Opinião

A complexidade do mundo não cabe em uma teoria da conspiração

O editorial do Estadão de ontem traz uma reflexão importante, não somente no campo da política, mas também em outros âmbitos, como por exemplo, o mercado financeiro e a pauta ambiental.

O editorialista chama a atenção para um ponto fundamental: a política (e, consequentemente, os políticos) não está dissociada da sociedade. Os políticos agem de acordo com as pautas da sociedade, com as escolhas que fazemos em nosso dia a dia. Se você acha estranha essa afirmação, vou tentar explicar com três exemplos entre muitos possíveis.

Vou começar com a prisão em 2a instância, aparentemente uma pauta consensual na sociedade brasileira e que estaria parada na Câmara por interesses escusos dos parlamentares. A sensação de que essa pauta é consensual é só isso mesmo, uma sensação, provavelmente causada pela bolha em que nos movemos. O brasileiro médio é contra punição e a favor da misericórdia. Não só não temos a prisão em 2a instância como temos uma das legislações penais mais brandas do mundo, com direito à progressão de pena e saidinhas. É da natureza do brasileiro, não um problema específico do sistema político.

Um segundo exemplo são as malfadadas emendas parlamentares. Não vou aqui entrar na seara criminal. Desvios de dinheiro existem em qualquer atividade, não somente na política. Focando apenas na essência das emendas, vamos concluir que trata-se de uma troca: eleitores trocam seus votos por benfeitorias em seu quintal. O brasileiro gosta de um cashback, e pouco importa as ideias do político A, B ou C, desde que o seu problema específico seja resolvido. Se o brasileiro médio votasse de acordo com as grandes pautas nacionais, o apelo das emendas seria esvaziado. As emendas só existem porque os brasileiros querem que elas existam.

Por fim, o último exemplo é mais genérico, e se refere aos diversos lobbies que atuam em Brasília. As elites brasileiras atuam para que tudo permaneça como está, cada um cuidando de preservar suas posições e, se possível, ganhar mais algumas. Desde subsídios, passando por regimes especiais de tributação e baixas alíquotas de imposto, até a proteção às diversas corporações que dependem do Estado. Hoje, por exemplo, soube da existência de um “sindicato dos aposentados”. Também há o “sindicato dos professores”, além de vários sindicatos patronais. Mas nunca ouvi dizer de um “sindicato dos pais de alunos do ensino fundamental da escola pública”, ou um “sindicato dos doentes sem leitos e exames no SUS”. Não, esses interesses difusos não são defendidos por ninguém. Alguém diria que a classe política deveria se ocupar desses interesses, não se colocando como presa fácil desses vários lobbies. Verdade. Mas note como a classe política somente reage à organização da sociedade em lobbies, atendendo aos interesses de quem grita mais alto. Como dito no início, a política não está dissociada da sociedade.

Em outra dimensão, podemos dizer o mesmo do mercado financeiro. Os movimentos dos preços dos ativos é função, em última análise, das decisões dos indivíduos e das empresas. Quando você decide poupar ou gastar, comprar isso e não aquilo, quando decide por uma determinada marca e não por outra, quando toma a decisão de se casar ou comprar uma bicicleta, está, no final da linha, influenciando os preços de ativos, como ações de empresas, o nível da taxa de juros e do câmbio. O governo, como principal agente econômico de um país, por ser o fiador da moeda, tem uma enorme influência sobre os preços dos ativos. O mercado financeiro, assim como o mundo político, é muitas vezes confundido com seus operadores. Os operadores do mercado, assim como os operadores da política, têm um certo grau de liberdade no curto prazo, mas os grandes movimentos são definidos pela sociedade, que compra e vende (no caso do mercado), ou que vota e faz lobby e faz pressão na opinião pública, no caso das decisões políticas.

Uma terceira esfera em que estas coisas se confundem é a pauta ambiental. Governos e empresas são cobradas para levar adiante iniciativas de diminuição da pegada de carbono. Mas, no final do dia, o que vai definir se morreremos ou não afogados em um mar que vai subir de nível e engolir nossas cidades costeiras é, em última instância, os hábitos de consumo da sociedade. Se os investidores continuarem a não financiar empresas que geram lucros menores por, ou apesar de, adotarem uma agenda mais limpa, se os consumidores não toparem pagar mais caro pela energia ou por produtos produzidos de maneira “limpa”, se não abrirem mão de confortos que custam toneladas de carbono na atmosfera, continuaremos girando em círculos, dando a impressão de muito movimento, mas sem avançar um milímetro sequer na direção desejada. Os governos são presas dessa lógica. Um exemplo paradigmático foi a última decisão de vários países de liberarem seus estoques estratégicos de petróleo para tentar forçar os preços para baixo. Quer dizer, não aguentaram a pressão política da sociedade, que não quer pagar mais caro pela energia, quando é justamente o preço mais caro que vai fazer a pauta ambiental avançar. Nós, a sociedade, queremos o ar limpo, desde que não tenhamos que abrir mão do nosso direito sagrado à gasolina barata.

Temos a tendência de ver o mundo político, o mercado financeiro ou as empresas que poluem como uma espécie de clube fechado, em que decisões que vão ferrar o resto da humanidade são tomadas em salas escuras e esfumaçadas, em conluios que buscam maximizar os seus próprios interesses às custas dos interesses da sociedade. Esta imagem agrada a quem gosta de uma teoria da conspiração, em que as grandes decisões são tomadas por meia dúzia que manipula os cordões do mundo, cabendo-nos o papel de simples marionetes. Para quem tem essa visão de mundo, não há argumento que convença.

Penso, sinceramente, que o mundo é muito mais complexo do que meia dúzia de pessoas sentadas em uma sala. Sem prejuízo de que os operadores do mundo político, do mercado financeiro ou das empresas poluidoras possam sim estar atrás de seus próprios interesses (e quem não está?), estes interesses estão longe de ser os únicos que comandam as suas ações. Afinal, os políticos dependem de quem os elegem, os operadores do mercado dependem das decisões dos seus clientes e as empresas poluidoras dependem dos consumidores. São estes, em última instância, que definem as ações dos políticos, operadores e empresas no longo prazo.

As teorias da conspiração são muito cômodas, porque nos eximem de qualquer culpa na situação em que o mundo se encontra. A culpa é sempre de uma “força superior sinistra”, a que não temos poder de contrapor. Prefiro pensar que a situação do mundo é fruto das bilhões de interações dos seres humanos, entrelaçados em uma cadeia de decisões livres que influenciam e são influenciados e limitados por outras decisões igualmente livres. As instâncias decisórias da sociedade humana, os seus poderes constituídos, ao mesmo tempo mandam e obedecem. Sim, o mundo é complexo, não cabe todo em uma teoria simplista, por mais sedutora que seja.

Marcelo Guterman

Engenheiro que virou suco no mercado financeiro, tem mestrado em Economia e foi professor do MBA de finanças do IBMEC. Suas áreas de interesse são economia, história e, claro, política, onde tudo se decide. Foi convidado a participar deste espaço por compartilhar suas mal traçadas linhas no Facebook, o que, sabe-se lá por qual misteriosa razão, chamou a atenção do organizador do blog.

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