não são tão firmes no livro. Uma pena que a Alicia Silverstone nunca mais fez um papel a altura, ela está um charme no filme e segura o dilema se ser Emma habilmente.

Essas três soluções para o dilema central de Emma carregam um aspecto que me deixou uma certa amargura no livro e foi amaciado nos filmes. Uma das coisas mais legais da história é a amizade insuspeita de duas personagens diferentes, mas com boa química, união essa que vai se deteriorando aos poucos. Os filmes não têm coragem de acabar com esse companheirismo, pelo contrário; mas o livro deixa bem claro que não tem jeito, “a intimidade” das duas pessoas “deve afundar”. Que triste, mas que real, mesmo nos dias atuais. Amizades se afastam por suas diferenças e às vezes não voltam.

Esse tipo de coisa é que me mostra a genialidade e a incrível atualidade de Jane Austen, que já me chamaram a atenção desde quando vi Razão e Sensibilidade: mesmo com dose de romantismo, a autora retratou, no século XIX, coisas da vida e relações humanas que valem até hoje, duzentos anos depois, inclusive com mais realidade (e até com mais humor) que suas adaptações efetivamente contemporâneas. Enfim, recomendo muito o livro, mas também os filmes!

Leitura: Emma
(Jane Austen, 1815)
(Edição: The Annotated Emma, da Anchor Books, Notas de David M. Shapard)

Filme: As Patricinhas de Beverly-Hills (Clueless, 1995)
(Disponível no Prime Video)
★ ★ ★ ★ ✩

Filme: Emma (2020)
(Disponível no Telecine)
★ ★ ★ ★ ✩

Vladimir Batista

Vladimir Batista é escritor, professor e cinéfilo. Após 25 anos trabalhando como engenheiro em multinacionais de tecnologia, resolveu abraçar sua paixão de infância pelas palavras e por contar histórias e segue carreira na área de Letras e Literatura. Gosta de filmes e livros de gêneros variados, atendeu a vários cursos e oficinas de roteiros de cinema, de série e de técnicas de romance e tem um livro publicado pela Amazon: “O Amor na Nuvem De Magalhães”. Vladimir é casado, vegetariano e “pai” de cachorros resgatados.

Artigos relacionados

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Verifique também
Fechar
Botão Voltar ao topo
Send this to a friend