Israel e a ONU – Cap. 5: A UNRWA
A Agência das Nações Unidas de Assistência e Obras para os Refugiados da Palestina (UNRWA, na sigla em inglês, e que é como vamos nos referir a esta agência daqui em diante) foi criada pela resolução 302, de 8/12/1949, cerca de 6 meses após o fim da Guerra da Independência de Israel e da dispersão dos árabes que viviam na região. Assim como a Divisão para o Direitos dos Palestinos é a única divisão da ONU dedicada exclusivamente a um só povo, a UNRWA é a única agência criada para um grupo específico de refugiados em toda a história das Nações Unidas.
O parágrafo 7 da resolução 302 estabelece o seguinte:
“A Assembleia Geral:
7. Estabelece a Agência das Nações Unidas de Assistência e Obras para os Refugiados da Palestina no Oriente Próximo:
(a) Para realizar, em colaboração com os governos locais, os programas de ajuda direta e de obras recomendados pela Missão de Pesquisa Econômica;
(b) Para consultar os governos interessados do Oriente Médio sobre as medidas a serem tomadas por eles em preparação para o momento em que a assistência internacional para projetos de ajuda e obras não estiver mais disponível;”
Note como, inicialmente, a UNRWA foi criada com o objetivo de ser uma entidade transitória, enquanto “os governos interessados do Oriente Médio” não tomavam medidas para cuidar dos refugiados. Observe que não há menção a Israel, todos os governos da região são chamados pela ONU a se responsabilizarem pelo problema.
Esta mesma resolução determina o orçamento inicial da Agência para 1950 em US$ 33,7 milhões e para o primeiro semestre de 1951 em US$ 21,2 milhões, valores equivalentes, em dinheiro de hoje, a US$ 434 milhões e US$ 253 milhões respectivamente. Para começar os trabalhos, a mesma resolução autoriza a transferência de US$ 5 milhões da própria ONU para a Agência, e um empréstimo de US$ 2,8 milhões da Organização Internacional de Refugiados. Estes recursos equivaleriam hoje a aproximadamente US$ 100 milhões, que deveriam ser ressarcidos após a Agência receber doações dos Estados-membros. E receber doações em montante suficiente sempre foi um problema para UNRWA.
Antes de entrar na questão das doações, vamos entender os objetivos da UNRWA. No início, segundo a resolução 393, de 2/12/1950, os orçamentos aprovados para a UNRWA previam dois fins específicos:
1) um fundo de reintegração dos refugiados, que seria utilizado para projetos solicitados por qualquer governo do Oriente Médio para o restabelecimento permanente de refugiados e sua remoção da ajuda humanitária e
2) ajuda direta aos refugiados necessitados.
As dotações para o primeiro objetivo sempre foram preponderantes. Por exemplo, a resolução 393 previa US$ 30 milhões para o primeiro objetivo e US$ 20 milhões para o segundo para o ano fiscal que terminava em junho/52. Estes montantes foram aumentados para US$ 50 milhões e US$ 27 milhões na resolução 513, de 26/1/1952, que, além disso, estabeleceu os montantes de US$ 100 milhões e US$ 18 milhões para os dois objetivos, respectivamente, no ano fiscal com término em junho/53. Estes montantes foram elevados para US$ 120 milhões e US$ 23 milhões pela resolução 614, de 6/11/1952.
A resolução 720, de 27/11/1953, no entanto, soa o sinal de alarme:
“as expectativas no que diz respeito à execução do programa de projetos não foram realizadas” e, portanto, “insta a UNRWA e os governos dos países do Oriente Médio envolvidos a continuarem a procurar projetos aceitáveis que permitam a utilização do fundo para os fins a que se destina.”
Esta mesma resolução aumenta a dotação para esses projetos para US$ 200 milhões (US$ 2,3 bilhões a valores de hoje), a serem usados até o fim de junho/55. No entanto, a resolução 916, de 3/12/1955, afirma que “nenhum progresso substancial foi feito no programa de reintegração de refugiados”. Essa mesma afirmação vai aparecer anualmente até a resolução 47/69, de 14/12/1992, última antes dos Acordos de Oslo. Ou seja, não havia falta de dinheiro, mas de projetos para a reinstalação dos refugiados nos países árabes. Incompetência ou má vontade?
Voltando à questão das doações. Ano após ano, a ONU aprovou resoluções em que lamenta a penúria da agência e implora por doações. Já em 1950, a resolução 393
“solicita ao presidente da Assembleia Geral que nomeie um Comitê de Negociação composto por sete ou mais membros com a finalidade de consultar, o mais rápido possível durante a atual sessão da Assembleia Geral, os Estados Membros e não-membros sobre os montantes que os Governos podem estar dispostos a contribuir de forma voluntária.”
A partir da resolução 1191, de 12/12/1957, o texto passará, com pequenas variações, a ser o seguinte:
“Chama a atenção dos governos para a situação financeira crítica da UNRWA, e exorta-os a considerar até que ponto podem contribuir ou aumentar as suas contribuições…”
A partir da resolução 1856, de 20/12/1962, o texto passa a distinguir entre “governos contribuintes” e “não contribuintes”:
“Chama a atenção para a precária situação financeira da UNRWA e insta os Governos não contribuintes a contribuírem, e os Governos contribuintes a considerarem um aumento das suas contribuições…”
Na resolução 2052, de 15/12/1965, o texto passa a apelar para a “generosidade” dos estados-membros:
“Apela a todos os governos, com urgência, para que envidem os esforços mais generosos possíveis para satisfazer as necessidades previstas da UNRWA, particularmente à luz do déficit orçamentário projetado no Relatório do Comissário-Geral.”
No ano seguinte, a resolução 2154, de 17/11/1966, faz menção aos esforços do Comissário-Geral para passar o chapéu entre os países-membros:
“Observa com preocupação que, apesar dos esforços louváveis e bem-sucedidos do Comissário-Geral no recolhimento de contribuições adicionais para ajudar a aliviar o grave déficit orçamentário do ano passado, as contribuições para a UNRWA continuam a ficar aquém dos fundos necessários para cobrir as necessidades orçamentárias essenciais.”
Em 7/12/1970, a resolução 2656 estabelece um Grupo de Trabalho para o Financiamento da UNRWA, composto por 9 Estados-membros, a saber: França, Gana, Japão, Líbano, Noruega, Trinidad e Tobago, Turquia, Reino Unido e Estados Unidos. Este grupo produz um relatório, que é aprovado pela resolução 2728, de 15/12/1970. Este relatório recomenda basicamente duas coisas: 1) um adiantamento das contribuições dos Estados-membros contribuintes para cobrir um déficit de US$ 6 milhões (US$ 48 milhões a preços de hoje) já no primeiro trimestre de 1971, e 2) começar a passar o chapéu também entre organizações não governamentais, de modo a cobrir o déficit estrutural da Agência. Este Grupo de Trabalho existe até hoje.
A resolução 3089(E), de 7/12/1973, é bastante interessante, pois menciona que
“alguns Estados-Membros podem preferir estender a ajuda diretamente aos refugiados sem contribuir para a UNRWA”,
o que é um sinal de que a UNRWA, já na época, sofria de um, digamos, déficit de credibilidade. Essa resolução, além disso, pede que todos os Estados-Membros com renda per capita superior a US$ 1.500 (o que equivaleria, hoje, a mais ou menos US$ 10 mil) pensem em aumentar as suas contribuições. O Brasil provavelmente estaria nesta lista.
A resolução 3331(B), de 17/12/1974, assume um tom ainda mais dramático, como se isso fosse possível:
“Chama a atenção para a gravidade sem precedentes da situação financeira da UNRWA.”
E decide, portanto,
“que as despesas com salários do pessoal internacional a serviço da UNRWA, que de outra forma seriam um encargo sobre contribuições voluntárias, deveriam, a partir de 01/01/1975, ser financiadas pelo orçamento ordinário das Nações Unidas…” (grifos meus)
Ou seja, desde então, os salários dos funcionários da UNRWA são pagos por todos os Estados-Membros da ONU, independentemente de sua simpatia pela causa. Esta resolução foi adotada sem votação.
Os anos seguintes serão relativamente monótonos, com as resoluções repetindo a mesma cantilena:
“Observa com profunda preocupação que, apesar dos esforços louváveis e bem-sucedidos do Comissário-Geral para recolher contribuições adicionais, este aumento do nível de receitas para a UNRWA ainda é insuficiente para cobrir as necessidades essenciais no presente ano e que, aos níveis de doações atualmente previstos, os déficits irão repetir-se todos os anos;
Apela a todos os governos, com urgência, para que envidem os esforços mais generosos possíveis para satisfazer as necessidades previstas pela UNRWA, particularmente à luz do déficit orçamentário projetado no relatório do Comissário-Geral e, portanto, insta os governos não contribuintes a contribuírem regularmente e os governos contribuintes a considerarem aumentar as suas contribuições regulares.”
Este texto será repetido com pequenas variações até o início da década de 90. Depois disso, os apelos para contribuições continuarão, mas de maneira menos melodramática.
Em 2020, na resolução 75/94, provavelmente em função da pandemia, o tom volta a ser alarmista:
“Manifestando apreço pelos esforços dos doadores e dos países de acolhimento para responder à crise financeira sem precedentes da Agência, nomeadamente através de contribuições generosas e adicionais e, sempre que possível, de aumentos contínuos das contribuições voluntárias, reconhecendo simultaneamente o apoio firme de todos os outros doadores à Agência.”
E mais:
“Constatando que as contribuições não têm sido suficientemente previsíveis ou suficientes para satisfazer as necessidades crescentes e remediar os déficits persistentes, que foram, desde 2018, exacerbados pela suspensão da maior contribuição voluntária individual para a Agência, prejudicando as operações e os esforços da Agência para promover o desenvolvimento humano e satisfazer as necessidades básicas dos refugiados palestinos…”
Nesta mesma resolução, a ONU passa defender, de maneira direta, a existência da Agência, que já vinha sendo alvo de críticas de Israel e do governo americano:
“Manifesta a sua profunda preocupação com as tentativas de desacreditar a Agência, apesar da sua capacidade operacional comprovada, do seu histórico de prestação eficaz de ajuda humanitária e do desenvolvimento e execução coerente do seu mandato, em conformidade com as resoluções pertinentes e o seu quadro regulamentar, mesmo nas circunstâncias mais difíceis.”
Estas críticas se exacerbaram depois da notícia de que membros da UNRWA teriam participado dos ataques de 07/10. A Economist publicou, em sua edição de 15/02/2024, um artigo intitulado O real problema com a agência da ONU para os palestinos. O ponto central da matéria é que a existência da UNRWA é conveniente para todos os atores da região: para Israel, que pode, juntamente com o Egito, impor bloqueios draconianos a Gaza, sabendo que a Agência cuidará da sobrevivência básica dos palestinos; para os países árabes, que podem se desentender do auxílio aos seus “irmãos” palestinos, pois a Agência cuidará deles; e para o Hamas, que pode se dedicar a construir o seu poderio militar, sabendo que as doações para a Agência sustentarão os palestinos do território.
No final, segundo a Economist, a UNRWA serve para perpetuar um estado de miséria, substituindo precariamente o que deveria ser uma solução permanente que permitisse o autogoverno dos palestinos. Isso interessa inclusive à própria ONU, eu acrescento, que pode continuar passando a impressão de que é indispensável, além de poder sustentar milhares de funcionários à custa de doações.
Quem são os doadores da UNRWA?
O site da UNRWA divulga a lista de doadores somente a partir de 2008. Sem surpresa alguma, verificamos que os Estados Unidos são o maior doador para a Agência, conforme podemos observar no gráfico a seguir, que mostra os cinco maiores doadores em cada ano:
Os Estados Unidos somente desaparecem desta lista entre os anos de 2018 a 2020, sob a presidência de Donald Trump, que cortou as doações à Agência. Mas esta lista falha ao não considerar o tamanho de cada país. Obviamente, os Estados Unidos, por produzirem praticamente 25% do PIB global, têm maior capacidade de doação. Então, fiz um outro levantamento, considerando a renda per capita de cada país, ou seja, quanto representa a doação para a UNRWA da renda de cada cidadão de cada um dos países.
Vamos mostrar esta estatística em ordem de importância que essas doações representam para cada país. Em primeiro lugar, os países escandinavos mais a Islândia:
A Suécia é a campeã em doações quando se ajusta pelo PIB/capita: as suas doações variam entre 0,009% e 0,012% da renda anual dos cidadãos do país. Em segundo lugar vem a Noruega, com algo entre 0,006% e 0,008% da renda, seguido da Dinamarca, Finlândia e Islândia. Estes últimos dois não diferem muito da média europeia, mais Austrália e Canadá, conforme podemos observar nos dois gráficos a seguir:
Optei por manter a mesma escala do primeiro gráfico para que possamos comparar melhor os países entre si. Observe como apenas a Alemanha sobe de patamar a partir de 2018 (provavelmente procurando compensar um pouco a ausência das doações americanas), mas, mesmo assim, atinge apenas 0,005% da sua renda/capita, mais ou menos o mesmo patamar da Dinamarca e distante de Noruega e Suécia. O restante permanece abaixo de 0,004% e alguns, como França, Itália e Canadá, não alcançam 0,002% da sua renda.
E os Estados Unidos? Vejamos:
Coloquei no gráfico acima, além dos Estados Unidos, o conjunto dos países árabes[1] e as instituições ligadas aos países árabes (ONGs e bancos de desenvolvimento). Estas últimas foram ajustadas pelo PIB/capita dos países árabes.
Os Estados Unidos contribuem com aproximadamente 0,002% de sua renda/capita, o que não o destaca entre os mais generosos, mas, dado o tamanho do país, significa, de longe, o maior volume de doações. De qualquer forma, os Estados Unidos doam mais proporcionalmente do que a União Europeia e a França, por exemplo, que costumam apontar o dedo para a aliança dos americanos com Israel.
Mas o que mais chama a atenção são as doações dos países árabes. Esperar-se-ia um nível de doações superior ao da Suécia, mas o que vemos é algo mais tímido (com exceção de 2018, em que os árabes provavelmente tentaram compensar a ausência dos americanos), e, nos últimos 3 anos, um nível semelhante ao dos americanos e outros países europeus. Ou seja, os “irmãos árabes” não contribuem mais do que seus pares ocidentais, se ajustado pela renda desses países.
E o Sul Global, sempre cioso da “causa palestina”? Vejamos:
Um gráfico vale mais do que mil palavras. “Talk is cheap”, como dizem os imperialistas americanos, mas o tal “Sul Global” abusa do seu direito de falar sem contribuir.
[1] Foram considerados os seguintes países: Arábia Saudita, Bahrain, Egito, Irã, Iraque, Jordânia, Kuwait, Líbano, Omã, Qatar, Síria, Turquia e Emirados Árabes. Turquia não é exatamente um “país árabe”, mas considerei por ser um país muito alinhado.
Confira os artigos desta série:
1. Visão geral das votações – o grau de alinhamento dos países a Israel
2. O direito de regresso dos palestinos
3. Os direitos inalienáveis dos palestinos
4. A propaganda é a alma do negócio
5. A UNRWA
6. Israel, de amante da paz a pária internacional
9. Jerusalém
10. A busca pela paz