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Os fiordes da Islândia pelo gênio de Portugal que via novelas do Brasil

Valter Hugo Mãe é um portuga gente boa, mas também é o maior escritor vivo da nossa língua, como comprova A Desumanização: romance cheio de imagens sublimes do humano em meio a inóspitas e lindas paisagens islandesas

Adorei o pequeno e arrebatador romance A Desumanização, minha primeira leitura do cativante Valter Hugo Mãe. Apesar de ser um dos maiores escritores vivos da nossa língua, o português nascido em Angola parece ser um cara acessível. Há um ano e meio, ele foi a Foz do Iguaçu para um evento que acabou sendo cancelado na última hora. Ele, então, publicou nas redes sociais que iria ficar por lá, que queria “amigos e ideias” e avisou que, se o vissem, embora costumasse “andar tímido”, sob a cara fechada ia “alguém feliz”.

Pouco depois, fui vê-lo em um encontro aberto, do lado de fora de uma biblioteca comunitária, em Perus, São Paulo – SP. Era um papo sobre poetas portuguesas, o local estava lotado (foto abaixo), não é todo dia que temos acesso tão fácil a um gênio do nosso tempo, né? Lá ele disse que é o tempo das mulheres na literatura, que elas têm produzido o que há de mais autêntico e com o maior frescor da atualidade. Até zoou, para a minha apreensão, que, “se você for um escritor homem iniciante, lamento, mas a vez agora é delas”.

Outro exemplo de que o autor é gente como a gente vi em outras entrevistas: pelo jeito, ele gostava das telenovelas brasileiras (pelo menos as antigas). A cena clássica de Gabriela, da Sônia Braga pegando a pipa no telhado (a qual, diz a minha mãe, teria me deixado animadinho em plena flor da infância – não me lembro disso!) marcou também não só a visão de mundo do escritor, mas também a vida dos portugueses, pois teria, segundo ele, apimentado aquela terrinha sisuda.

Em A Desumanização, que se passa em uma vila nos inóspitos fiordes da Islândia, achei alguns ecos do realismo fantástico, aquele de cidadezinhas de certas telenovelas brasileiras (mas também podem ser da literatura latino-americana que as inspiraram, claro).

Em uma parte bem curiosa do romance, por exemplo, uma moradora meio desligada do mundo enxerga cores na música (isso mesmo), e sonha tocar o órgão da igreja que está quebrado há anos. Uma noite, ela vai sonâmbula para o templo, imagina que as auroras boreais (“tremendas cortinas fantasmáticas [que] luziam rápidas, em espasmos, como se víssemos o sol debaixo de água”) são uma escala musical e toca, nas “teclas murchas”, um concerto magnífico que ninguém mais ouve. Até que, um dia, o órgão é consertado, ela é convidada para inaugurá-lo e aí, a melodia é tão maravilhosa que toda a pequena população presente na igreja participa da experiência sinestésica de enxergar grandes telas caleidoscópicas no ar a partir da música!

Mas essa é apenas uma pequena trama marginal de A Desumanização. Já que estamos na época das mulheres, a protagonista narradora é também feminina: Halla, uma garota de doze anos cuja irmã gêmea idêntica morre. Daí, acompanhamos o rápido amadurecimento dessa menina, em especial seu envolvimento com um rapaz considerado meio bobo da vila. Esse personagem, o garoto, foi um problema para mim, pois desgostei dele de um tanto no começo que demorei a perceber que o livro quase chega a ser mais sobre ele, de quem se revela uma profundidade insuspeita, do que sobre ela.

Mas o forte do romance mesmo são as imagens poéticas, uma mais esplêndida que a outra. Logo nas primeiras linhas, já temos o estranhamento quando é dito que crianças, quando morrem, não são enterrradas, mas plantadas. Halla então imagina: “Achei que a minha irmã podia brotar numa árvore de músculos, com ramos de ossos a deitar flores de unhas. Milhares de unhas que talvez seguissem o pouco sol. Talvez crescessem como garras afiadas.”

A partir daí, mais figuras surreais são evocadas. Dá pra ver que é a especialidade do autor, uma prosa poética que lembra Clarice Lispector. Halla acha que agora carrega em si duas almas, a da irmã junto. “Começaram a dizer as irmãs mortas. A mais morta e a menos morta. Obrigada a andar cheia de almas, eu era um fantasma.”

E depois há um trecho que me marcou porque, como Halla, também eu costumava sonhar que voava pairando de leve no ar: “Em sonhos, por vezes, empurrava-me das encostas. Eu estava no alto das montanhas, as descidas escarpadas e verticais. Voava porque era muito leve, não tinha peso nenhum e levava duas almas. As almas seriam feitas de ar. Uma criança de duas almas, magra assim, voaria como um balão com facilidade. Ainda subiria, ao invés de cair montanha abaixo. Subiria e espiaria os fiordes inteiros e a sua intermitência.”

Aliás, também sobre aquela região vulcânica dos fiordes, na Islândia, há descrições incríveis. No alto de uma das montanhas, há um precipício tão profundo que não se vê o fundo, chamado de “boca de deus”. As melhores partes são nesse pitoresco ponto (será que existe de verdade?). Leiam só alguns trechos: “E o vento estava tão admirado que entrava pela boca de deus como placas de ferro tombando. Moedas gigantes. Troava em longo eco, como se o próprio vento se deitasse ao infinito, enlouquecido, escavando mais, ainda mais, a rocha tremenda da Islândia.” Ou em: “Chamávamos-lhe a boca de deus porque não a conhecíamos. E deus era o desconhecido. Cada coisa que se nos revelasse tornava-se humana. Apenas o que nos transcendia poderia ser deus.”

Essa imagem surreal, que mistura o homem, a terra, o espírito e o divino, dá o tom do livro. Que acrescenta, nesse caldeirão, a poesia. O pai da menina diz em um momento: “A poesia é a linguagem segundo a qual deus escreveu o mundo. (…) Nós não somos mais do que a carne do poema. Terrível ou belo, o poema pensa em nós como palavras ensanguentadas.”

Tudo isso, os humanos vivos, os mortos, a terra islandesa, Deus e a palavra poética, parecem ser manifestações sagradas do mesmo organismo pulsante, tais como “pai, filho e espírito santo”. E fiquei com vontade de conhecer tal terra hostil que parece ser tão fascinante. No romance, a igreja da vila do romance está repleta de reproduções de obras de um pintor islandês, Jóhannes Kjarval, cujas telas reproduzem aquelas paisagens ermas. Depois de ler o livro, googlei as pinturas dele (algumas estão postadas acima) e fiquei ali, só namorando a desolação. Como também fiquei a saborear as palavras poéticas do Valtão Mother, o portuga gente boa e noveleiro que, por ventura, é um gênio literário do nosso tempo.

A Desumanização
(Valter Hugo Mãe, 2013)

Vladimir Batista

Vladimir Batista é escritor, professor e cinéfilo. Após 25 anos trabalhando como engenheiro em multinacionais de tecnologia, resolveu abraçar sua paixão de infância pelas palavras e por contar histórias e segue carreira na área de Letras e Literatura. Gosta de filmes e livros de gêneros variados, atendeu a vários cursos e oficinas de roteiros de cinema, de série e de técnicas de romance e tem um livro publicado pela Amazon: “O Amor na Nuvem De Magalhães”. Vladimir é casado, vegetariano e “pai” de cachorros resgatados.

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