Brasil

Vazamentos inflamáveis?

Qual das conversas vazadas entre Moro e Dallagnol eles não poderiam ter, em hipótese alguma, nem pessoalmente?

Em que medida o diálogo entre ambos comprometeu a lisura do processos e a caracterização das provas?

Se a defesa buscasse a mesma interação digital com o juiz, ele responderia? Não era de se esperar isso de Cristiano Zanin, que passou o tempo todo atacando e desqualificando o magistrado, mas imagine uma situação normal, diálogos semelhantes seriam possíveis com os advogados da parte acusada?

O argumento de que um juiz somente se manifesta nos autos é falacioso, quem tem um mínimo de vivência com processos judiciais sabe que essa interação é possível e frequente, sendo irregular obviamente a emissão de prévio juízo de valor sobre uma causa (situação continuamente negligenciada por alguns ministros do STF) ou o conluio entre partes.

A conversação através de ‘smartphones’ (seja pelo WhatsApp, Messenger, Telegram e outros meios) é algo corriqueiro com qual não estávamos habituados há poucos anos. Qualquer indivíduo normal participa de conversas que deixou de ter pelo telefone ou pessoalmente, através de mensagens trocadas por meio digital. Elas agilizam decisões, tornam a vida mais prática, mas ao mesmo tempo fragilizam a privacidade, quase impossível nos dias de hoje. Teria o juiz ultrapassado a fronteira da ética ao exercer esse tipo de interação com o Ministério Público ou essa situação apenas reflete a realidade contemporânea? O que descobriríamos se todas as conversas de WhatsApp entre as partes integrantes de um processo fossem divulgadas mundo afora?

Os detratores da Lavajato, bastante conhecidos, aproveitam-se da interação informal registrada entre o então juiz Moro e o procurador Dallagnol e buscam minar a credibilidade da operação, conferindo status de vítima ao mais famoso de seus condenados, o divino preso, que mesmo com quase uma dezena de processos nas costas e duas condenações (a do sítio já passou pela primeira instância) ainda exerce grande fascínio em muitos fiéis.

Há quem diga que Moro orientou os procuradores, embora o pouco passível de ser caracterizado como orientação refere-se a temas periféricos, operacionais. Não há em nenhum dos diálogos elementos que possam invalidar a consistência dos processos da Lavajato, em ampla maioria ratificados em duas ou três instâncias.

Na prática, o que causa desconforto maior é a constatação da proximidade entre o juiz e o promotor. Não que seja proibida, mas estimula a criatividade dos que se sentem prejudicados. É o velho ditado da mulher de César, a quem não basta ser honesta. De todos os diálogos divulgados, aquele em que o MP emite opinião a respeito da divulgação do famoso áudio do ‘Bessias’ me pareceu o mais constrangedor. Não pela opinião, mas pela participação no evento, que depois resultou em uma advertência formal ao juiz. Agora, o que o legendário áudio tem a ver com o processo do triplex, dentre outros? Absolutamente nada.

Esse foi o típico evento que caracteriza um dilema moral. Se você, leitor, visse alguém cometer uma irregularidade em seu ambiente de trabalho, mas fosse proibido de denunciá-lo pelo protocolo vigente, deixaria passar? Ou seguiria com a denúncia? Ambas as ações podem ser defendidas à luz dos princípios que norteiam os atos de quem decide. O áudio vazado foi definitivo na história política do Brasil, pois impediu a posse de Lula como ministro. Sabe-se lá o que seria de nós caso a artimanha petista tivesse prosperado. Por conta desse ato, Sérgio Moro jamais será perdoado pelos petistas e isso tem influência em qualquer avaliação que eles façam sobre o atual ministro, o viés é indisfarçável. O reverso também é verdadeiro. A gratidão que muitos tem por ele ao ser politicamente audacioso em momento tão crucial, o converte em uma espécie de mito aos olhos dos antipetistas radicais.

Voltando à confusão do momento, me parece que os vazamentos tendem a ampliar a polarização. Os ‘anti lavajatistas’ se tornarão ainda mais ferrenhos defensores da nulidade dos processos, que representaria um retrocesso do Brasil à estaca zero no combate à corrupção. E adotarão como símbolo o divino preso, apenas um entre tantos corruptos condenados, embora o mais famoso e ‘querido’ deles.

Os defensores da Lavajato não mudarão de posição por causa desses eventos. Embora a operação possa ter se excedido em algumas ocasiões, ela a todo momento foi monitorada e revisada nas instâncias superiores, sendo referendada na maioria das vezes. Trata-se do maior avanço institucional da história do Brasil no que se refere ao combate à corrupção, praga nacional.

Individualmente, a figura do juiz Moro sai chamuscada. Não que eu considere que tenha cometido um ato irregular no exercício de sua função, nem que trocas de mensagem pelo WhatsApp ou similares devam ser proibidas entre juízes, promotores e advogados, seria uma sandice, mas pelo fato de que no mínimo ele foi imprudente ao permitir-se em algumas das conversas digitais e no máximo, aos olhos dos condenados, foi parcial. Seus detratores poderão alegar que os processos estavam fadados à condenação.

O que importa, entretanto, são as provas e as argumentações usadas nos autos para deliberar as sentenças e elas foram revisadas até o momento por nove juízes, validadas por todos. As conversas podem caracterizar imprudência, excesso de confiança, uma certa dose de vaidade (em uma das interações, pergunta se não está passando muito tempo sem que haja uma operação), mas não desqualificam tecnicamente os veredictos.

Vale lembrar também que Moro nem é mais juiz, agora é ministro da Justiça, sendo que essa opção, por si só, inflamou o ranço em seus detratores. ‘Ministro do coiso’, só poderia estar desqualificado aos olhos da oposição radical a Bolsonaro. Ao abandonar a magistratura e iniciar uma carreira política (sim, a posição de ministro, mesmo em uma pasta técnica, é indissociável da política), Moro assumiu os riscos inerentes à sua nova condição e passou a se expor continuamente sob vasto telhado de vidro. São os ossos do ofício. Em um ambiente radicalmente polarizado como o do Brasil, as chances de que mantivesse a mesma áurea de infalibilidade que apresentava eram mínimas. Colhe os frutos das suas escolhas. E na política, é imprescindível aprender a conviver com altos e baixos.

Aguarda-se a divulgação de novas conversas, sob custódia do jornalista e ativista do PSOL, também uma parte não isenta na história. Surpreendentemente, o conteúdo das mensagens não foi questionado, nem periciado, mesmo sendo fruto de ato ilegal. Toma-se como verdade absoluta algo obtido através de um ‘hacker’. Tempos estranhos. Está claro que a imprensa cumpre seu papel em divulgar, mas que tal investigar as fontes? Afinal, quem é esse ‘hacker’ que só ataca os protagonistas da Operação? Já imaginou se fizessem o mesmo com outros tantos conhecidos por aí? É claro que a motivação por trás dos ataques é enfraquecer a Lavajato, não caberia uma investigação maior no caso? Para que as revelações possam causar dano real à Operação terâo que mostrar bem mais do que a atual tempestade em copo d’água.

A imprensa lulista está obviamente em polvorosa. Outra parte reage com certo exagero, já vi gente pedindo a renúncia de Moro. Por qual razão? Que ato do ministro da Justiça justificaria tal decisão, sem pé, nem cabeça? Caso ele ainda estivesse na magistratura, poderia sofrer alguns reveses, particularmente no progresso da carreira. Promoções seriam mais difíceis e suscitariam polêmica. É o que pode acontecer caso tenha intenções de ocupar uma cadeira no STF, embora essa seja uma decisão totalmente política (alguns ministros do STF sequer servem como exemplo de comportamento…).

Recente pesquisa encomendada por El País ainda coloca Moro como a figura pública mais popular do Brasil, embora tenha perdido alguns pontos em relação à anterior. Resta saber qual é o amplitude de sua resiliência. Apesar da fachada jurídica do caso, trata-se de uma celeuma de fundo político, não se enganem. As peças do tabuleiro para a sucessão de 2022 estão sendo colocadas sobre a mesa. O Brasil faz inveja a Game of Thrones, só faltam os dragões incendiários.

Victor Loyola

Victor Loyola, engenheiro eletrônico que faz carreira no mercado financeiro, e que desde 2012 alimenta seu blog com textos sobre os mais diversos assuntos, agora incluído sob a plataforma do Boteco, cuja missão é disseminar boa leitura, tanto como informação, quanto opinião.

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